Na Face das Ondas: |
É através da imagem de um tablet em modo de leitura que o leitor é apresentado ao título desta colectânea de artigos. Tal sobreposição de superfícies (impressa e digital) ilustra a temática do livro e indica ao leitor que irá conhecer um conjunto de questões relativas ao ecrã como veículo de textos literários. Nas primeiras páginas, o leitor encontra um menu. Este é um livro sobre “literatura na tela” e, como tal, os organizadores decidiram espelhar o movimento exploratório e rizomático promovido pela leitura em meio digital. No entanto, o leitor não irá apenas encontrar artigos sobre esta temática. Miguel Rettenmaier e Tania Rösing propõem-se abarcar o “maior número de variações possíveis dentre os géneros literários infectados pela actualidade tecnológica” e abordar questões relacionadas com “edição, leitura e educação”. No guia de navegação que inaugura a viagem, os organizadores listam os temas centrais de cada artigo e convidam o leitor a aceder a estes textos através de um jogo com as directrizes “se…então…”. Neste mesmo menu, os organizadores definem o seu objectivo: “pensar a arte literária no contexto da era digital”. A colectânea é uma “janela” com vista para um mar que abriga um ecossistema variadíssimo.
Como parte da colecção “Série Jornadas Literárias” da UPF, este volume surge após a publicação do título Questões de leitura no hipertexto (2007). Entre as duas colectâneas, reunidas pelos mesmos organizadores, existe um fio condutor. Ambas se referem à leitura no espaço multimédia e rizomático da Internet – “na face das ondas”, como os próprios organizadores referem – e oferecem um conjunto de reflexões sobre o uso expressivo e colaborativo de ferramentas digitais. Disponível num formato compacto, este volume apresenta textos e letras num tamanho facilmente legível. No entanto, o leitor irá notar a presença de diversas gralhas ao longo do livro. Por seu turno, a qualidade de imagens fica frequentemente aquém do necessário o que inviabiliza a consulta de muitos dos gráficos no artigo de Alberto Matos Garcia e a identificação de personagens e cenas no artigo de Fabiano Tadeu Grazioli.
No seu conjunto, a escolha dos artigos revela uma preocupação fundamental em alcançar diversas facetas do universo digital. Porém, esta perspectiva prismática poderia ter sido acompanhada de uma maior coerência temática entre artigos. O leitor que pretenda ler estes textos de forma linear (isto é, seguindo a ordem proposta pelo “Sumário” ou índice) certamente irá encontrar pontos de ligação entre todos eles. No entanto, a distância entre esses pontos é demasiado grande, o que faz com que o leitor se perca no acumular de temas trazidos à tona por cada um dos artigos. Para evitar perder-se neste emaranhado de propostas, a consulta da colectânea deve ser feita tal como sugerido pelos organizadores, ou seja, por unidades temáticas seleccionadas através do menu. Ao permitir ao leitor escolher o tema que deseja consultar, o livro é transformado num manual de consulta rápida que oferece coordenadas para explorar as diferentes rotas de navegação propostas pelos onze artigos. Sendo assim, ele adquire uma faceta enciclopédica similar à da WWW.
Embora distanciados por algumas dezenas de páginas, o leitor poderá encontrar dois artigos sobre educação e formação no meio digital. Em “Linguagem, tecnologia, conhecimento e suas relações no contexto de formação continuada de professores”, Fernanda Freire defende a necessidade de sensibilizar os professores para o uso de recursos informáticos, não só no contexto de sala de aula, mas também na sua própria formação. A autora refere-se a um curso de formação à distância e oferece exemplos sobre as dificuldades encontradas (principalmente na aquisição de linguagem técnica) durante a aprendizagem da ferramenta de comunicação TelEduc.
