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‘Nenhum Problema Tem Solução’:
Um Arquivo Digital do Livro do Desassossego 
Manuel Portela
CLP | Universidade de Coimbra

A migração de textos impressos e manuscritos para o meio digital resultou na progressiva formalização de princípios e normas de codificação eletrónica que permitem tirar partido da processabilidade automática. A TEI-Text Encoding Initiative (Burnard e Bauman 2012) produziu um conjunto de normas técnicas que representam a informação textual e metatextual dos originais através de um conjunto de esquemas e marcadores XML, com o objetivo de aumentar a processabilidade dos textos e a interoperabilidade entre diferentes sistemas e plataformas (Schreibman 2002 e 2010; Renear 2004; Vanhoutte 2004; Burnard et al. 2006; Cummings 2008; Barney 2012)[1 ].Diversos projetos de edição eletrónica maximizaram a lógica hipertextual do meio, estabelecendo redes de relações entre textos e imagens em diversas configurações documentais de tipo autoral e editorial (McGann 1993-2008; Smith 1994-2012; Eaves et al. 1996-; Werner 1999; Drucker 2006; Jansen et al. 2009; Van Hulle e Nixon 2011-). Tomando por vezes a forma de arquivo, estes projetos editoriais funcionam na base de uma tensão entre uma função representacional – que garante a correspondência dos fac-símiles (ficheiros de imagem) e transcrições (ficheiros de texto) a um conjunto de originais manuscritos, datiloscritos ou impressos – e uma função simulatória – que procura maximizar as novas propriedades resultantes da remediação digital.

Apesar da sofisticação teórica que está na base da reconcetualização das práticas e formas editoriais em meio digital, a sua concretização algorítmica fica aquém do potencial representacional, simulatório e interpretativo projetado para o novo meio (Shillingsburg 2006). O conceito de textualidade radial formulado por Jerome McGann (2001) – que pressupõe a equivalência entre todas as instanciações materiais de um texto e, portanto, a possibilidade de qualquer delas funcionar como centro da constelação de testemunhos genéticos ou editoriais – é limitado na sua implementação digital quer pela presença da hierarquia dos códigos bibliográficos originais, quer pela hierarquia da estrutura de ficheiros e da interface que regula a representação e a interação com os materiais digitalizados (Earhart 2012). Um arquivo digital que pretenda ir além de uma função repositorial implica a criação de um espaço eletrónico que tire pleno partido das seguintes propriedades: a reconfiguração contínua dos artefactos digitais ao nível do código, a capacidade de marcar eletronicamente essas reconfigurações, a agregação de documentos e dados em ambientes integrados, e a criação de espaços de interação colaborativa e intersubjetiva (Drucker 2009 e 2011).

Figura01
Figura 1. Estrutura radial do Arquivo LdoD. A estrutura de base de dados e os marcadores de codificação textual eletrónica a introduzir estabelecem uma rede de relações entre todos e cada um dos fragmentos de tal modo que a partir de cada um deles é possível chegar automaticamente a qualquer outro que seja uma sua variante. Além disso, qualquer dos fragmentos agregados nos sete conjuntos possíveis (fac-símile, edição 1, edição 2, edição 3, edição 4, edição 5, edição n) pode ser o centro da constelação. © Manuel Portela, 2012.

 

Figura02
Figura 2 . Três dimensões do Arquivo LdoD. A dimensão genética (A) permite gerar uma narrativa da composição; a dimensão social (B) permite gerar uma narrativa da edição e receção; a dimensão virtual (C) permite explorar quer permutações de A e B na construção de versões, quer os próprios processos e mecanismos da escrita e do livro. © Manuel Portela, 2012.

O projeto de criação de um Arquivo Digital do LdoD procura constelar radialmente os testemunhos textuais existentes (fac-símiles e edições 1 a 5) ou a existir (edição n) [cf. Figura 1]. As capacidades processual, participatória, enciclopédica e espacial do meio digital (Murray 2012) são exploradas de modo a criar uma rede complexa de relações documentais e um conjunto de funcionalidades de simulação e interação aberta com essa rede documental. Além da dimensão genética (construção do LdoD pelo autor) e da dimensão social (construção do LdoD pelos editores), o Arquivo Digital do LdoD prevê uma dimensão virtual (construção do LdoD pelos leitores), com um conjunto de funcionalidades interativas e dinâmicas explicitamente programadas no modelo [cf. Figura 2]. A codificação eletrónica dos fragmentos textuais deverá possibilitar configurações radiais que respondem a múltiplas interações em cada uma das três dimensões: genética, social e/ou virtual. Ao concetualizar e articular estas três dimensões, o projeto LdoD procura submeter os modelos de edição crítica eletrónica a processos literários digitais no contexto dinâmico da Web 2.0 (Benel e Lejeune 2009; Fraistat e Jones 2009; Siemens et al. 2012).

Figura03
Figura 3. Uma descrição funcional do Arquivo LdoD que distingue três funções: representação textual, simulação contextual e interação interpretativa. © Manuel Portela, 2011.

Trata-se de reinventar criticamente no arquivo digital as relações entre as funções de representação textual, simulação contextual e interação interpretativa [cf. Figura 3]. Além de fac-símiles digitais, transcrições textuais e outras formas de remediação, a representação textual implica a inclusão de dados sobre os documentos originais (registos bibliográficos completos, com uma descrição do meio e técnica de inscrição, por exemplo), mas também dados sobre os próprios derivados digitais (processos, normas, formatos, resoluções), bem como protocolos de preservação e arquivo (garantindo a sua integração e interoperabilidade com outros repositórios digitais). A simulação contextual refere-se à capacidade do arquivo para recuperar a história da produção (a dimensão genética do arquivo) e a história da edição e receção das obras (a dimensão social do arquivo), incluindo a autoconsciência do arquivo como nova ferramenta para produção de contexto (ou seja, para estabelecer a sua própria rede de associações intertextuais entre os itens que agrega e categoriza). Finalmente, a interação interpretativa descreve o conjunto das funcionalidades digitais como um ambiente crítico para a geração de novas interpretações. A codificação eletrónica (XML, XSLT, HTML5, etc.), os metadados, a estrutura da base de dados e a programação devem resultar na descoberta de novos padrões e relações através do processamento automático. Pesquisas agregadas de acordo com critérios abertos que resultam numa constelação radial de documentos ou a possibilidade de adicionar edições e anotações dos utilizadores são dois exemplos desse nível de reinterpretação crítica. A implementação desta função implica uma concetualização do arquivo como um espaço de investigação.


