Ultra-sons, pássaros desconhecidos e rodas de autocarro: o que sobra depois de ouvirmos coisas?
Ricardo Namora
UNIVERSIdade de COIMBRA | CLP
ORCID: 0000-0002-5526-8018
Angela Leighton. Hearing Things: The Work of Sound in Literature. Cambridge, MA: The Belknap Press of Harvard University Press, 2018. 304 pp. ISBN 978-0-674-983496.
Durante a década de 1920, um então jovem professor de uma disciplina ainda nos seus primórdios (Literatura Inglesa) ficou famoso na Universidade de Cambridge por dar as suas aulas nas escadas ou nos claustros dos colégios. Apesar destas e de outras excentricidades, no entanto, e de um conjunto de leituras subsequentes confusas a propósito da sua filosofia, o legado de I.A. Richards para a teoria e crítica literárias extrapolou amplamente os limites do seu magistério. O peso dessa herança é, contudo, quase sempre restringido à fórmula aparentemente mágica que Richards encontrou para justificar o estudo da literatura. A célebre noção, apropriada pela posteridade de um modo bastante diferente das pretensões daquele, encontrou uma fortuna teórica duradoura, tendo educado e alavancado gerações de professores, críticos e estudiosos. “Close Reading” foi, então, uma proposta metodológica crucial para os estudos literários no século XX, que insistia na necessidade de uma leitura lenta, cuidada e atenta a certos detalhes que pareciam tornar a literatura numa forma de comunicação linguística sui generis, diferente de outras instâncias discursivas. A omnipresença deste método de leitura microscópica foi constante, e apenas no século XXI surge no mapa teórico uma tentativa igualmente ambiciosa de o contrariar, através do conceito de “Distant Reading” proposto por Franco Moretti.
Apesar de tudo isto, a suspeita de que a leitura é apenas uma parte da questão esteve sempre, de modo mais ou menos latente, em cima da mesa, mesmo tendo em conta a ideia de senso comum segundo a qual lemos essencialmente com os olhos. O que Angela Leighton propõe neste livro é justamente uma extensão dessa ideia de longo curso a ponto de se incluir o som – num sentido alargado de sonoridade produzida por “coisas” – como elemento central da interpretação de objetos literários: um processo, ou método, a que chama “Close Listening”. O aviso fica dado de modo claro logo no dealbar da narrativa: “This book is a meditation on sound and on how we might listen to it, in literature” (p. 3). O argumento central, que sugere ser possível (e desejável) uma “poética do som”, de raízes tanto filosóficas quanto analíticas, passa por tentar reduzir o fosso que empiricamente existe entre receber informações através dos olhos, processar essa informação no cérebro e atribuir-lhe, quase automaticamente, qualidades sonoras particulares cujo potencial de sugestão e associação é evidente. Embora nada nos garanta, à partida, que tais exercícios funcionem sempre e em todas as circunstâncias, talvez o que a autora queira sugerir, em última análise, seja que ouvir coisas quando se leem livros é uma coisa trivial e que pode ser melhorada com treino, paciência e, claro, mantendo os ouvidos pelo menos tão abertos quanto os olhos. E é interessante que muitos escritores e filósofos tenham, aparentemente, pensado o mesmo.
O nome feminino plural “coisas” contribui enormemente para o sucesso argumentativo e ilustrativo deste livro. Nesse contexto, então, coisas que se ouvem podem ter naturezas e consequências muito diferentes entre si: sons emanados da natureza e consequentes do clima, veículos de transporte, fantasmas, cercas de arame, sinos de igrejas distantes, animais vadios; mas também coisas tão intangíveis como diálogos imaginários ou vozes da consciência fazem parte de um importante e ruidoso elenco que constitui, no argumento de Leighton, a banda sonora que entretece a literatura. A percepção de todo este elenco cacofónico radica numa forma peculiar de auto-consciência das possibilidades auditivas (“ear-mindedness”), e acontece hors diegese, uma vez que, segundo a autora, essa capacidade “has little to do with narrative events but is passed on through channels of strange listening, from poet to poet, poet to reader, and … from this poet to himself” (p. 69). Aparentemente, esta constatação multiplicaria os problemas, uma vez que falar com outros (que fazem coisas parecidas com as que nós fazemos), falar com outros que nos ouvem ou falar connosco próprios através dos circuitos internos da nossa consciência não são em rigor atividades análogas. Mas é essa espécie de confusão conceptual deliberada que autoriza Leighton a concatenar aquilo que apelida de “buzzing auditorium” – uma assembleia levemente ruidosa – onde pessoas murmuram e ouvem zumbidos, e onde se incluem Tennyson, Christina Rossetti, Virginia Woolf, Yeats, Walter de La Mare, Edward Thomas, Robert Frost, Elizabeth Bishop, Jorie Graham, W.S. Graham, Les Murray e outros.
Ritmo e sonoridade são, então, oferecidos à consciência auditiva de vários modos e através de um conjunto substancial de “canais”. Mais, é-lhes exigido que “funcionem”, e que o façam de modo a instigarem pensamento – uma espécie de autoconsciência imediata e repetida. Por outro lado, o som contribui para a presentificação da linguagem, suprimindo a distância espácio-temporal que tipicamente ocorre entre a percepção de um ruído e a sua identificação e processamento pós-intuitivo. “All sound in poetry” é, nesse contexto, um “ultrasound … a sound beyond the ear” (p. 225), ou seja, uma coisa que se torna tão espessa que quase se transforma na coisa em si, no que o origina – confundindo-se assim a origem e os seus efeitos. A rasura desta duplicação (ou, pelo menos, do tempo que ela dura) é um sonho antigo, assente num evidente contrafactual – segundo o qual conseguiríamos “ver” imediatamente uma roda de automóvel, o vento a uivar sobre um prado ou o chilrear de um pássaro assim que estes sons fossem acionados ou sugeridos pela palavra escrita. Ora, não é bem assim que as coisas se passam e, em consequência, o argumento central do livro de Leighton sofre um profundo corte, sobrando-lhe apenas a constatação redundante de que houve muitos poetas ao longo da história que se preocuparam imenso com o som e os seus efeitos – neles mesmos e nas pessoas que os leram.
A seriação de Leighton, panorâmica e exaustiva, é uma demonstração inequívoca do quanto um ponto de vista pode originar discussões proveitosas sobre tópicos particulares. O problema surge, frequentemente, quando a tentação de universalizar uma versão estrita e contida desse mesmo tópico se sobrepõe às linhas de argumento que deveriam vincular todo o edifício, seja este feito de comparações, seriações, contrastes ou outros modos de falar sobre coisas de que gostamos e que nos dizem muito. No mundo ideal sugerido por Leighton, o processo de ler coisas, ouvir coisas e ver coisas com a mente ganharia em ser automático (como um interruptor, por exemplo), e todos viveríamos melhor se assim fosse. O problema é que essas operações levam tempo e alguma paciência, sem garantia de que venham a ser acertadas. Do mesmo modo, o som que o poeta ouve é diferente do que ele (d)escreve, tal como o som que eu ouço diverge do som que o meu vizinho ouve (quando estamos ambos a ler). Há, também por isso, casos em que a literatura realmente não precisa da filosofia para coisa nenhuma.
© 2021 Ricardo Namora.
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