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Jogo dos Paradigmas:
O Semblante da Literatura
Daniela Côrtes Maduro
Universidade de Coimbra
Bolseira da FCT

O semblante da literatura encontra-se em permanente metamorfose. A todo o momento surgem novos textos incompatíveis com o método de análise proposto pela narratologia. Perante a inexistência de instrumentos críticos adequados, muitos desses textos permanecem inabordáveis. Em Cybertext Poetics, Markku Eskelinen não permite que estes textos continuem à deriva. Concentrado em desfazer a barreira entre estudos literários tradicionais e estudos literários digitais, Eskelinen propõe-se “colocar alguns paradigmas da teoria literária hegemónica em diálogo com as anomalias digitais e ergódicas”. Este livro assemelha-se a uma teoria geral da literatura. No entanto, Eskelinen sabe que os paradigmas literários estão em constante mutação. O leitor deste livro não encontrará um quadro teórico fechado, mas um espaço de reflexão onde Eskelinen descreve o estado de arte da narratologia e da ludologia e sugere abordagens alternativas a textos ergódicos e não ergódicos. O autor encontra-se interessado no jogo de recombinação de instrumentos de crítica e análise textual. O resultado é um livro inquisitivo que ilumina muitos recantos sombrios dos estudos literários tornando-os em terrenos férteis e promissores.

Os capítulos que constituem este livro espelham um exercício meticuloso levado a cabo por Eskelinen. Através de um diálogo sistemático com as teorias mais relevantes para a análise do cibertexto, vai partilhando com o leitor as razões pelas quais rejeita ou adopta as perspectivas dos inúmeros autores citados. Cybertext Poetics é por isso uma obra predominantemente teórica, onde termos e definições são colocados em análise. O descontentamento com as definições dos termos “narrativa”, “jogo” ou “história” sugeridas por diversos autores impelem Eskelinen a retomar um exercício repetidamente adiado pelos estudos literários ou, como o próprio autor refere, “agendado para ser realizado num dado momento do futuro retórico”. Segundo Eskelinen, existe um número considerável de textos, digitais ou não, para os quais ainda não foram encontrados recursos de análise satisfatórios. Embora centrado no estudo dos novos média, Cybertext Poetics não ostraciza o leitor recém-chegado a esta área. As questões colocadas são certamente familiares, porém são abordadas com uma perspectiva renovada. O autor propõe-se fazer uma extensão da narratologia usando a teoria do cibertexto e a ludologia para abranger o maior número de configurações textuais possíveis.

Segundo Eskelinen, a adopção da poética cibertextual descrita por Espen Aarseth em Cybertext: Perspectives on Ergodic Literature (1997) permite ultrapassar a dicotomia impresso/digital e efectuar uma análise do texto, independentemente do tipo de medium em que este se materializa. Ao centrar-se na “textonomia” (estudo do medium) e não na “textologia” (estudo do significado do texto) esta teoria tem um valor heurístico que permite abranger diversos tipos de texto. Para a teoria cibertextual, um texto é uma máquina concreta de produção e consumo de sinais e o medium um operador dessa cadeia de sinais. Esta cadeia divide-se em textões (cadeia de sinais que compõem o texto) e escritões (cadeia de sinais tal como são apresentados ao leitor/utilizador). O mecanismo que permite aos textões gerar os escritões é chamado “função transversal”, a qual é descrita através da colaboração entre sete variáveis: dinâmica, determinabilidade, transiência, perspectiva, ligações, acesso e função do utilizador (às quais Eskelinen acrescenta duas: posição do utilizador e objetivo do utilizador). Esta teoria é dirigida a textos ergódicos ou textos cuja leitura exige um “esforço não-trivial” por parte do leitor. Isto quer dizer que, ao longo da leitura, o leitor tem que levar a cabo um conjunto de escolhas que podem alterar o rumo ou a configuração da narrativa. O modelo sugerido por Aarseth, criado no final dos anos 1990, não contempla uma série de novos tipos de cibertextos. Na tentativa de maximizar o alcance da teoria cibertextual, Eskelinen faz algumas alterações ao modelo proposto por Aarseth. Existem textos que, tal como um jogo de computador, solicitam a concretização de um objectivo. Aarseth já havia abordado textos com esta característica (adventure texts e MUDs), mas Eskelinen prevê a existência de dois tipos de ergodicidade: desafiadora e não-desafiadora. De forma a abranger textos holográficos ou locativos (textos que fazem uso de tecnologias de localização como o GPS), Eskelinen acrescenta ao modelo de Aarseth a intervenção e influência de mais do que um utilizador, bem como a participação física deste(s) no texto.