1. Do ato de escrita à máquina do livro
A edição eletrónica de manuscritos modernos que constituem projetos inacabados de livros pode conceber-se a partir de diversos princípios [2 ]. O princípio usado pelos editores do Arquivo do LdoD toma por base a unidade trecho ou fragmento, entendida como uma certa extensão textual com marcadores temáticos ou materiais de unidade, que podem ser reforçados ou não por marcadores gráficos específicos: por exemplo, um espaço maior ou um traço entre duas sequências textuais manuscritas que sugere uma interrupção; ou um trecho datilografado; ou ainda, um texto publicado em revista. As unidades de composição a integrar no Arquivo do LdoD têm por base quer o conjunto formado pelas quatro edições críticas, quer os fac-símiles digitais dos testemunhos autorais correspondentes a esse conjunto [cf. Figura 4]. Por outro lado, é possível pensar no ato de escrita, à semelhança do ato de fala, como uma certa unidade temporal de escrita, que nem sempre é coincidente com a unidade material documental (folha solta, ou conjunto de páginas num caderno, por exemplo), ou com outras unidades do discurso escrito, como o parágrafo, ou da forma bibliográfica, como o capítulo. A existência de fragmentos embrionários, de escala quase aforística, juntamente com fragmentos de extensão variável, escritos em momentos separados no tempo, sugere precisamente essa descoincidência entre a unidade temporal de escrita e o processo cumulativo e retrospetivo de acreção e reescrita que produz coerência semântica e coesão sintática. Para Edward Vanhoutte (2006) o manuscrito moderno carateriza-se por uma rede complexa daquelas unidades temporais de escrita. Marta L. Werner (2011), por seu turno, descreve o manuscrito moderno como registo da dinâmica do texto no processo de criar-se a si mesmo, situando-o num espaço liminal de inscrição privada que se reflete materialmente na sua condição textual indisciplinada.

Figura04
Figura 4. LdoD 18-7-1916: ‘Nenhum problema tem solução’. Transcrição textual topográfica. Referência BN do fac-símile digital: bn-acpc-e-e3_144d2_0351_135r_t24-C-R0150. © Biblioteca Nacional de Portugal.

Ao usar a noção de trecho para se referir às unidades de composição do LdoD, Fernando Pessoa mostra-se ciente dessa dimensão de agregação e sequenciação de trechos como um dos princípios composicionais do LdoD. O processo de revisão que imagina em direção ao horizonte bibliográfico parece implicar a produção simultânea de coerência psicológica e de coerência estilística:

LdoD. (nota)
A organização do livro deve basear-se numa escolha, rígida quanto possível, dos trechos variadamente existentes, adaptando, porém, os mais antigos, que falhem à psicologia de Bernardo Soares, tal como agora surge, a essa vera psicologia. Aparte isso, há que fazer uma revisão geral do próprio estilo, sem que ele perca, na expressão íntima, o devaneio e o desconexo lógico que o caracterizam.
Há que estudar o caso de que se devem inserir trechos grandes, classificáveis sob títulos grandiosos, como a Marcha Fúnebre do Rei Luís Segundo da Baviera, ou a Sinfonia de uma Noite Inquieta. Há a hipótese de deixar como está o trecho da Marcha Fúnebre, e há a hipótese de a transferir para outro livro, em que ficassem os Grandes Trechos juntos. (Pessoa 1982: 8)

Fernando Pessoa imagina submeter os fragmentos à coerência do livro, reconhecendo quer a natureza desconexa do estilo devaneador de Bernardo Soares, quer a afinidade que mantêm entre si os trechos maiores. A coerência bibliográfica parece depender, em simultâneo, de duas lógicas: de uma lógica externa de organização que sequencia e articula os elementos de acordo com a estrutura sintática e o horizonte de totalização do códice, criando unidade a partir do seu caráter discreto e finito; e uma lógica interna de organização que associa os textos por afinidades estilísticas e semânticas, produzindo unidade bibliográfica por efeito cumulativo da coerência discursiva entre fragmentos breves e trechos longos. A dificuldade em fazer coincidir o espaço material e discursivo da escrita com o espaço material e concetual do livro resulta num processo de inacabamento e de reconfiguração sucessiva da conformação entre espaço da escrita e espaço do livro.

Deste modo, a cisão heteronímica não decorre apenas da subjetividade retroativa produzida por um modo de escrita. Ela resulta também da descoincidência entre ordem da escrita e ordem do livro, que se desdobra numa autoconsciência autoral como produto das regras da escrita e numa autoconsciência autoral como produto das regras do livro. ‘Bernardo Soares’ surge como o nome de uma psicologia manifesta num estilo e como nome de autor potencial de um livro, autor que é coproduzido retroativamente pelo livro que deseja produzir e não apenas pela psicografia do seu modo de escrita. Parece implicar que as regras de escrita que o definem enquanto hetero-autor são também um dispositivo editorial de produção de coerência bibliográfica, através do qual o heterónimo se edita enquanto autor, determinando os textos que fazem parte do seu livro em construção e, através dessa produção conjunta de escrita e de códice, o sujeito da escrita se produz enquanto autor do livro.

