Duarte Belo e a génese do arquivo
Manaíra Aires Athayde
UNIVERSIDADE DE COIMBRA, CLP
orcid: 0000-0001-8358-6104
Imagine entrar numa casa onde caixas com milhares e milhares de fotografias se confundem com paredes, e com paredes cheias de livros. À medida que vamos entrando, vemos ainda centenas de DVDs, CDs e discos rígidos empilhados pelos corredores, num espaço cuja intimidade é gerada pela ideia de memória que todos aqueles suportes abrigam. Estão ali mais de três décadas de mapeamento fotográfico do território português, dando origem a um complexo arquivo – o maior do género em Portugal – com cerca de 1,8 milhão de fotografias, impressas e digitais, além de cadernos, desenhos e mapas. Mais adiante, na sala de estar, outra surpresa: chama a atenção um puzzle enorme em cima da mesa, daqueles profissionais, certamente com mais de mil peças. Ficamos a saber que são ao todo cinquenta, já montados e organizados em talhões, todos com o mesmo tema: representações cartográficas do mundo, sobretudo imagens de cartografia antiga.
Entrar na casa-arquivo de Duarte Belo (Lisboa, 1968) é como estar diante de um imenso puzzle, em que a busca pela unidade através dos fragmentos organiza toda a lógica de vida daquele que é um dos maiores fotógrafos e artistas portugueses. Uma vida dentro do arquivo. E não só: uma “necessidade de arquivo” que irradia para outros campos da vida, como afirma na entrevista a seguir. Trata-se de um caso absolutamente extraordinário: Duarte Belo não somente é o criador de um arquivo raríssimo, como também o seu intérprete constante, concebendo uma metodologia própria a partir da qual pensa e repensa o arquivo. Este exercício de constantemente redesenhá-lo, em que cada projeto que desenvolve se confronta, de alguma forma, com o que está arquivado, foi um dos grandes motes da nossa conversa.
Figura 1. Duarte Belo mantém dois sítios na Web: no blogue https://cidadeinfinita.blogspot.com narra as suas experiências de trabalho e no site www.duartebelo.pt disponibiliza a descrição e imagens dos seus principais projetos. [Fonte da imagem: arquivo pessoal. © Duarte Belo.] |
Duarte Belo possui a perspetiva privilegiada de quem vê claramente as implicações da passagem do mundo analógico para o digital, inclusive no próprio espaço físico daquela sua casa em Queluz, grande testemunha da mudança dos tempos. Foi ali onde a nossa conversa começou, embora a entrevista, tal como segue transcrita, tenha-se dado algum tempo depois, por videochamada, já no contexto da pandemia de Covid-19, no dia 6 de março de 2021. Além do seu pensamento arquivístico e da liberdade criativa que o digital lhe trouxe, tendo sido um dos primeiros fotógrafos em Portugal a fazer a transição, falamos ainda sobre as suas obras dedicadas a escritores portugueses, a relação que concebe entre imagem e escrita, a longa experiência com o trabalho de campo, a crise ecológica e as mudanças na paisagem portuguesa. Conversamos, por fim, acerca do seu interesse em puzzles e como isto pode ser associado ao seu modo de pensar o arquivo. A entrevista foi dividida em quatro partes, abrangendo os principais temas e períodos dessa longa carreira: «Fotografia e literatura», «Obra e arquivo», «Imagem e mundo» e «Puzzle e arquivo».
Eis uma excelente oportunidade para entrar no “universo procurado” de Duarte Belo, como diz no diagrama FUGA (Fazeres de Unidade para a Génese de um Atlas): representação possível de um universo procurado, que sintetiza o seu pensamento arquivístico. Sejam bem-vindos ao universo do fotógrafo das “105 palavras”.
Figura 3. FUGA (Fazeres de Unidade para a Génese de um Atlas): representação possível de um universo procurado. Para Duarte Belo, “este diagrama é uma representação de mim próprio, não é qualquer forma de sistematização do conhecimento humano. É o meu mundo, o meu universo pessoal”, comenta. O material foi exposto pela primeira vez numa exposição homónima, realizada no Ar.Co – Centro de Arte e Comunicação Visual, em Lisboa, no início de 2019. © Duarte Belo.
A obra
Antes mesmo de se formar em arquitetura na Universidade do Porto, em 1991, Duarte Belo já havia dado início à aventura de explorar e documentar o património cultural e natural de Portugal, que resultou em notáveis projetos editoriais e exposições de grande dimensão. Em 35 anos de carreira, são cerca de 60 exposições individuais, além da participação em mais de 40 exposições coletivas. Publicou 15 livros, em que assina texto e fotografia, e outros 50 em coautoria. O principal foco de seu trabalho, a que deu início em meados dos anos 1980, é o mapeamento fotográfico da paisagem e do povoamento das mais diversas regiões de Portugal. Dedica-se, assim, ao registo da diversidade de paisagens, das formas de ocupação e domínio do território, de lugares arqueológicos, de obras arquitetónicas e das recentes transformações do espaço habitado. No ano passado, a partir de três viagens que fez por Portugal, publicou a trilogia Caminhar Oblíquo, Depois da Estrada e Viagem Maior (Museu da Paisagem, 2020), sobre a qual fala nesta entrevista.
