Ligações perigosas: comunicar na época do Romantismo e mais além

Ricardo Namora

UNIVERSIdade de COIMBRA | CLP
ORCID: 0000-0002-5526-8018

 

Yohei Igarashi. The Connected Condition: Romanticism and the Dream of Communication. Stanford, CA: Stanford University Press, 2020. 256 pp. ISBN 978-1-503-610736.

 

 

O Romantismo é, consabidamente, uma das épocas mais exuberantes da história literária e, consequentemente, das mais estudadas e dissecadas. Críticos de excelência como Harold Bloom, por exemplo, atribuíram-lhe uma excentricidade particular e uma honorabilidade precisa, tendo-lhe dedicado alguns dos seus ensaios mais vigorosos. Mas as sucessivas leituras do Romantismo que foram sendo oferecidas estão longe de representar uma continuidade ou uma comunhão de opiniões. T.S. Eliot, um dos mais influentes críticos do século XX, deplorava profundamente o Romantismo, atribuindo-lhe qualidades nefastas que, no seu argumento, colidiam de modo inexorável com o “tradicionalismo” conservador que ele havia herdado do seu mestre Irving Babbitt. Por outro lado, o período é equívoco no seu equilíbrio interno, quer estejamos a falar dos nomes que integram o cânone romântico ou dos objetos que exemplificam a pertença a esse mesmo grupo: certos autores, por exemplo, são hoje quase tão notáveis pelo seu legado epistolar como pelos seus méritos poéticos. Mas este tipo de exercício biográfico vai ser crucial para descrever a teoria da comunicação aplicada por Igarashi ao Romantismo, como se verá.

Esta teoria assenta nos princípios da “New Rhetoric”, um filão de filosofia intersubjetiva que aspira a exumar os princípios da retórica antiga numa perspetiva identitária forte muito vinculada aos discursos da pós-modernidade. Igarashi dirige a sua atenção a quatro poetas românticos (a saber, Coleridge, Wordsworth, Shelley e Keats), procurando emular o modus operandi utilizado magistralmente por William Empson no seu extraordinário livro Using Biography, de 1984: compor um mosaico de interpretação poética a partir de uma coleção impressionante de dados recolhidos através do contexto biográfico dos autores – e isso inclui cartas, conversas, notícias de jornal, bilhetes manuscritos e testemunhos em segunda, terceira e quarta mão. As diferenças, no entanto, parecem ser mais expressivas do que as semelhanças. Desde logo, Empson contorna o Romantismo, pulando de Fielding para Yeats e ignorando assim, deliberadamente, cem anos de poesia em inglês (os outros autores tratados são Marvell, Dryden, Eliot e Joyce); para além disso, Empson não parece levar-se a si mesmo tão a sério a ponto de necessitar de um argumento filosófico complexo para justificar o uso protuberante de dados biográficos para suplementar leituras mais ou menos canónicas dos autores aos quais se dedica. Igarashi, ao invés, condensa a sua análise num argumento questionável segundo o qual certas características poéticas, accionadas por, e mescladas com, episódios biográficos mais ou menos interessantes, revelam uma necessidade de comunicação inter-partilhada (“connectedness”), de que o Romantismo seria um exemplo maior.

A teoria da comunicação de Igarashi é, então, uma espécie de sonho partilhado (entre o autor e alguns poetas românticos) que mistura teoria dos media com hipóteses empiricamente implausíveis, sociologia ad hoc e um argumento filosófico circular. Em relação a Coleridge, dois momentos são descritos: o primeiro tem a ver com a agora famosa (e bastante escorregadia) descrição que aquele fez a propósito da composição de “Kubla Khan” – um dos mais memoráveis poemas saídos do Romantismo –, um processo que envolve sestas, sonhos, ópio e a ilusão de que uma espécie de sonambulismo terá produzido pelo menos parte do poema; o segundo, com uma história (provavelmente apócrifa) de acordo com a qual Coleridge teria sido, por uma breve temporada, repórter amador no parlamento inglês, tendo criado para o efeito um sistema semi-linguístico, semi-pictórico para tomar as suas anotações dos discursos políticos em tempo (quase) real. Wordsworth, por seu lado, é descrito como tendo cooptado, em parte da sua obra poética, uma forma de contenção formal que lhe havia sobejado da atividade profissional enquanto cobrador de impostos e contabilista municipal – ou, numa palavra, a sua poesia terá sido, parcialmente, uma adaptação de cifras e balancetes. Shelley, por seu turno, é visto como um exemplo de sociólogo e teórico dos media pelo mero facto de chamar a atenção para a possibilidade trivial que pessoas geralmente têm para comunicar melhor ou pior, ou estarem mais ou menos abertas às diversas instâncias dessa mesma comunicação (um estado que Igarashi apelida de “ambiversion”). Keats, por fim, é tido como símbolo e expoente da fantasia de uma comunicação imediata à distância – no caso, transcontinental –, algo que se torna muito evidente na sua correspondência (epistolar e não só). Deste modo, os quatro poetas (que, por uma sinédoque particular, passam a representar os limites do Romantismo) representam, de diversos modos, o “sonho de comunicação” que nutre o argumento de Igarashi.

Ora, o facto de Coleridge ter criado um sistema simbólico para suprir uma necessidade prática; a possibilidade de Worsdworth ter encriptado a sua poesia num sistema restrito semelhante a uma folha de cálculo; as reflexões de Shelley sobre teorias do discurso; ou a impotência de Keats para fazer chegar à família as suas missivas de forma mais célere não representam, por si só, uma “teoria da comunicação”. Serão, na melhor das hipóteses talvez, manifestações de um desejo humano de comunicar mais rapidamente e utilizando formas transmediais tão eficazes quanto possível – antecedido por sinais de fumo, em épocas remotas e, nos dias de hoje, radicalmente tecnológico. Aliás, se quisermos, pode descrever-se a história da humanidade em parte como um conjunto de tentativas pontuais e espasmódicas, crescendo em complexidade e sofisticação, para melhorar as possibilidades comunicativas e, por extensão, essa sensação de “conexão” tão prezada por Igarashi. As acções que perfazemos para “aproximar” o pensamento da escrita ou a escrita do outro, no entanto, são de natureza bastante diferente, e isto torna o argumento central do livro numa coisa algo confusa e multimodal, que deflaciona um conjunto de descrições que, de outro modo, sobreviveriam por si mesmas e sem mais. Uma “teoria da comunicação” cuja ênfase seja colocada em impossibilidades empíricas ou em desejos improváveis a cumprir num futuro ainda longínquo não precisa realmente de ser uma teoria – para tal, o sonho basta.

Não há problema nenhum em considerarem-se os poetas românticos como precursores, ou exemplos, de desejos imemoriais da humanidade, como (quase) todos os que têm a ver com o modo como comunicamos. Sem eles, talvez tivéssemos inventado na mesma o correio eletrónico, ou desenvolvido coisas como a inteligência artificial para aproximarmos os nossos cérebros das nossas mãos, ganhando tempo. Do mesmo modo, não há problema nenhum em usarem-se ferramentas biográficas para provar um ponto ou sublinhar uma intuição – como Empson, para voltar ao exemplo citado, fez exemplarmente. O problema está em confundir sonhos com teorias, desejos com processos e, no limite, intuições com argumentos. Tais exercícios apoucam o sonho e retiram força à filosofia, mesmo enriquecendo a interpretação literária.