As obras inacabadas de natureza fragmentária editadas postumamente podem ser sujeitas a duas estratégias de edição antagónicas: uma das estratégias consiste na produção de unidade que minore a natureza fragmentária e inacabada, transformando um conjunto de folhas soltas e cadernos num todo bibliograficamente coerente; a estratégia oposta consiste na reconstrução minuciosa da fragmentariedade original, isto é, na edição dos fragmentos enquanto fragmentos (Werner 1995 e 1999; Dedner 2006). De certo modo, as edições de Jacinto do Prado Coelho, Teresa Sobral Cunha e Richard Zenith sequenciam e estruturam os trechos e fragmentos segundo princípios de racionalidade bibliográfica, enquanto a edição crítica de Pizarro tenta captar a lógica temporal e cinética de composição e revisão, diluindo a racionalidade bibliográfica na evidência do fragmento material como evidência da temporalidade cumulativa e fluida dos atos de escrita [3 ].

Tomando como ponto de partida a concetualização da escrita e do livro no próprio LdoD, a segunda componente do projeto, intitulada “Conceitos e Formas da Escrita e do Livro na Imaginação Modernista”, tem como objetivo analisar histórica e teoricamente formas e conceitos da escrita e do livro nas práticas modernistas. A possibilidade e a impossibilidade do livro serão analisadas no discurso e nas práticas modernistas e ao longo do século XX, consideradas num contexto translinguístico e transcultural. Por um lado, analisamos processos e obras que tomam a materialidade tipográfica e a unidade concetual do livro como horizonte do ato de escrita; por outro lado, analisamos processos e obras em que a escrita excede os limites discursivos e conceptuais do livro, centrando-se numa exploração aberta da processualidade do próprio ato de escrita que resulta em dispersão, fragmentariedade e incompletude. Esta teorização tem três finalidades principais: (a) elucidar a relação entre escrita e livro na produção de Fernando Pessoa [4 ]; (b) enquadrá-la na consciência autorreflexiva da escrita e dos processos bibliográficos e autobibliográficos na literatura modernista; e (c) desenvolver um modelo de investigação das práticas literárias centrado na materialidade verbal, técnica e social da linguagem e da comunicação.

 

2. Edições críticas eletrónicas
As últimas décadas caracterizam-se por transformações tecnoculturais cujos impactos se têm intensificado em inúmeras atividades humanas. A conectividade e a reprodutibilidade digitais originaram novas práticas criativas e novos métodos de produção de conhecimento (Schreibman e Siemens 2004; Schreibman et al. 2008; Deegan e Sutherland 2009a; McGann et al. 2010). Os média digitais abriram um amplo espaço de investigação sobre as materialidades da comunicação, designadamente sobre as interações entre cultura e tecnologias digitais. Uma das áreas emergentes diz respeito à história e à análise das materialidades técnicas enquanto tecnologias de inscrição e à exploração estética da tecnomediação na era digital (Kittler 1999; Manovich 2001, 2008 e 2012; Gitelman 2008; Hayles 2012). Novos modelos de descrição e análise das práticas de produção e comunicação mediadas pelo livro e pela escrita tiveram impacto sobre a crítica textual. Refiram-se, em particular, novas abordagens da cena da escrita e da interação entre processos de escrita e publicação nas práticas modernistas. Refira-se ainda o recente projeto suíço-alemão dedicado à genealogia da escrita (“Genealogie des Schreiben”), que produziu novos estudos a partir da análise de manuscritos e datiloscritos de autores como Friedrich Nietzsche, Friedrich Dürrenmatt, Paul Celan, Walter Benjamin, Roland Barthes, René Char, Octavio Paz, entre outros [5 ]. O próprio Livro do Desassossego foi objeto recente de uma edição crítica (Pessoa 2010) e a obra de Fernando Pessoa continua ser um objeto crítico produtivo para os estudos literários contemporâneos [6 ]. De resto, a centralidade do LdoD para a compreensão da obra de Pessoa e da literatura modernista é atestada quer pela investigação, quer pelas edições e traduções que continuam a ser produzidas.

A migração do património cultural e literário para o meio digital tem colocado com renovada acuidade o problema da representação de objetos e práticas literárias, como demonstra a teorização gerada pelas dezenas de projetos de edição crítica e de arquivo digital da produção literária de diversos períodos (Smith 2004; Burnard et al 2006; Vanhoutte e Van der Branden 2009; Deegan e Sutherland 2009b; Flanders 2009; Robinson 2009; Shillingsburg 2009). Alguns dos projetos de edição e arquivo eletrónico foram entretanto objeto de análise sistemática do ponto de vista das suas funcionalidades e implicações teóricas, como aconteceu, por exemplo, com os Dickinson Electronic Archives (Christensen 2008) e The William Blake Archive (Lourenço 2009). A consciência da flexibilidade da textualidade digital resultou em diferentes estratégias de remediação do manuscrito e do impresso em meio digital. Expressas através de teorias e conceitos como ‘hypertext rationale’ (McGann 1996), ‘radical scatters’ (Werner 1999), ‘fluid text’ (Bryant 2002 e 2007) e ‘linkemic approach’ (Vanhoutte 2000 e 2006), estas estratégias de remediação valorizam, por um lado, a codificação e visualização da variabilidade textual e, por outro, a reconfiguração variável de todos os elementos textuais a partir de opções dos utilizadores. Enquanto a primeira estratégia projeta no espaço topografado do ecrã a dinâmica temporal da génese autoral e da socialização editorial, a segunda decorre do aparato crítico hipertextual e da processabilidade computacional:

This linkemic approach provides the user with enough contextual information to study the genetic history of the text, and introduces new ways of reading the edition. Because of the fact that a new document window, displaying a text version of the user's choice, can be opened alongside the hypertext edition, every user can decide on which text to read as her own base text. The hypertext edition can then be used as a sort of apparatus with any of the versions included in the edition. This way, hypertext and the linkemic approach enable the reading and study of multiple texts and corroborate the case for textual qualifications such as variation, instability and genetic (ontologic/teleologic) dynamism. (Vanhoutte 2006: 168)