Outros projetos de peso também marcam a carreira de Duarte Belo. Em Portugal Património (Círculo de Leitores, 2007-2008), o património cultural e natural do país vai sendo desvendado em dez volumes, após uma década de trabalho que deu origem a mais de 600 mil fotografias. Anos antes, Portugal – O Sabor da Terra (Círculo de Leitores, 1998), em coautoria com José Mattoso e Suzanne Daveau, já procurava contribuir para a redescoberta de várias regiões do país. O trabalho, desenvolvido para o Pavilhão de Portugal na Expo’98, resultou em catorze exposições simultâneas e um igual número de volumes publicado. Além disso, destacam-se obras como Orlando Ribeiro, Seguido de uma viagem breve à Serra da Estrela (Assírio & Alvim, 1999), na qual fotografa, em Vale de Lobos, a casa do reconhecido geógrafo português; e Portugal – Luz e Sombra: O País depois de Orlando Ribeiro (Círculo de Leitores, 2012), em que regressa a uma série de lugares fotografados pelo mestre.
O registo de lugares ligados a escritores portugueses, de suas casas a regiões evocadas em suas obras, é outra linha importante do trabalho de Duarte Belo. Nesta esfera, publicou Magna Terra – Miguel Torga e outros lugares (Documenta, 2018), O Núcleo da Claridade: Entre as Palavras de Ruy Belo (Assírio & Alvim, 2011), Ruy Belo – Coisas de Silêncio (Assírio & Alvim, 2000), entre outros. Em coautoria ou com a participação na autoria das fotos, assinalam-se Lugares de Sophia (Documenta, 2019), Cesariny – Em casas como aquela (Documenta, 2014), Maria Gabriela – Um beijo dado mais tarde (Assírio & Alvim, 2016) e Fotobiografia – Teixeira de Pascoaes (Assírio & Alvim, 2004). Grande parte do material encontrado nesses volumes também fez parte de exposições dedicadas aos respetivos escritores.
Figura 4. Principais livros de Duarte Belo, publicados entre 1990 e 2020. © Duarte Belo.
1. FOTOGRAFIA E LITERATURA
Podemos observar em seu trabalho dois eixos principais: um ligado ao mapeamento do território português e o outro dedicado a escritores portugueses, registando lugares evocados em suas obras ou mesmo o quotidiano desses autores. Como o seu trabalho incorpora esse diálogo com a literatura?
A minha relação com esses escritores é muito visual. Procuro, nos espaços que eles habitaram, aquilo que eu acho que tem mais impacto, que é mais relevante, que mais marca as pessoas que passem por esses mesmos lugares. No caso da Serra do Marão, por exemplo, é muito evidente aquele sítio da ermida de que fala Teixeira de Pascoaes, a força telúrica daquele lugar e aquela transição entre Minho e Trás-os-Montes. Aqueles vales do Corgo, Douro acima, têm muita força a partir daquele lugar da ermida que foi imortalizado nos poemas de Teixeira de Pascoaes.
Tem dedicado livros e exposições a escritores como Teixeira de Pascoaes, Sophia de Mello Breyner Andresen, Maria Gabriela Llansol, Mário Cesariny, Miguel Torga e Ruy Belo, seu pai. Como surgiu essa vertente do seu trabalho?
Logo no início, pouco tempo depois que comecei a me dedicar à fotografia, trabalhei sobre a obra do meu pai [o poeta Ruy Belo], à procura dos lugares por onde ele passou. Construí, assim, uma geografia dos espaços que ele tinha percorrido. Outro projeto de que me lembro bastante bem – e eu gosto do Portugal interior, um Portugal mais esquecido –, é o do [Teixeira de] Pascoaes, essa relação da poesia com a terra e com a montanha, naquele caso. Percorri a Serra do Marão não tinha eu ainda 20 anos. E depois continuei sempre ligado a escritores, muito por via da minha mãe [Teresa Belo], que conhecia muito bem esse universo, e porque também tinha grande facilidade de acesso às obras, tinha todas lá em casa.
Cresceu numa casa-arquivo, “onde os livros ocultavam as paredes e a palavra era o valor absoluto da construção do ser”, como diz na dedicatória do seu livro O Núcleo da Claridade: Entre as palavras de Ruy Belo (Assírio & Alvim, 2011). De que maneira isto se tornou decisivo para o seu trabalho?
Eu tenho alguma dificuldade em responder a isto. Como nunca conheci outro ambiente em criança, não tenho um grande distanciamento, mas certamente foi um aspeto que marcou muito a minha infância e a minha juventude, e que me marca até hoje. Tanto é que reproduzo um pouco disto nas casas onde vou vivendo, aquela ideia do ninho da infância, dessa casa forrada a livros. E sobretudo o conteúdo, o que interessa mais é o conteúdo e aquela ideia de conhecimento que os livros veiculam. O livro impresso continua a ser o formato que me interessa mais.
Pode nos contar algumas curiosidades acerca de projetos que envolveram fotografar a casa de escritores?
Eu fotografei a casa do [Mário] Cesariny ao mesmo tempo em que conversava com ele. Foi interessantíssima a conversa que íamos tendo enquanto eu fotografava, ainda com uma câmera analógica e com tripé. Ele ia falando, eu também… Acho que tudo isto se transmite um pouco depois para as fotografias. E houve um facto que eu achei muitíssimo interessante na casa do Cesariny. Ele vivia praticamente no quarto, que também era o seu ateliê. Um espaço bastante pequeno, completamente forrado com aquele imaginário surrealista dele, com coisas mais antigas e outras mais recentes, e com peças nas quais ele estava a trabalhar. Fui lá dois dias seguidos. E de um dia para o outro, achei que muita coisa tinha mudado no quarto. Ele, já perto dos 80 anos, mantinha uma vivacidade e uma capacidade de trabalho verdadeiramente invulgares. Isto marcou-me. Outro exemplo foi percorrer aqueles corredores e salas da casa de [Teixeira de] Pascoaes em Gatão, Amarante. Foi também impressionante, porque aquilo ainda estava muito marcado pela presença dele. A família tinha procurado manter a casa tal como ele a tinha deixado, embora na altura já tivesse morrido há uns cinquenta anos. Depois há outros lugares em que se pensa em versos ou em trechos de prosa, e quando se está nos lugares aquilo ganha um significado especial, aquela capacidade de relatar poeticamente o lugar. É algo que eu gostaria de poder fazer através da escrita. Tento fazê-lo, então, pela fotografia.