Na introdução, os organizadores apontam para a dificuldade em ensinar jovens a navegar nas “águas da Internet” porque “eles sabem mais do que os mais velhos”. O artigo “Os jovens diante das telas: novos conteúdos e novas linguagens para a educação literária” propõe uma solução. Alberto Matos García considera que sagas como O Senhor dos Anéis promovem a imaginação e o pensamento crítico. Graças a esta capacidade, García defende que elas podem ajudar a preparar os jovens para a cultura digital e para as “leituras selvagens” (Roger Chartier) feitas no meio digital. Dada a forte adesão a tal género literário, o autor defende a sua integração no currículo escolar. O artigo apresenta vários gráficos sobre actividades praticadas por estes “nativos digitais” e chama a atenção para o atrito entre a cultura letrada, promovida pelo currículo escolar, e a cultura digital, com a qual a maior parte dos jovens parece identificar-se.
No contexto brasileiro, o termo “tela” pode designar uma tela de projecção ou a tela de um quadro. Porém, esta palavra corresponde igualmente à superfície vítrea e electrizada apelidada de “ecrã”. O computador é um poderoso simulador de outros média, o que confere ao termo “tela” um significado particular. Muitos dos artigos da colectânea referem-se à sua capacidade de assimilar e reconfigurar as características de várias formas de arte. Sobre a influência das novas tecnologias no teatro, o leitor encontra o artigo “Literatura, teatro, imagens: ‘Geni e o Zepelin’ , de Chico Buarque no YouTube” no qual Fabiano Tadeu Grazioli descreve o YouTube como um “pequeno palco ao acesso do navegador/espectador”. O autor considera que existe falta de incentivo à leitura do género dramático, pelo que, ao funcionar como um “arquivo audiovisual”, este site estará a contribuir para a aproximação entre teatro e espectadores. Ao mesmo tempo que reconfigura a relação entre ambos, o YouTube cria novas possibilidades de criação artística. Grazioli defende que o YouTube não é um “banco de dados” mas um “acervo memorialístico” que assimila outros média e abre caminho para uma revisão do conceito de “teatralidade”.
No artigo “Novas estratégias de antropofagia na literatura digital”, Alckmar Luiz dos Santos refere-se a uma antropofagia entre o formato impresso e o formato digital. O autor elabora uma análise do poema Amor de Clarice de Rui Torres descrevendo-o como uma apropriação de um conto de Clarice Lispector. Se Grazioli descreve o teatro como um objecto de reconfiguração que mantém as suas características fundamentais, aqui o leitor encontra um conto impresso que, ao ser apropriado, gera uma obra totalmente diferente. Cabe ao leitor a construção de uma narrativa própria e interminável através de um processo de teatralização da leitura onde assume o papel de agente de sentido (ou “director de cena”), não só porque decifra o código verbal, mas também porque desencadeia um novo texto a cada interacção com o computador.
A literatura produzida e lida em meio digital é igualmente abordada por alguns dos artigos da colectânea. Em “A não diacronia da poesia digital e a influência do poema processo” Wilton Azevedo considera a expansão de signos como elemento fundamental da poesia digital. A natureza combinatória e matemática desta poesia é possibilitada pela linguagem de programação, de onde decorre que esta terá também uma dimensão poética. Segundo Azevedo, o poema digital renova-se por intermédio de uma “autofagia”, rejeitando frequentemente o alfabeto e alimentando-se de si mesmo, ou melhor, da sua permanente geração. Ou seja, o poema recusa-se a contar uma história e mantém-se como uma experiência ou um desafio lançado pela fugacidade e a imprevisibilidade dos signos. Neste artigo, Azevedo sugere a criação de novos métodos de análise e de uma nova tecnologia que permita ver para além da bidimensionalidade da página.