A esta possibilidade de configuração variável da variabilidade textual acrescenta-se a investigação sobre gestão de metadados em edições críticas e genéticas digitais de grande complexidade (Pitti 2004; Price 2008; D'Iorio 2010). Uma parte do campo atualmente designado como Humanidades Digitais teve origem no desenvolvimento de projetos de edição e arquivo digital do património linguístico e literário, e na sua estruturação sob a forma de bases de dados analisáveis com ferramentas informáticas. O potencial do espaço eletrónico para simular diversas materialidades tem sido explorado de múltiplas formas, dando origem gradualmente a um conjunto de protocolos técnicos comuns, sucessivamente atualizados pela Text Encoding Initiative e outras normas. Ao mesmo tempo, diversos centros que desenvolvem edições digitais de corpora linguísticos e literários têm concebido e desenhado ferramentas digitais capazes de responder às melhores práticas de representação, codificação e manipulação de objetos digitais, incluindo ferramentas de edição e marcação textual em ambiente web, criação de comunidades em linha e espaços de interação crítica com os objetos digitais publicados, em contexto de ensino e de investigação[7 ]  São igualmente relevantes os projetos de investigação que procuram resolver problemas de visualização da informação através de interfaces gráficas que representam múltiplas versões e variantes simultaneamente [8 ].

Projetos da última década e meia oferecem uma rica experiência editorial no que diz respeito às potencialidades e limitações do meio digital para agregar, analisar e simular vastos corpora de textos e imagens. O Arquivo LdoD procura incorporar a experiência acumulada por diversos modelos, de que destaco, pela relevância direta, os projetos dedicados aos manuscritos de Samuel Beckett do Centro de Genética de Manuscritos da Universidade de Antuérpia (Hulle e Nixon 2011); aos manuscritos de James Joyce (Genetic Joyce Studies: Electronic Journal for the Study of James Joyce's Works in Progress) do Centro James Joyce da Universidade de Antuérpia; a edição digital da correspondência de Vincent Van Gogh, realizada pelo Museu Van Gogh e pelo Instituto Huygens da Academia Real de Artes e Ciências da Holanda (Jansen et al. 2009); o projeto Modernist Magazines Project (ed. Peter Brooker and Andrew Thacker, 2006-2011,) da De Montfort University, Leicester; e as edições digitais incluídas no Austrian Academy Corpus, entre as quais a edição da revista Die Fackel, de Karl Kraus.

 

3. Plano, métodos e tarefas de investigação
O projeto Arquivo Digital do LdoD tira partido de um conjunto de recursos já existentes: o Espólio Digital Fernando Pessoa (2008-[em curso]), da Biblioteca Nacional de Portugal; o Arquivo Pessoa (2008) da responsabilidade do Instituto de Estudos sobre o Modernismo, da Universidade Nova de Lisboa; a Biblioteca Digital Fernando Pessoa (2010), publicada pela Casa Fernando Pessoa; e as várias edições do Livro do Desassossego (Coelho 1982 [1997]; Cunha 1990-91 [2008]; Zenith 1998 [2012]; Pizarro 2010). Estes materiais serão transcritos e codificados em XML e XSLT, acrescidos de um conjunto de marcadores resultantes da nossa própria análise dos textos e imagens a incluir. Paralelamente à exploração do potencial editorial e cognitivo do meio digital na criação de uma nova representação textual e metatextual do Livro do Desassossego, a investigação incidirá, como referido, sobre os conceitos e formas da escrita e do livro na imaginação modernista, tomando como ponto de partida o Livro do Desassossego e a obra de Fernando Pessoa. O facto de a equipa de investigação contar com especialistas em diversas línguas e literaturas permite um tratamento transcultural e translinguístico das questões a investigar. O processo de preparação de um arquivo que tire o máximo partido das funcionalidades específicas do meio digital e dos processos automáticos de análise textual constitui uma oportunidade para repensar a natureza da escrita e do livro a partir do próprio Livro do Desassossego. Esta experiência meta-editorial de uma nova disseminação documental e discursiva da obra contribuirá para a teorização da relação entre escrita e livro. A construção das dimensões genética, social e virtual do arquivo deverá funcionar como laboratório para formular e testar um conjunto de hipóteses sobre a materialidade linguística e bibliográfica das práticas literárias.

Os membros da equipa do projeto formam quatro grupos de trabalho, associados a cada uma das quatro tarefas principais. Dois dos grupos são responsáveis pela componente especificamente tecnológica do arquivo. Os restantes dois grupos são responsáveis pela análise dos fac-símiles digitais dos materiais autógrafos do LdoD, e pelo desenvolvimento do conjunto de estudos teóricos sobre a escrita e o livro nas práticas modernistas. Todos os membros da equipa participam na tarefa de disseminação e publicação dos resultados. Esta configuração variável dos grupos de trabalho ao longo das várias fases do projeto está concebida para propiciar cruzamentos disciplinares entre a componente tecnológica e a componente teórica do projeto. A representação e remediação digital do LdoD devem constituir um espaço de investigação que dê origem a novas ideias sobre a escrita e o livro. Do mesmo modo, a reflexão teórica sobre a escrita e o livro contribuirá para tornar mais complexas a estrutura e as funcionalidades do arquivo. Esta divisão do trabalho de investigação procura favorecer o desenvolvimento de uma metodologia específica de humanidades digitais, e em particular de estudos literários digitais, enquanto campo interdisciplinar emergente.

‘Humanidades Digitais’ (ou ‘Computação para as Humanidades’) é um campo interdisciplinar de investigação que resulta das capacidades representacionais e de modelação dos meios digitais para codificar textos, visualizar espaços humanos e naturais, visualizar dados, simular fenómenos, e agregar, estruturar, pesquisar e recuperar informação [9 ]. O diagrama de Willard McCarty (2003: 1024) representa a Computação para as Humanidades como um território metodológico que funciona em retroação com cada disciplina: os modelos computacionais recebem input teórico e metodológico de disciplinas específicas; por seu turno, o ato de formalizar e desenhar modelos digitais e ferramentas analíticas retroalimenta as respetivas disciplinas. Ao mesmo tempo, as metodologias computacionais geram processos de transferência metodológica e teórica entre disciplinas. Estas trocas interdisciplinares, que ocorrem naquilo que McCarty descreve como um território metodológico comum, repercutem-se em áreas disciplinares mais amplas. São estas interseções disciplinares, fomentadas pela dinâmica de retroação entre disciplinas específicas e modelos e ferramentas computacionais, que permitem mapear as trocas de conhecimento que definem atualmente as Humanidades Digitais.