Figuras 5 e 6. Capas de Cesariny – Em casas como aquela [Documenta, 2014] e de Magna Terra – Miguel Torga e outros lugares [Documenta, 2018]. © Duarte Belo.
Também fotografou a casa da Maria Gabriela Llansol, não foi?
Eu fotografei a casa da Llansol em Sintra duas vezes. A primeira, com ela ainda viva. Lembro-me perfeitamente. Foi uma experiência um pouco diferente do que aconteceu com o Cesariny. Ele me deixava completamente à vontade, não queria saber o que eu fotografava ou não. Fotografei os chinelos dele no chão e também papéis rasgados, coisas assim. Eu estava completamente à vontade. Já com a Maria Gabriela não foi assim, ela era mais controladora, diria eu. Gostava que eu fotografasse o que ela queria que fosse fotografado. Era mais impositiva de um certo olhar. Eu depois voltei a fotografar a casa dela já depois de sua morte. Mas lembro-me perfeitamente dessa diferença de atitude entre ela e o Cesariny.
Foram duas experiências bem diferentes, então, fotografar a casa da Maria Gabriela Llansol antes e depois da morte dela?
Quando a Maria Gabriela já não estava mais lá, eu fiquei muito mais à vontade para fotografar a casa e tudo o que me apetecia. Como disse, notei um certo desconforto dela se eu apontasse a câmera para algumas situações, que eram perfeitamente normais de uma casa habitada. A casa era muito mais arrumada e limpa que a do Cesariny, por exemplo, mas eu não podia fotografar nada que ela achasse que estivesse desarrumado.
Já os projetos em torno de Sophia de Mello Breyner Andresen e de Miguel Torga suscitaram o regresso a lugares que são evocados em suas obras. Como foram essas duas experiências?
Do Miguel Torga, fotografei a casa onde ele nasceu, mas já havia muitas alterações, embora tivesse livros dele e alguma mobília, mas não se notava muito a presença física dele. E da Sophia, nem sequer fotografei a casa, porque a casa deixou de pertencer à família e, por isso, não houve sequer essa possibilidade. No caso da Sophia, foram mesmo fotografias de lugares. O que também fiz com o Torga. Fotografei os arredores de São Martinho de Anta, no concelho de Sabrosa, e os territórios onde ele ia caçar e fazia as suas caminhadas. E depois a estrada que ligava ao Douro, a estação do Ferrão e do Pinhão também. Estradas muito bonitas que ele descreve nos diários e em alguns poemas, quando apanhava um transporte da linha do Douro até São Martinho de Anta.
E como foi realizar um projeto dedicado a fotografar o espólio do seu pai?
Esse projeto consistiu em tentar, no espaço de um livro [O Núcleo da Claridade: Entre as Palavras de Ruy Belo, Assírio & Alvim, 2011], dar conta de todos os elementos que constituem aquele universo literário do meu pai. Isto é, fazer uma pequena amostragem de manuscritos, datiloscritos, ensaios, assim como de coisas mais pessoais, como bilhetes de cinema ou de comboio, peças, carteiras… Enfim, uma série de coisas que faziam parte do universo pessoal dele e que, no fundo, se seguirmos o rasto desses elementos, como digo no livro, teremos uma maior aproximação à fonte da própria poesia, ao universo em que ele se movia e que dava origem àqueles versos. São fragmentos… É como um puzzle onde faltam peças, e nós nunca conseguimos encontrar as peças todas. Essa dimensão para mim é muito sedutora e foi isto que procurei fazer nesse livro. Há também aqui uma questão do arquivo que me seduz, a vida que emana dos papéis e das coisas que uma determinada pessoa deixou. A vida que essas coisas têm para além do olhar do escritor que lhes deu vida, como elas permanecem no tempo.
Figuras 7 e 8. Fotografias do espólio de Ruy Belo publicadas em O Núcleo da Claridade: Entre as Palavras de Ruy Belo [Assírio & Alvim, 2011]. O espólio encontra-se no apartamento em Queluz onde o poeta viveu nos anos 1970.
© Duarte Belo.
Como essa “materialidade” deixada pelos escritores faz parte do seu processo criativo?
As coisas têm uma força muito grande, como essa materialidade do pensamento dos autores, são coisas muito fortes. Por isso, geralmente acho que é muito simples captar esse universo. Devo dizer que as questões materiais são fundamentais no meu modo de pensar. Nós temos um corpo que se relaciona. A separação entre corpo e espírito não deveria existir. Uma vez fotografei uma parte do arquivo do Almada Negreiros. Aqueles desenhos, a marca da tinta, a caligrafia, o notar-se mesmo a questão dos pincéis, dos pigmentos… Aquilo tem muita força. Nós olhamos para aquilo e ficamos a pensar que só nos pode transformar também a nós. Então, tento ir embebendo neste caminho. Como diria [Isaac] Newton, “aos ombros de gigantes”. Ou como diria a minha avó materna, “já vem de trás quem nos empurra”, que é um ditado que acho muito bonito. É pegar na força dessas pessoas e continuar esse fascinante caminho da condição humana, da criatividade e da interpretação da realidade.