No artigo “O leitor e a leitura do ciberpoema”, Simone Assumpção descreve a forma como o hipertexto concretiza algumas ambições da poesia. Ao reunir som, vídeo, textos e imagens e ao permitir uma ligação instantânea entre conteúdos, o hipertexto multiplica o potencial estético de uma obra exigindo igualmente uma abordagem semiótica. Em “Poesia hipermídia: estado de arte”, Jorge Luiz António sublinha que a poesia hipermédia é uma continuação do jogo semiótico entre imagem e palavra herdado do movimento concretista. Inicialmente, esta poesia ocupava o “espaço bidimensional da página” e posteriormente terá herdado e reconfigurado características de diversas artes tornando-se num objecto tridimensional. O autor refere que a poesia hipermédia está envolvida no processo de “poetização das tecnologias digitais” e descreve-a como um “produto cíbrido” localizado entre os modos on e offline. Este tema é em parte retomado pelo artigo intitulado “A solidão impossível: a (híper)leitura e o (híper)leitor”. Para os autores, o ser humano também estará dividido entre aqueles dois estados. Embora esta ideia faça lembrar o conflito entre seres humanos e máquinas, retratado pelas distopias do cyberpunk e da ficção científica, os autores preferem sublinhar uma parceria ou um ciclo de alimentação e retroalimentação (N. Katherine Hayles) entre ambos. Miguel Rettenmaier e Tania Rösing referem-se a uma migração da literatura para o meio digital e discutem a validade do blog ou do Twitter enquanto ferramentas de criação literária. Para os autores, a leitura e a escrita nunca foram actividades solitárias porque aquele que lê e escreve tem em vista o contacto com o outro. A comunicação em rede é descrita como uma continuidade deste processo, permitindo partilhar um texto instantaneamente.
Já o artigo “Edição e criação nas sociedades contemporâneas” centra-se no papel do editor face ao meio digital. Para José António Cordón Garcia, este ocupa a função de “espurgo de títulos para conformar uma biblioteca”. Sem a sua intervenção, o livro impresso permanece num limbo entre a mera actividade de escrita e a literária. Contudo, ferramentas como o blog introduziram novas formas de expressão e publicação que dispensam a intervenção editorial e que alteram profundamente a concepção de autor e obra. Neste artigo, Garcia demonstra como a revolução digital alterou a função editorial de forma “irreversível” e como o escrutínio executado pelo editor foi substituído por uma proliferação de títulos impossível de assimilar.
Sobre a ficção em meio digital, o leitor encontra o artigo “A quarta era da ficção interactiva”, onde Nick Monfort refere que a hibridez da ficção interactiva a impede de ser valorizada, quer por aficionados de jogos de computador, quer por bibliófilos. Monfort deseja a sua aceitação como uma forma de arte literária e prevê a criação de “novas máquinas de ficção interactiva” ou “máquinas literárias” que poderão ajudar à concretização de tal objectivo. Segundo o autor, estas novas máquinas poderão manter uma conversa através de um “subsistema narrador” que transmitirá narrativas variáveis de eventos simulados. Monfort defende que, ao combinar simulação, computação e narração, a ficção interactiva constrói uma ponte entre ludologia, ciência e literatura.
No artigo “A ficção em hipertexto” Sérgio Cappareli refere que não existe um vocabulário específico para descrever as características do hipertexto e que, em vez deste, têm sido adoptados termos imprecisos ou metáforas. É justamente à metáfora do labirinto, amplamente usada na teoria do hipertexto, que Cappareli recorre para demonstrar que a ficção em hipertexto não oferece novos pressupostos à teoria literária. Ainda que pretenda romper com características atribuídas ao romance – como a linearidade, a sequência temporal e a primazia dada à palavra – a ficção em hipertexto é descrita pelo autor como uma continuação do labirinto de Borges e dos romances pós-modernistas. Cappareli refere-se aqui a um primeiro estágio da teoria do hipertexto durante o qual prevalecia a dicotomia impresso/digital. Esta divergência entre “o velho e o novo” tem vindo a ser substituída pela noção de que ambos pertencem a uma ecologia medial em permanente evolução. Dentro desta, os média coexistem e partilham características. Na colectânea, os pontos de intersecção entre o digital, o impresso, o analógico e o corpóreo são permanentemente assinalados. O trabalho de selecção executado pelos organizadores resultou num volume equilibrado que não pende para a euforia nem para o cepticismo face às novas tecnologias. A colectânea apresenta ao leitor várias linhas do horizonte, permitindo-lhe alcançar um amplo espectro de perspectivas. Na verdade, o mar é vasto e as ondas que assomam tecem um terreno irregular. Aqui, “na face das ondas”, não existe um ponto onde fixar o olhar e as possibilidades são infinitas.
© 2013 Daniela Côrtes Maduro.