3.1. Levantamento, recolha, digitalização e transcrição de materiais
A primeira tarefa consiste no levantamento e localização de fontes e materiais, seguida de digitalização e transcrição do conjunto de fontes e materiais primários a incluir no arquivo. Para além dos ficheiros digitais de imagem relativos ao espólio do LdoD e respetivos metadados, fornecidos pela Biblioteca Nacional de Portugal como instituição parceira do projeto, são transcritos todos os fragmentos correspondentes às edições do LdoD. Serão solicitadas autorizações para reprodução de uma amostra selecionada de fragmentos do LdoD em tradução em diversas línguas. Será ainda recolhida a principal bibliografia crítica dedicada ao LdoD. No final desta tarefa, deveremos dispor, em formato digital (sob a forma de ficheiros de imagem e de texto), da maior parte dos materiais primários que constituirão a base de dados textual do arquivo.

3.2. Análise editorial e definição da marcação eletrónica e metadados
A segunda tarefa será a definição dos protocolos técnicos de marcação textual eletrónica (XML, XSLT) a partir de uma análise editorial do corpus recolhido e transcrito que permita fazer uma descrição formal das propriedades dos diversos objetos documentais e textuais, que resultará num modelo de codificação eletrónica. Espera-se produzir uma análise sistemática dos materiais recolhidos, digitalizados e transcritos, com o objetivo de desenvolver um protótipo de codificação XML capaz de responder a todas as funcionalidades, estáticas e dinâmicas, a integrar no arquivo. A codificação será baseada nas normas de TEI-P5 acrescidas de marcadores resultantes da análise e modelação dos documentos. Espera-se desenvolver um conjunto de marcadores textuais e semânticos que suportem as múltiplas funcionalidades de pesquisa, agregação, análise textual e interação dinâmica virtual com os objetos digitais que constituirão a base de dados.

3.3. Produção de uma teoria da escrita e do livro na imaginação modernista
Em simultâneo com as tarefas 1 e 2, será desenvolvido um enquadramento teórico relativo à escrita e ao livro. Esta reflexão sobre a natureza e materialidade específicas do livro e da escrita toma o Livro do Desassossego e as formas e práticas modernistas como ponto de partida. A partir da investigação internacional relevante e de estudos de caso específicos do projeto (como Karl Kraus, Robert Musil, Walter Benjamin, James Joyce, etc.) espera-se construir uma nova articulação das questões da cena da escrita na sua relação com os códigos do livro, enquanto conceito e enquanto objeto. Deste modo, será possível testar modelos de análise das materialidades verbais, técnicas e sociais da literatura, e testar uma concetualização do processo de escrita como experimentação material com as condições de produção da subjetividade e do sentido. Espera-se produzir um conjunto de ensaios originais a publicar posteriormente na base de dados, organizar um colóquio internacional e produzir um livro sobre a escrita e o livro na imaginação modernista. Esta tarefa desenvolve-se em sete fases sucessivas:


Fase 1: análise do LdoD como ‘ato de escrita' (Shillingsburg 2006), i.e., como uma série de eventos genéticos e sociais (história composicional e editorial);
Fase 2: análise da tematização da escrita no LdoD, incluindo as relações entre escrita manuscrita, datiloscrita, tiposcrita e leitura;
Fase 3: definição de um corpus de outras obras europeias e não-europeias nas quais o processo de ‘escrita-em-curso’ possa ser descrito de modos similares ou contrastados;
Fase 4: o processo de escrita como investigação da linguagem e do sujeito;
Fase 5: análise das formas materiais e concetuais do livro baseada numa série de estudos de caso;
Fase 6: tradução da investigação produzida nesta componente do projeto, e marcação de todos os documentos (originais e traduções) para inclusão na base de dados;
Fase 7: definição das associações e mapas concetuais que integram esta componente da investigação na estrutura e funções gerais do arquivo.

 

3.4. Construção da base de dados, interface e funcionalidades da comunidade virtual
A quarta tarefa consiste na construção da base de dados, da interface do arquivo e das funcionalidades da comunidade virtual, cuja robustez é testada em função dos diversos tipos de utilização e funcionalidades previstos para o arquivo. Espera-se conseguir uma integração de todas as funcionalidades, seja através da adaptação de ferramentas disponíveis em código aberto, seja através de programação própria a desenvolver de acordo com os objetivos do arquivo. O arquivo deverá ficar a funcionar experimentalmente durante o último semestre previsto para esta tarefa. Esta tarefa conclui-se com a publicação e divulgação do arquivo e com iniciativas para constituir uma primeira comunidade de utilizadores.

3.5. Publicação e disseminação dos resultados
Durante todo o projeto, decorrerão atividades de disseminação dos resultados do trabalho em curso: disseminação no âmbito de encontros científicos nacionais e internacionais e disseminação através de ações de divulgação pública em contexto não-académico. A publicação do Arquivo LdoD (com uma estrutura trilingue) num sítio web de acesso público, assim como a publicação da investigação sobre o livro e a escrita no arquivo digital constituirão os dois resultados fundamentais do projeto. Espera-se submeter o conjunto de resultados intercalares do projeto à crítica pelos pares, em colóquios e revistas, com o objetivo de testar as melhores soluções técnicas e de assimilar as melhores práticas e teorias. Espera-se disseminar os resultados do projeto, designadamente o arquivo digital e a teorização sobre a escrita e o livro, de forma a poder torná-los instrumentos de investigação e ensino. Espera-se ainda contribuir, com oficinas de formação específicas em escolas e universidades, para a construção da comunidade de ensino e investigação de utilizadores do arquivo, em particular no mundo de língua portuguesa.

 

4. Problemas e soluções
“Nenhum Problema Tem Solução: Um Arquivo Digital do LdoD” pode ser sintetizado em três componentes – editorial, computacional e téorica –, às quais correspondem problemas de investigação específicos.