E como é a sua relação com a escrita? Quando se tornou importante ser o autor não somente das imagens, mas também dos textos que integram as obras?
Foi logo desde o início. Quando eu preparava o livro sobre Orlando Ribeiro [Orlando Ribeiro, Seguido de uma Viagem Breve à Serra da Estrela, Assírio & Alvim, 1999] – e eu já havia feito as fotografias –, pensei em convidar alguém para escrever o texto. Como entendo que todo trabalho deve ser remunerado, e eu não tinha dinheiro para pagar alguém dignamente para escrever o texto, acabei escrevendo-o eu. Depois, também me pus a pensar que, se eu pedisse alguém para escrever esse texto, poderia ser que certos aspetos que eu achava importantes não fossem focados, como, por exemplo, a casa do Orlando Ribeiro. De maneira que escrevi o texto e foi assim que comecei a ganhar o gosto pelas palavras também.
Afinal, um dos grandes desafios dos seus projetos é juntar imagens e palavras.
Sim, é isto. E às vezes o desafio maior é mesmo com as palavras. Também comecei a escrever porque já não conseguia dizer com as imagens aquilo que queria dizer. E, então, quando já não tinha capacidade de comunicação com a fotografia, passei a usar a palavra.
Nesse seu processo de criação, pode-se dizer que há uma luta com as palavras?
Comecei a fotografar com 14 anos e nunca mais parei. Eu sou muito mais visual do que agarrado às palavras. Sinto-me muito mais à vontade com a expressão visual do que com a expressão escrita. Então, em qualquer espaço onde me ponham, se eu tiver uma câmera, encontro coisas interessantes para fotografar, enquanto que com a escrita tenho mais dificuldades, é uma luta mais cerrada para conseguir fazer alguma coisa. Mas gosto desse desafio da dificuldade da escrita.
Como o humor entra no seu trabalho?
Não tenho bem noção de como transmito humor para os trabalhos que faço. Mas, naturalmente, gosto muito dessa dimensão em qualquer pessoa, de um certo divertimento. No fundo, é o jogo da vida. Desse ponto de vista, tento também que o meu trabalho seja reflexo daquilo que sou e desse humor, de alguma forma. Há situações às vezes caricatas que eu gosto de fotografar. Eu aprecio muito o humor, as sutilezas da ironia, gosto muito dessa dimensão do pensamento, da leitura da realidade através do humor.
2. OBRA E ARQUIVO
Caminhar Oblíquo, Depois da Estrada e Viagem Maior [Museu da Imagem, 2020] constituem a trilogia que lançou no ano passado. Como surgiu o projeto?
A ideia de fazer a trilogia surgiu na sequência de outros dois grandes trabalhos. O primeiro deles, Portugal – O Sabor da Terra [Círculo de Leitores, 1998], fiz com José Mattoso e com Suzanne Daveau. Foi um trabalho sobre várias regiões do Portugal Continental, focado em povoamentos muito antigos. Este projeto diz respeito ao plano, em termos geométricos. Depois, fiz Portugal Património [Círculo de Leitores, 2007-2008], que durou dez anos de trabalho contínuo. Fui a todas as 4260 freguesias que havia na altura. Percorri 10 mil lugares, fotografei quase todas as cidades, vilas, aldeias. Este foi um trabalho sobre o ponto. E, depois, continuando a geometria euclidiana, ficou a faltar um trabalho sobre a linha, uma descrição do país através de linhas. É esta a base da trilogia Portugal 15-5-20, como eu e o João Abreu [coautor de Viagem Maior e responsável pela editora Museu da Paisagem, que publicou a trilogia] lhe chamamos. São os dias de campo de cada um dos trabalhos: 15 dias de caminhada, cerca de 530 quilómetros, que eu fiz para o Caminhar Oblíquo, entre o Penedo Durão, perto de Freixo de Espada à Cinta, e o Cabo da Roca; 5 dias de carro, com recursos muito reduzidos, da Serra do Larouco até a praia da Coelha, no Algarve; e os 20 dias de viagem do João, que percorreu de carro os mais de trinta anos de mapeamento fotográfico do território português feito por mim, resultando num trajeto de 6 mil quilómetros.
Figura 9. Capas dos livros que compõem a trilogia Portugal 15-5-20, lançada em 2020 pela editora Museu da Paisagem. © Duarte Belo.
Em que condições essas viagens foram feitas?
O primeiro, Caminhar Oblíquo, foi a pé, com mochilas às costas, numa dureza física bastante acentuada. Não direi psicológica porque estou habituado a passar vários dias sozinho, para mim não faz grande diferença, mas a uma pessoa que não está habituada a essa solidão teria custado bastante. Neste caso, o objetivo foi atravessar uma longa diagonal montanhosa, que divide o Portugal Atlântico, a norte, e o sul, influenciado pelo clima mediterrânico. Uma viagem de extraordinária diversidade de paisagens. O Depois da Estrada foi o percurso por uma linha reta a passar por lugares esquecidos do nosso país. Uma reflexão sobre uma série de aspetos sobre o viajar por terras onde não há nada especialmente significativo em termos de povoamento e de interesse turístico, terras longe dos eixos de desenvolvimento urbano do país, um Portugal pouco povoado. Enfim, uma reflexão sobre o que está para além daquilo que nós vemos. O último, Viagem Maior, foi o percorrer o maior número possível de lugares para descrever o país, numa viagem que resume três décadas do meu trabalho de mapeamento fotográfico da paisagem e da arquitetura de Portugal. A história da trilogia é esta. Aliás, desde o meu início, quando comecei a fotografar Portugal, o meu trabalho tem sido procurar sempre formas diferentes de representar o país. Acho que de alguma forma vou conseguindo inventar, e nunca mais acaba. Os espaços estão em contante transformação, o país está em transformação, e nós, que refletimos sobre essas coisas, também mudamos com o tempo.