Os textos com uma componente ergódica dominante (cibertextos) violam muitas das características associadas à narrativa. A título de exemplo, muitos deles não obedecem a uma sequência temporal única. Eskelinen considera que estes são frequentemente considerados como textos experimentais ou, como é o caso da ficção hipertextual, “anti-narrativas”. Contudo, o próprio conceito de narrativa não é consensual. Para além disso, a narrativa existe como objecto de estudo de diversas áreas (Eskelinen refere-se particularmente ao cinema). Por este motivo, defende a criação de uma narratologia mais inclusiva e adopta uma combinação entre narratologias clássicas e pós-clássicas. Apesar de fazer referência a outros autores, Eskelinen centra-se particularmente no trabalho de Genette. Embora a narratologia gennettiana tenha sido criticada por espartilhar a narrativa num conjunto de categorias, Eskelinen sublinha o poder explicativo e descritivo desse modelo e defende que, ao contrário da narratologia pós-clássica, é mais receptivo a novas formas de narrativa. Eskelinen pretende centrar-se na poética, não na interpretação, e considera que o modelo de Genette tem um valor “pré-interpretativo” e pragmático que poderá ajudar a conjugar as teorias ergódica e narrativa. As categorias tempo, modo e voz distinguidas por Genette são reformuladas de forma a poderem incluir narrativas pós-modernistas, digitais, interactivas e ergódicas. Entre as várias alterações feitas à narratologia de Genette está a adição de novos atributos à categoria tempo. A temporalidade de uma obra digital é diferente da impressa porque o conjunto de signos dispostos num ecrã reformula-se a cada intervenção do leitor. Isto torna o texto num objecto transiente (Aarseth), o que leva Eskelinen a adicionar o “tempo do sistema” – ou o grau de permanência de um texto no ecrã – e o “tempo de comunicação textual real”. Este último permite a abordagem de obras interactivas que exijam uma colaboração e comunicação instantânea entre vários utilizadores.

A teoria do cibertexto permite ao crítico centrar-se na relação entre textons e scriptons (Aarseth), entre texto narrativo e história (Genette) e entre utilizador e texto narrativo. Esta última relação é amplamente explorada na primeira parte de Cybertext Poetics e utilizada para estabelecer uma ponte com a ludologia. Para Eskelinen, o utilizador/leitor de textos digitais poderá ser uma personagem – e alcançar o nível zero de distância em relação à narrativa – ou poderá tornar-se no próprio narrador. O leitor tem frequentemente a capacidade de alterar e configurar o texto, mas o acesso aleatório e fragmentado à informação pode impedi-lo de alcançar a leitura total da obra. Ainda assim, Eskelinen propõe que a categoria “modo” não seja abandonada, mas “cibertextualizada” ou complementada com a distinção entre leitores/ utilizadores omniscientes e leitores/utilizadores com acesso restrito à informação. Já as categorias “distância” e “perspectiva”, baseadas na relação entre personagens e narradores ficcionais, são enriquecidas com a relação entre textos narrativos e leitores/utilizadores.

Em última instância, Eskelinen sublinha que, quando o narrador e o leitor conseguem acrescentar elementos a uma história ou texto, as categorias concebidas por Genette perdem a sua validade. Nem o utilizador nem o narrador estão restritos a uma única posição, o que altera completamente a relação entre níveis narrativos. O texto ergódico ou cibertexto pode combinar as narrações simultânea, subsequente, anterior e interpolada. Esta dinâmica inviabiliza a concretização de uma distância temporalmente estável entre actos de narração e eventos narrados. Tal situação leva Eskelinen a criar a componente “cenário” (ou “ambiente”) que tem em conta a realidade de diferentes narradores, narratários ou actos de narração.

Além disso, a narrativa (sobretudo a ergódica e a pós-modernista) nem sempre é tecida num único plano ontológico. Para Eskelinen, isto acontece porque ela está mais centrada na tensão entre narração e narrativa do que entre narrativa e história. Os modelos de comunicação narrativa prevêem apenas a comunicação unidireccional entre o autor e o leitor implícitos. No entanto, Eskelinen refere-se a uma comunicação extratextual entre autor(es) e utilizador(es); à participação intratextual de utilizadores como narradores ou personagens, e ainda à intervenção dos utilizadores nos níveis intertextuais.