4.1. Componente editorial
Problema de investigação nº1: é possível usar um ambiente hipermédia para produzir um arquivo digital que reúna a abordagem genética e social no processo de edição?
A crítica genética centra-se na reconstrução da génese de uma obra, ou seja, na edição dos documentos autorais que permitem reconstituir os momentos de composição autoral. No caso do LdoD, os testemunhos dos fragmentos e trechos incluem três processos de inscrição distintos: manuscrito, datiloscrito e/ou versão impressa. Cada processo de inscrição pode conter ainda diferentes camadas de revisão. Por exemplo, os testemunhos autorais que fazem parte da génese de um fragmento podem ramificar-se em: dois manuscritos com diferentes versões de um mesmo fragmento; um manuscrito e um datiloscrito que faz alterações ao manuscrito; um datiloscrito com alterações manuscritas; um manuscrito, um datiloscrito e uma versão impressa publicada em revista. Uma representação genética desta ramificação documental implica incluir todos os testemunhos no arquivo e encontrar um modo de codificá-los para que a cronologia e genealogia de revisão se torne clara - por exemplo, sequenciando-as ou justapondo-as automaticamente, com variantes destacadas de acordo com um código de cores e com a respetiva datação.

A noção de edição social, por outro lado, refere a produção e reprodução do texto a partir do momento em que deixa de estar sob controlo individual do autor e se torna num objeto textual e bibliográfico de revisão e transmissão negociada em processos de publicação, seja ainda durante vida do autor, seja postumamente. Cada ato de publicação cria uma nova versão material da obra, mesmo que a variação afete apenas formato, composição tipográfica ou outro aspeto do código bibliográfico. No caso do LdoD, como apenas alguns trechos foram publicados em revista e a obra nunca foi organizada e publicada pelo autor, o livro foi desde a primeira edição uma co-construção dos seus editores, que selecionaram, transcreveram e organizaram os testemunhos autorais, interpretando de formas diferentes os materiais do espólio e as indicações de Fernando Pessoa. A representação deste processo de socialização textual implica que o arquivo desenvolva marcadores específicos para as quatro edições críticas publicadas. Na medida em que permite apresentar em configurações variáveis um conjunto vasto de textos, a textualidade digital permite integrar edição crítica e edição documental de um modo que transcende a tradicional representação bibliográfica da relação entre texto e aparato crítico, proporcionando aos leitores e estudiosos acesso reticular ou hierarquizado a múltiplas formas genéticas e sociais dos fragmentos do LdoD. Deste modo, torna-se possível produzir uma escala de observação integrada para todo o processo de ‘transformissão’ textual [10 ]. Uma representação da história editorial do LdoD significa incluir os quatro testemunhos editoriais no arquivo e codificá-los  eletronicamente nas suas variantes microtextuais (transcrições de passos específicos) e macrotextuais (inclusão/exclusão de fragmentos, atribuição heteronímica, organização), tornando-as automaticamente comparáveis.

4.2. Componente computacional
Problema de investigação nº2: é possível codificar eletronicamente os testemunhos genéticos e editoriais do LdoD, concebendo estruturas de dados e algoritmos capazes de submeter as dimensões genética e social do arquivo à processabilidade? É possível, além disso, programar uma dimensão virtual do LdoD que incorpore um princípio de processabilidade dinâmica, capaz de integrar no arquivo as interações com os utilizadores ao longo do tempo?
A integração da dimensão genética e da dimensão social do arquivo implica que os leitores possam aceder (1) aos fac-símiles e transcrições de todos os materiais genéticos nas suas variações de composição; (2) às quatro edições críticas produzidas entre 1982 e 2010; e ainda a (3) agregações abertas dos materiais referidos em (1) e (2), em resposta a pesquisas e critérios definidos pelos utilizadores. Estas agregações genéticas e sociais geradas pelos leitores devem ocorrer ainda dentro de um espaço virtual crítico interativo que permite anotações e extensões aos fragmentos, alargando a virtualização experimental da edição e organização do livro aos próprios processos de escrita. Diversos projetos de arquivo digital têm desenvolvido modelos de codificação e programação que permitem visualizar complexas representações crítico-genéticas, seja de múltiplas versões documentais, seja de múltiplas camadas de revisão (Blake, Melville, Dickinson, Whitman, Musil, Wittgenstein, Beckett). Alguns destes arquivos incluem uma componente de representação da socialização textual, com diferentes edições e documentos de receção (Folsom e Price, 1995-). O problema da criação de um espaço de interação e adição dinâmica aos materiais do arquivo tem sido também formalizado num pequeno número de casos. No entanto, não existe ainda nenhum modelo ou solução satisfatória de integração das funcionalidades genéticas, sociais e virtuais. A concetualização da componente digital do Arquivo LdoD implica justamente encontrar uma solução técnica satisfatória ao problema enunciado acima, a nível da codificação eletrónica dos documentos e da programação das operações.