Nunca havia pensado sobre o seu arquivo como o faz nesses volumes.
Essa trilogia é uma reflexão sobre o que está para além das fotografias, como elas se constituem em arquivo e como lidamos com essa realidade que fica depois de atravessarmos um determinado território. Esse contato com a obra do meu pai e de alguns escritores também me estimulou a desenvolver essas questões do arquivo dentro do meu próprio trabalho, uma vez que dei comigo a ter um aquivo com cerca de 1,8 milhão de fotografias, o que exige o desenvolvimento de ferramentas metodológicas muito interessantes, porque senão não conseguimos encontrar aquilo que procuramos. Ao desenvolver essas ferramentas metodológicas, estou a dar vida ao tal arquivo, a trabalhar sobre ele e a constantemente reinterpretá-lo.
Figura 10. Obra Vórtice, que Duarte Belo realizou com 46 mil fotografias de seu arquivo. Esta obra, que mede 10 x 7 m, mostra “o arquivo enquanto uma forma de pensar em sínteses do mundo”, segundo o autor. © Duarte Belo.
O seu trabalho permite-lhe ter um ponto de vista privilegiado acerca da transição entre o mundo analógico e o digital. O que pensa sobre isto? O que mudou na sua forma de ver e de pensar o arquivo a partir do digital?
É muitíssimo interessante ter vivido esse período de transição – no caso concreto da fotografia – do analógico para o digital. Eu fotografo muito mais agora do que fotografava com uma câmera analógica, porque os custos são muito menores e o processo de arquivamento depois é muito mais fácil também. É tudo mais simples, mais rápido e, de alguma forma, mais ecológico, dispensa aquele processo químico todo, com químicos poluentes. E é sobretudo o estar muito mais liberto para fotografar de forma mais intuitiva e espontânea aquilo que me rodeia. Isto para mim é muito gratificante no digital. Eu passei logo para o digital, muito mais depressa do que a maior parte dos fotógrafos, creio eu. Dei logo um salto, sem problema algum, mesmo quando o digital tinha uma qualidade inferior ao analógico, em termos técnicos.
Essa espontaneidade trazida pelo digital teve, portanto, consequências importantes não só na sua forma de conceber mas de pensar o arquivo?
Começar a desenvolver as próprias questões relacionadas com o arquivo tem muito a ver com o digital e com essa quantidade muito maior de fotografias que eu tinha que ter devidamente catalogada, arrumada, classificada e referenciada, essas coisas todas. E, depois, fui alargando para muitos outros aspetos da minha vida, não só profissional como pessoal, essa necessidade de arquivo gerada pelas fotografias. Eu depois ligo essas coisas todas. Atualmente, não distingo quase o que é pessoal do que é profissional. É a minha vida, vou levando para a frente.
Uma vida dentro do arquivo, afinal. Nesse processo, é curioso observar que o mundo “desmaterializado” do digital levou-o a desenvolver um pensamento sobre o arquivo, muito mais do que o mundo analógico e todos os problemas de espaço que suscita.
Sim, porque a quantidade de informação gerada pelo digital é muito maior, como sabemos. E depois há uma outra questão que eu acho muito importante: é que, no digital, não vemos as coisas, aquilo está codificado em bytes, num disco externo, num disco magnético ou óptico, no caso dos CDs e DVDs. Então, como não vemos as coisas em si e não lhes podemos tocar, aquilo exige outra relação com a matéria e uma necessidade de classificação diferente, para facilmente se encontrar as coisas. Não é o mesmo que tê-las em pastas numa estante, todas arrumadinhas, numa ordem sequencial. Ali não, a lógica é diferente. Isto obrigou-me a desenvolver outros aspetos relacionados com o arquivo. Agora, eu nunca estudei arquivística ou ciências da documentação. Tudo isto nasceu das necessidades que foram acontecendo no meu dia a dia, desta minha condição profissional. O que também acho curioso, porque são coisas que se desenvolvem espontaneamente devido à necessidade. Como diz o povo, “a necessidade aguça o engenho”.
Figura 11. Nesta montagem, Duarte Belo reflete sobre o processo editorial e destaca a “materialidade” do livro. © Duarte Belo.
Flexibilidade e adaptação são caraterísticas intrínsecas aos seus projetos, eu diria.
A plasticidade e a adaptação a uma realidade constantemente em mudança são extremamente importantes não apenas para os humanos, mas para qualquer ser vivo. Eu sou um darwiniano convicto, um evolucionista. E então, como o mundo está sempre a mudar, nós temos que nos adaptar, e ter plasticidade e jogo de cintura, por assim dizer, para essas transformações. No fundo, é como a passagem do analógico para o digital. E como o arquivo também; à medida que surgem novos problemas, é preciso resolvê-los e continuar. Isto é fundamental.
Em Depois da Estrada, deparamo-nos com a seguinte pergunta: “Que sociedade poderemos construir a partir desse mundo tão fascinante quanto estimulante que nos é mostrado por formas cada vez mais sofisticadas de observação?”. De que maneira lida com as dimensões da interpretação aliadas a essa coleta objetiva de dados a que se refere, que se intensificou como nunca a partir do digital?