O narrador da literatura oral é humano mas na ficção escrita é uma construção textual. Já nas ficções digitais ele poderá ser uma entidade programada, um “compósito” ou um narrador colectivo (we-narrator). Tal como Aarseth, Eskelinen defende que em vez da voz do narrador existe uma “voz ergódica” (ou negociador) com a qual, perante a possibilidade de vários desfechos, o leitor (ou o utilizador implícito) negoceia. A existência de uma “negociação” entre esta voz e o leitor é um indicador de que o texto tem uma componente ergódica dominante. Porém, se esta negociação for executada tendo em vista a concretização de um objectivo, o texto abandona o domínio da narrativa e entra no universo dos jogos. Eskelinen tem desenvolvido um extenso trabalho de investigação no âmbito da ludologia e acredita que a inclusão desta nos estudos literários poderá ajudar na abordagem de textos incompatíveis com a narratologia tradicional, ou seja, textos com uma componente ergódica dominante. Eskelinen centra-se nas características formais e não na narrativa produzida pelos jogos, já que estes não apresentam uma história mas propõem um desafio.

Eskelinen considera fundamental definir uma “ecologia transmedial do jogo” e localizá-la face a outras ecologias transmediais. Para tal, parte de características universais do jogo: a existência de regras, o esforço do jogador (player’s effort) e desfechos variáveis. Os jogos são definidos por Eskelinen como práticas configurativas que diferem de práticas dominantemente interpretativas (literatura ergódica e cinema) ou práticas puramente interpretativas (literatura não-ergódica e cinema). Contudo, Eskelinen demonstra que um jogo não exige apenas práticas configurativas ou manipulativas. O jogo implica igualmente uma actividade exploratória, construtiva, comunicativa (entre jogadores ou entidades) mas também interpretativa. Esta última não é diminuída mas acentuada pela actividade configurativa. Um jogador terá que interpretar as suas acções, as dos seus adversários (humanos, artificiais) e as dos membros da sua equipa. Ele terá ainda que interpretar o comportamento e alterações do sistema, bem como o conteúdo ficcional das representações do estado do jogo ou dos eventos do jogo. As representações formuladas pelo computador ao longo de um jogo têm, à semelhança de um texto literário, um valor expressivo. No entanto, como é da responsabilidade do jogador criar essas representações, Eskelinen refere que estas têm igualmente um valor auto-expressivo. O estado do jogo e as regras são definidos pelo computador e o jogador só tem acesso a esta informação através do ecrã. É aqui que o jogador visualiza as inúmeras representações dinâmicas e combinatórias dos estágios do jogo e das suas próprias acções. É ao jogador que cabe produzir (causalidade) as sequências de eventos (efeitos) para alternar entre duas posições (inicial e final) usando os recursos colocados à sua disposição.

Eskelinen pretende situar os jogos na sociedade e na cultura como uma prática configurativa capaz de modelar outras práticas configurativas. Para além das regras, Eskelinen acrescenta às características universais do jogo a capacidade de “simulação”. No entanto, as representações efectuadas pela simulação não podem ser equiparadas às representações narrativas. Em vez de contar histórias, os jogos criam modelos do comportamento dinâmico de jogadores, relações humanas, sociedades e práticas ou processos sociais. As simulações constituem uma forma promissora de lidar com as semelhanças/diferenças entre média, mas o autor sublinha que os jogos não são modos de representação como as narrativas escritas, as peças de teatro ou os filmes. Os jogos são sobretudo modos de acção (humana) caracterizados por regras, resultados variáveis e esforço do jogador.

A perspectiva ludológica permite adicionar à ecologia ergódica e à análise transmedial o modo dominantemente ergódico. Ela sublinha elementos centrais (como as regras) que não sobrevivem fora da ecologia dos jogos e simulações. Adicionalmente, a ludologia tem em conta não só a representação ou inscrição, mas também a acção física do ser humano. Eskelinen prevê que esta componente venha a ser largamente explorada pelas novas tecnologias e refere-se à possibilidade de a percepção humana vir a ser aumentada através de “instrumentos médicos e académicos”. Por exemplo, a informação corporal do utilizador poderá ser futuramente recolhida (user profiling) e transmitida ao sistema ergódico para motivar mais respostas textuais. Estes textos exigem instrumentos de análise que ainda não estão ao alcance dos estudos literários. Cybertext Poetics demonstra que a ludologia poderá ajudar na recepção deste tipo de artefactos, agora que eles começam a redesenhar o semblante da literatura.

© 2013 Daniela Côrtes Maduro.