 
A componente digital do projeto pode sintetizar-se nas seguintes alíneas:
(a) ESTRUTURA
(a.1) Elementos atómicos (ainda que correspondam a diversos elementos que representem uma unidade, e.g., diferentes versões do mesmo texto)
(a.2) Propriedades dos elementos atómicos (por exemplo, cronologia, materialidade, atribuição, espólio, núcleo temático, etc.)
(a.3) Criação de elementos compostos
(a.3.1) Dinamicamente, agregando as propriedades dos elementos atómicos (por exemplo, uma agregação cronológica dos textos atribuídos a VG e, se houver várias versões de um dos textos, deverá surgir a mais antiga)
(a.3.2) Por construção em que se consideram as 4 edições (1982, 1990-91 [2008],1998 [2012], 2010) + a transcrição topográfica do projeto + as que os utilizadores quiserem construir. Nesta forma de construção poderá haver funcionalidades de interface que simplifiquem o trabalho do utilizador final (por exemplo, permitindo uma variação de uma construção que já existe).
(b) INTERFACE
(b.1) Será necessário definir interfaces de pesquisa para suportar (a.3.1)
(b.2) Suportar interfaces de criação para (a.3.2) em particular nos aspetos da construção partilhada
(c) INTERNACIONALIZAÇÃO
(c.1) Sistema deve funcionar em dupla entrada (português e inglês)
(c.2) Textos publicados serão, em alguns casos, multilingues (português e inglês, predominantemente, mas também noutras línguas)
(d) COMUNIDADE
(d.1) Definição de ‘social software features’ que suportam a comunidade [codificação TEI, comentários, publicação de materiais didáticos, coleções de materiais, etc.]
(d.2) Integração das ‘social software features’ com a construção partilhada do arquivo (cf. a.3.2)
(d.3) Textos sobre textos, isto é, integração do trabalho científico produzido sobre o arquivo e sobre a temática do livro e da escrita (de acordo também com as propriedades estruturais definidas em a.1, a.2 e a.3)
(e) PRIVILÉGIOS DE ACESSO
(e.1) Acesso público sem registo ao material publicado
(e.2) Acesso público com registo (área da comunidade de ensino e de investigação)
(e.3) Acesso reservado à edição e adição de materiais à base de dados
(f) SOFTWARE
(f.1) Páginas estáticas marcadas com a estrutura XML
(f.2) Páginas dinâmicas adaptando software existente
(f.3) Desenvolvimento de um sistema adaptado às necessidades mediante programação específica

4.3. Componente teórica
Pergunta de investigação nº3: à medida que tentamos remediar e representar os processos bibliográficos e de escrita no LdoD, será possível repensar a materialidade da literatura examinando a relação específica entre atos de escrita e formas do livro tal como foram performatizadas e imaginadas nos discursos e práticas modernistas? Por outras palavras, como é que esta dinâmica se desenrola em vários textos-livros modernistas à medida que a subjetividade e o sentido são produzidos experimentalmente por meio de práticas inscricionais, como a escrita à mão, a datilografia e a impressão?
N' O Livro da Consciência, António Damásio refere a solução encontrada para o título português da sua obra (em inglês, Self Comes to Mind) como uma homenagem a Fernando Pessoa (419). Uma das epígrafes escolhidas é retirada do LdoD e sugere a ligação entre a introspeção autorreflexiva e metaconsciente de Bernardo Soares e o conhecimento atual sobre a complexidade da integração das zonas cerebrais de mapeamento corporal na produção do sentido do eu. Esta citação é, de resto, a mesma que serviu para encenar o momento de afinação da orquestra que abre o Filme do Desassossego (2010), de João Botelho. A escrita e o livro podem ser vistos como parte daquilo que Damásio designa como homeostase sociocultural, resultante do processo de interação com o impulso homeostático biológico que favoreceu o desenvolvimento da mente consciente e a integração de padrões que produz o sentido do eu (356-363). Que o LdoD seja lido, na era da imagiologia por ressonância magnética funcional, como um livro da consciência nas teorias da equivalência mente-cérebro das neurociências atuais evidencia a sua relevância como indagação das possibilidades de autoconhecimento da mente humana. Ao mapear as relações entre livro e escrita, usando a virtualização eletrónica para explicitar a dinâmica de processos composicionais e editoriais, o Arquivo Digital LdoD é também uma investigação teórica e técnica sobre a consciência do livro nos processos literários de escrita, edição e leitura.

 

5. Considerações finais
Diversos projetos de edição e arquivo digital realizados nas últimas duas décadas têm adotado uma abordagem de codificação exaustiva ao traduzirem as teorias da crítica genética e da socialização textual numa complexa metodologia de filologia eletrónica. O Arquivo LdoD adota essa metodologia, mas pretende usar também a capacidade simulatória dos ambientes eletrónicos para reformular perguntas e repensar a fenomenologia textual no espaço participatório da Web 2.0. Este projeto propõe-se construir um ambiente computacional que nos faça olhar de novo para a materialidade da escrita e do livro na produção da experiência literária. Os dois objetivos principais devem funcionar num circuito de retroalimentação: (1) construir um arquivo digital do LdoD que realize em maior grau o potencial da remediação computacional ao nível da codificação textual e da programação; (2) transformar o processo de construção do arquivo e o arquivo resultante num instrumento de investigação para gerar novas ideias e novas teorias. A interfacialização de um espaço de escrita, edição e leitura colaborativa com base no LdoD representa a reimaginação do arquivo como constelação radial e distribuída de simulações interativas, isto é, a concretização de uma experiência concetual que procura reinventar o meio digital para além do horizonte da codificação bibliográfica [11].

 


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Notas

[1 ] A Text Encoding Initiative é um consórcio fundado em 1988 com o objetivo de desenvolver uma norma de representação de textos em formato digital. A primeira versão da norma foi publicada em 1994. Desde então essa norma tem sido adotada por projetos institucionais e individuais de edição eletrónica para efeitos de ensino, investigação e preservação. Revista e aumentada periodicamente, a versão atual da norma é designada TEI-P5 (2012; versão 2.3.0, janeiro de 2013). O consórcio integra atualmente 60 parceiros institucionais de diversos países, incluindo bibliotecas, museus, editoras, departamentos universitários, centros de investigação e associações científicas. Publica-se desde 2011 o Journal of the Text Encoding Initiative, que agrega a investigação sobre métodos de codificação textual eletrónica com a investigação sobre diversos problemas técnicos e teóricos de humanidades digitais, como edição crítica digital, análise linguística, criação de corpora, digitalização em massa, web semântica e edição de mundos virtuais. Para uma avaliação sucinta da história, implicações e estado atual da TEI vejam-se Vanhoutte 2004, Cummings 2008 e Barney 2012. O projeto LdoD adota a norma TEI-P5.