Eu procuro uma ideia de verdade que nos é dada sobretudo pela ciência. Dados aceites cientificamente, dados que foram sendo adquiridos e que vão mudando as condições do nosso pensamento e do nosso conhecimento do mundo. É isto que nos vai aproximando de uma ideia de verdade que nos é transmitida sobretudo pelo conhecimento científico, muito mais do que pelas religiões, que são interpretações literárias do mundo em que vivemos, com todo respeito pelos crentes. A realidade é muitíssimo mais complexa do que qualquer narrativa que os humanos possam construir. Então, a aproximação a essa intricada realidade para mim é a coisa mais fantástica que os humanos podem conseguir. Vai sendo um processo lento de aproximação a determinadas verdades e a anulação de certos aspetos que nos induzem em erro, e é isto que também procuro no meu trabalho.
O seu trabalho está ligado a muitas áreas do conhecimento. À medida que incorpora discussões das ciências humanas, como a filosofia e a religião, relaciona-as com o que chama de uma “nova objetividade”, oriunda de “um conhecimento cada vez mais aprofundado de tudo quanto nos rodeia”, como afirma ainda em Depois da Estrada. Poderia nos explicar um pouco mais sobre essa sua forma de pensar, que vai sendo destrinçada na trilogia?
Eu gosto muito de ler ramos completamente diferente uns dos outros, desde a matemática à física, química, coisas de antropologia, evolução humana, biologia, etc. Não me torno especialista em nenhuma dessas coisas, mas há dados da evolução humana que acho que toda a gente deveria conhecer. Ou ao menos da evolução da vida na Terra. Isto é muito curioso porque põe fora uma série de hipóteses, de narrativas que eram tidas como verdadeiras e que claramente não são. Por exemplo, aquela história da filosofia do “quem somos”, “para onde vamos”, “de onde viemos”… Isto está tudo mais ou menos esclarecido. “Para onde vamos” será certamente a extinção. Mas o “de onde viemos” já se conhece através de uma série de etapas do nosso percurso evolutivo, pelo menos desde que nos separamos do ramo comum que tivemos com outros primatas. Esta história de como nos fomos adaptando é, para mim, uma história fantástica.
O seu pensamento arquivístico vai sendo construído nesse limiar entre a busca por certas “verdades” e o conjunto de interpretações que o próprio processo de busca gera?
Em textos como os de Depois da Estrada tento plasmar as minhas reflexões sobre esse mundo do mapeamento fotográfico do território e, depois, os conhecimentos que vou adquirindo sobre outras matérias, que me são muito queridas também, mas que estou longe de dominar, porque aquilo é de uma complexidade... Eu tenho a noção de que chego tarde. Quer dizer, por um lado, é uma grande vantagem, o interessar-me por essas coisas que muitas vezes são aprendidas nos primeiros anos da escolaridade, numa altura em que as crianças têm pouca capacidade de fixar de uma forma mais duradoura o significado de tudo aquilo que lhes dizem. E, então, numa fase mais avançada da vida, as coisas têm outra densidade, de facto, e depois podem se refletir de outra forma nos trabalhos.
Agora que já falou sobre o seu pensamento arquivístico, poderia nos dizer o que entende por arquivo?
Para mim, o arquivo é uma forma de arrumar a minha própria vida, não só o meu passado. E, depois, uma forma de estruturar uma série de trabalhos que vou fazendo e que tem o arquivo muito presente, cada vez mais. Por exemplo, num dos meus trabalhos mais recentes, que fiz no ano passado, para as celebrações do centenário de Sophia [de Mello Breyner Andresen], recorri a imagens dos anos 1990 que eu tinha em arquivo. Isto foi muito útil para aquilo que eu quis dizer sobre a própria Sophia e esta noção de passagem de tempo que está muito presente em alguns poemas dela, quando ela se refere à Antiguidade Clássica e à Grécia, àquele mundo mediterrânico. Eu acho que a presença do arquivo e de fotografias de vários tempos ajudam a compreender essa dimensão do arquivo. Para mim, o arquivo é muito natural – é, assim, uma arrumação. Muitas vezes as pessoas acham que se perde muito tempo com o arquivo, que é melhor nem tocar nessas coisas, arrumar papeladas. Eu acho justamente o contrário: acho que a arrumação e a organização de nossas vidas nos libertam muito mais do que nos prendem. No fundo, o arquivo é uma ideia de libertação que eu tenho sobre o não ter que me preocupar, por exemplo, quando procuro uma fotografia. Se não tiver as coisas bem organizadas, se calhar nem a encontro ou passo muitas horas à procura dela. Tendo um arquivo organizado, rapidamente encontro o que procuro e tenho mais tempo para me dedicar a coisas que considero mais importantes.
Quais são esses instrumentos de organização do arquivo que desenvolveu?
O meu arquivo está organizado numa estrutura em árvore, em que há um tronco principal com um número curto de elementos e que depois vai se ramificando cada vez mais, é uma estrutura básica. A minha forma de pensar o arquivo é muito analógica. Eu quero que o arquivo possa ser lido e interpretado por qualquer sistema informático ou por qualquer pessoa. Se eu usar uma aplicação informática que me arrume as coisas todas, se essa aplicação é descontinuada ou deixa de ser produzida por algum motivo, eu fico preso e tenho muita dificuldade em libertar-me. De maneira que a minha lógica arquivística é muito analógica, muito em árvore, reproduzindo uma série de estruturas da natureza. É uma estrutura que existe na base da própria vida na Terra. O meu arquivo, como muitos outros, reflete essa estrutura biológica.
Em vários livros, refere-se a um “percurso mental” sobre o seu arquivo fotográfico. Que percurso é este?
Lembrei-me, com esta pergunta, de um projeto que surgiu com o desafio que um amigo me fez. Foi quando percorri 18 km pelo Porto, ali na zona da Pasteleira, Foz e Passeio Alegre. Este é um caso muito evidente de como a passagem por certos sítios me fez ativar memórias, digamos assim, desses próprios sítios que eu tinha fotografado há 30 anos. Muitas vezes, penso nisto: o arquivo é como uma cidade, onde percorremos as ruas, entramos em edifícios e casas, vemos parques arbóreos. Para mim, o arquivo é muito isto. De maneira que, muitas vezes, vejo um sítio e lembro-me logo de situações que fotografei há vários anos. Lembro-me perfeitamente das fotografias, de onde elas estão. Às vezes há projetos que nascem dessa mesma forma de ler mentalmente o arquivo. O que é curioso no meu arquivo é que é tudo produzido por mim. Não é um arquivo em que eu vá trabalhar, como era, por exemplo, no caso do arquivo do meu pai. Eu aqui tenho um acesso privilegiado e único a tudo, e este projeto no Porto foi um exercício prático de buscar no arquivo situações que me são suscitadas pelo presente.
Uma das grandes particularidades do seu trabalho é justamente o modo como cria o seu arquivo e como vai, ao longo do tempo, sendo o intérprete dele.
Sim, vou fazendo reinterpretações diferentes do meu próprio arquivo ao longo do tempo. As imagens antigas vão tendo significados diferentes com o passar do tempo. Além disso, também escrevo coisas que vão mudando. São as tais expressões que não consigo dizer através da fotografia e que depois recorro às palavras.
A relação entre arquivo e memória afetiva está bem presente na sua vida, então.
Claro, sem dúvida alguma. Boas ou más, são memórias muito minhas, com as quais tenho uma afeição especial. Mesmo aspetos negativos da vida se consegue transformar, ganhar distância, reinterpretá-los de uma forma muito mais lúcida e clara, e tirar-lhes a carga negativa que possam ter.
Figura 12. Montagem que Duarte Belo intitulou de Manualidades. É um exemplo de como o autor está sempre a pensar o seu arquivo e o próprio processo criativo. © Duarte Belo.
3. IMAGEM E MUNDO
Com a aceleração dos fluxos de informação, a dependência da imagem é cada vez maior, ao mesmo tempo em que é crescente o seu consumo fortuito. Com as tecnologias digitais, a imagem tem dominado espaços de formas muito distintas às de antes. Neste contexto, nota grandes diferenças na forma como o público lida com o seu trabalho?
Eu noto que há diferenças, mas como acho que está tudo sempre a mudar, não faço nenhum juízo moral de como era lida a imagem há 50 anos ou como é lida hoje. As coisas são necessariamente diferentes, tal como eram há quase duzentos anos, na altura em que apareceu a imagem fotográfica. Vamos caminhando de revolução em revolução. E como se produz cada vez mais imagens, é muito curioso como os seres humanos se vão adaptando a esse mundo sempre em mudança. Mas não tenho assim nenhum juízo moral, nenhuma condenação ou saudades desse passado em que a imagem tinha um significado diferente. Acho que o significado muda, mas continua tudo muito rico e complexo, e nós podemos sempre ler o mundo a partir do que ele era no passado. Eu estou muito saturado, como quase toda a gente, de imagens, mas isto traz outras questões relacionadas com o pensamento, com o que é a própria fotografia, a própria imagem, a forma como nos representamos, que são muitíssimo interessantes e de uma riqueza extraordinária. São questões cada vez mais complexas e há cada vez mais formas de expressão mais sofisticadas para comunicar este mundo em que vivemos. Só acho que pode ser bom. Não tenho receio nenhum da concorrência, digamos assim… Nem da sacralização, nem da perda dos templos do antigamente.
Muitos dos seus projetos implicam caminhar em condições difíceis, muitas vezes sozinho, com poucos recursos. Pode nos falar um pouco mais sobre essa ascese no seu modo de lidar com o mundo?
Eu tento adaptar-me a meios relativamente reduzidos, a uma forma de vida com recursos escassos, o que é muito pragmático. No livro Caminhar Oblíquo [Museu da Paisagem, 2020], reflito um pouco sobre essa relação com o mundo, com a dureza, com o sofrimento. O sofrimento faz parte da vida, quer queiramos ou não, há sempre momentos mais duros que outros, mas estão sempre presentes. É um pouco como o nosso próprio corpo. Entendo que devemos manter o nosso sistema imunitário entretido com o exterior, e não com o interior, senão ele vira-se contra nós próprios. A vida é dura para todos os seres vivos e, como tal, temos que lutar pela sobrevivência diariamente. Quer dizer, é uma sobrevivência que tem que ser conquistada no dia a dia e eu gosto de refletir também sobre essas questões no meu trabalho, daí a tal austeridade e o ascetismo.
Além disso, lidar com a escassez e a austeridade tem muito a ver com as discussões ecológicas atuais, sobre as possibilidades de continuidade da vida humana na Terra. O que pensa sobre a crise ecológica em que vivemos?