[2 ] Dois exemplos de edições eletrónicas crítico-genéticas são a edição eletrónica das obras completas de Robert Musil: Kommentierte Edition sämtlicher Werke, Briefe und nachgelassener Schriften. Mit Transkriptionen und Faksimiles aller Handschriften, organizada por Walter Fanta, Klaus Amann e Karl Corino (Robert Musil-Institut der Alpen-Adria Universität Klagenfurt, DVD, 2009); e a edição em curso dos manuscritos de Samuel Beckett: Samuel Beckett Digital Manuscript Project (2011-[a concluir até 2030]), coordenada por Dirk Van Hulle e Mark Nixon.

[3 ] Para uma história sistemática dos diferentes momentos e estratégias editoriais na produção do conjunto da obra de Fernando Pessoa, veja-se Pizarro 2012: 29-92.

[4 ] Sobre este tópico, destaque-se a investigação recente de Pedro Sepúlveda, Os Livros de Fernando Pessoa (2012, Universidade Nova de Lisboa, tese de doutoramento), na qual se analisam os inúmeros planos editoriais de Fernando Pessoa e se argumenta a favor da natureza editorial dos heterónimos enquanto dispositivos de produção de coerência bibliográfica e de presença da imaginação e da ficção do livro no processo de escrita.

[5 ] Entre 2004 e 2009, foram publicados pela Wilhelm Fink Verlag os 12 volumes seguintes: Martin Stingelin, Davide Giuriato e Sandro Zanetti, orgs., Mir ekelt vor diesem tintenklecksenden Säkulum: Schreibszenen im Zeitalter der Manuskripte (2004); Davide Giuriato, Martin Stingelin e Sandro Zanetti, orgs., Schreibkugel ist ein Ding gleich mir: von Eisen: Schreibszenen im Zeitalter der Typoskripte (2005); Davide Giuriato, Martin Stingelin e Sandro Zanetti, orgs. System ohne General: Schreibszenen im digitalen Zeitalter (2006); Daniela Langer, Wie man wird, was man schreibt: Sprache, Subjekt und Autobiographie bei Nietzsche und Barthes (2005); Davide Giuriato, Mikrographien: Zu einer Poetologie des Schreibens in Walter Benjamins Kindheitserinnerungen (1932-1939) (2006); Sandro Zanetti, Zeitoffen: Zur Chronographie Paul Celans (2006); Thomas Fries, Peter Hughes e Tan Wälchli, orgs., Schreibprozesse (2008); Rudolf Probst, (K)eine Autobiographie schreiben Friedrich Dürrenmatts Stoffe als Quadratur des Zirkels (2008); Davide Giuriato, Martin Stingelin e Sandro Zanetti, orgs., Schreiben heißt: sich selber lesen: Schreibszenen als Selbstlektüren (2008); Kurt Hahn, Ethopoetik des Elementaren: Zum Schreiben als Lebensform in der Lyrik von René Char, Paul Celan und Octavio Paz (2008); Hubert Thüring, Corinna Jäger-Trees e Michael Schläfli, orgs., Anfangen zu schreiben: Ein kardinales Moment von Textgenese und Schreibprozeß im literarischen Archiv des 20. Jahrhunderts (2009); Martin Stingelin, Matthias Thiele e Claas Morgenroth, orgs., Portable Media (2009). Cf. Genealogie des Schreiben (2009).

[6 ] Veja-se o projeto de investigação ‘Estranhar Pessoa: Um Escrutínio das Pretensões Heteronímicas (Laboratório de Estudos Literários Avançados, Universidade Nova de Lisboa), coordenado por António M. Feijó.

[7 ] Dois exemplos de centros dedicados ao desenvolvimento de projetos e aplicações para a investigação em humanidades são o Electronic Textual Cultures Lab, da Universidade de Victoria, no Canadá, dirigido por Ray Siemens, e o Center for Textual Studies and Digital Humanities, da Universidade Loyola, em Chicago, dirigido por Steven Jones e George K. Thiruvathukal.

[8 ] No domínio da codificação eletrónica e da colação automática para edição crítica de textos, refiram-se: Juxta Commons, versão web de uma aplicação desenvolvida anteriormente como aplicação autónoma pelo consórcio Nines (Nineteenth-century Scholarship Online), sediado na Universidade da Virginia (versão beta, dezembro de 2012); e e-Laborate, espaço web de trabalho para edição digital desenvolvido pelo Huygens Institute for the History of the Netherlands of the Royal Netherlands Academy of Arts and Sciences (e-Laborate3, versão de 2012). No domínio da agregação, anotação e publicação web de objetos digitais, em regime de código aberto, refiram-se as aplicações: Collex, desenvolvida na Universidade da Virginia, desde 2007 (versão 1.6.7, 2009); e Omeka, desenvolvido no Center for History and New Media, George Mason University, desde 2007 (versão 2.0, janeiro de 2013).

[9 ] Para um levantamento teórico das metodologias do campo veja-se Susan Schreibman, Ray Siemens e John Unsworth, eds., A Companion to Digital Humanities, Oxford: Blackwell, 2004. Um número especial da revista Digital Humanities Quarterly, Volume 6, Number 3 (2012), foi recentemente dedicado à história deste campo. Organizado por Julianne Nyhan sob o título ‘Hidden Histories: Computing and the Humanities c. 1965-1985’, este número reúne uma série de entrevistas com cinco protagonistas na teorização das humanidades digitais nas últimas duas décadas: Ray Siemens, John Unsworth, Harold Short, Willard McCarty e Geoffrey Rockwell. Refiram-se ainda as obras seguintes: McCarty 2005, Drucker 2009, Fiormonte et al 2010, Bartscherer and Coover 2011, Gold 2012, Berry 2012, Lunenfeld et al 2012.

[10 ] Adoto aqui o termo usado por Randall McLeod – ‘transformission’ – para referir o princípio geral de transmissão textual como um processo de transformação, inerente a cada instanciação material dos textos.

[11] Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação ‘Nenhum Problema Tem Solução: Um Arquivo Digital do Livro do Desassossego’ (referência PTDC/CLE-LLI/118713/2010), do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra. Projeto financiado pela FCT e cofinanciado pelo FEDER, através do Eixo I do Programa Operacional Fatores de Competitividade (POFC) do QREN, COMPETE: FCOMP-01-0124-FEDER-019715.