Acho que as coisas só vão melhorar se houver uma relação de custo/benefício. As pessoas agem sempre economicamente em função daquilo que lhes dá prazer, riqueza, bem-estar. E, como tal, não é com boas vontades que vamos conseguir alterar as coisas. O sistema adapta-se, reage. Ou acontece uma tragédia qualquer ou então vamos encontrando soluções tecnológicas que nos permitam empurrar com a barriga os problemas que vão surgindo. Até agora fomos sempre conseguindo soluções e este caso da pandemia é notável. Aparece um vírus e, no período de um ano, consegue-se uma vacina. Mas, de forma geral, a minha perspetiva é um bocadinho pessimista, sim. Acho que não está ainda em causa a extinção da espécie humana, mas se calhar um dizimar muito acentuado é capaz de acontecer num período relativamente curto. Não é que eu deseje isto, obviamente, mas não é com boas intenções, é com actos, de facto, que se conseguem coisas. As pessoas dizem mal das tecnologias e do consumismo, mas ninguém abdica de um telemóvel de última geração e dos computadores, inclusive eu. Sei que, quando vou para o campo, apesar de ser uma viagem com meios muito reduzidos, levo uma câmera fotográfica que tem muito investimento humano. É uma câmera produzida numa sociedade capitalista, numa economia liberal. Estas coisas não existem se não houver mercados poderosos a pedi-las. De maneira que isto é tudo feito de prós e contras, e o ponto de equilíbrio é difícil.
Nestas três décadas de carreira, há momentos inusitados de que se lembre de suas caminhadas pelo campo?
Há sempre situações curiosas que acontecem, mais ou menos caricatas. Dormir no campo para mim é uma coisa muito enriquecedora, de que gosto particularmente. É sempre uma aventura diária. Saber onde vou ficar a dormir, por exemplo. Às vezes encontro pessoas muito interessantes, com quem troco algumas palavras. Mas há coisas desagradáveis no trabalho de campo também, como os cães e o medo de ser mordido. Uma das situações mais curiosas que passei foi no Douro, quando tinha 19 anos. Estava a fazer uma caminhada dura entre Barca D’Alva e Mirando do Douro, sozinho, de mochila às costas. Estava numa cascalheira, descalço, relativamente longe do rio, e passou por cima de mim um enxame de abelhas, uma nuvem preta com quatro, cinco metros de comprimento, relativamente baixa. Nunca mais me aconteceu uma situação dessas. Na altura fiquei assustado, pensei que pudessem me atacar. Depois soube que não, que quando elas migram de uma zona para a outra vão sempre com aquele foco, nada as interrompe. Mas foi uma das situações mais interessantes, e estranhas, que vivi nas minhas caminhadas na natureza.
Muitas coisas mudaram nas paisagens do campo?
Mudou muita coisa mesmo. Nota-se, sobretudo, no trecho de maior desenvolvimento do país, entre Setúbal e Braga (Setúbal, Lisboa, Leiria, Coimbra, Aveiro, Porto e Braga). Eu fiz quase todas as serras do Norte de Portugal a pé, numa altura em que só era possível fazê-las a pé porque não havia estradas nem outras formas de acesso. Com a construção das centrais eólicas, está tudo cheio de acessos agora, até ao topo das serras. São muito poucas aquelas que já não têm centrais eólicas. E depois há muito mais estradas e autoestradas, chega-se muito mais depressa a todo lado. O país está-se a transformar muito aceleradamente.
Quanto às mudanças climáticas, o que os seus olhos captaram durante essas décadas?
O que sinto é que, se for no verão fazer uma caminhada numa serra granítica, está mais difícil encontrar água. Na Serra da Estrela, por exemplo, há trinta anos não custava nada encontrar água em qualquer época do ano, sobretudo no verão, havia sempre as charcas de altitude. Hoje já não é assim. Tal como neva cada vez menos na Serra da Estrela. Nos anos 1980, de setembro até maio, a Serra estava quase sempre nevada, o que agora é quase impossível de acontecer.
4. PUZZLE E ARQUIVO
Para finalizar a nossa conversa, pode nos contar sobre o seu trabalho com puzzles?
Eu nunca falei sobre isso. Tenho perto de 50 puzzles já todos montados e gostava de um dia expor esse trabalho. São todos sobre representações do mundo, representações do planeta Terra ao longo do tempo, sobretudo cartografia antiga, embora haja também imagens recentes, como imagens de satélite. Eu gosto muito de pensar nas metodologias que temos que desenvolver intuitivamente para construir um puzzle de 9 mil peças, em que é preciso, de facto, definir processos que nos permitam continuar o trabalho. São tarefas muito curiosas. O meu trabalho vai sendo, no fundo, a construção de um puzzle muito grande, por isso é que vou, assim, juntando cada vez mais peças a representar esse meu universo.
Qual a importância do puzzle para a construção do seu pensamento sobre o arquivo?
Eu ando a escrever sobre isso. Por um lado, há a questão do jogo, de uma certa inutilidade de tudo isso. De usar o tempo de forma livre, sem um fim muito utilitário. Depois há a questão das metodologias, de conseguir um processo para dominar a montagem do puzzle. É um jogo cujas regras vão sendo definidas no decurso do próprio jogo. Isto para mim é muitíssimo interessante. Depois, é construir, a partir de peças, de fragmentos que praticamente não têm significado, um conjunto, no fim, coerente e com significado. Isto é, se nós olharmos para uma peça, ela não diz praticamente nada, mas depois ela é fundamental na construção do conjunto. Há ainda as questões de índole pessoal, que tem a ver com a perseverança, com a não desistência face às adversidades. É o não desistir e a luta constante para atingir um objetivo. Uma coisa puramente lúdica, como ir fazer uma caminhada. Aparentemente não tem significado algum, não tem valor, não tem interesse. É isto o que eu acho fascinante.
Mudou muito a maneira como olha para o seu arquivo hoje?
Mudou muito, sim. Sobretudo esse desejo de sistematização. Eu disse certa vez, numa palestra, em tom de brincadeira, quando falava a respeito do meu trabalho com o arquivo, que gostava que o meu trabalho todo coubesse num caderninho.
REFERÊNCIAS
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