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Missfire: O Tsunami Digital
e o Pânico das Humanidades
Ricardo Namora
CLP | Universidade de Coimbra

Um dos poucos modos pelos quais podemos imaginar que pessoas que se ocupam das chamadas humanidades são realmente cientistas de laboratório passa, de maneira particular, por aplicar ao seu trabalho correspondências determinadas com conceitos e relações que se encontram suficientemente estabilizadas noutros campos disciplinares. Assim, e partindo do pressuposto de que aqueles não-cientistas vivem na ansiedade permanente de não terem um objecto fixo para o qual apontar, podemos facilmente fazer equivaler o seu esforço a uma equação matemática. Talvez deste modo se possa lidar com este momento reconhecidamente em trânsito que vivem as humanidades, e que seguramente irá desempenhar um papel crucial no entendimento que o futuro delas fará. Quando se fala, por exemplo, em humanidades digitais, um tal exercício parece fazer parte inequívoca de uma agenda explicativa que aspira a manejar o carácter heterogéneo e a plasticidade conceptual daquele “objecto”. Se quisermos, então, podemos levantar a hipótese segundo a qual uma descrição do enunciado humanidades digitais pode ser concebida como uma equação e, desde logo, que tal processo exige uma determinação adequada dos termos dessa mesma equação.

O primeiro passo será, então, o de tentar definir correctamente o que conta como humanidades e o que conta como digital, uma vez que o reconhecimento de qualquer equação qua equação parece depender inequivocamente dos termos sobre os quais aquelas são tipicamente construídas. Mas é justamente aqui que começam os problemas. Isto porque, num sentido importante, existem pelo menos duas ordens de razões que contribuíram para uma perturbação crucial das fronteiras conceptuais que em tempos circunscreveram as noções de humanidades e de digital: a primeira tem a ver com a reconstituição histórica do âmbito das humanidades que ocorreu, vagamente, na segunda metade do século XX (embora seja de admitir que ela segue de um desconforto disciplinar e teórico que remonta mais atrás); a segunda, com o papel ainda equívoco que o digital parece desempenhar quando cooptado pelas humanidades, o que, em certa medida, tem contribuído não só para descaracterizar ambos os termos como, ainda pior, para convocar um peculiar atrito prático que parece desconvocar as possibilidades mais promissoras de interacção entre aqueles. Existem, para além disto, questões de carácter meta-teórico que têm a ver com dois motivos históricos (e práticos) adicionais e que são transversais a uma descrição contemporânea dos termos propostos: desde logo, a reconceptualização da noção de “texto” – central para a constituição das humanidades enquanto campo de estudos –, que foi propiciada pelo digital e, consequentemente, por uma série de discussões que se centraram nas materialidades da comunicação e nos processos de transmissão; e, por outro lado, o modo como, naturalmente, os diversos “ramos” das humanidades aproveitaram a “revolução digital” – sendo certo que os usos das ferramentas, dos processos e da lógica digital são fatalmente diferentes quando operacionalizados pela literatura, pela sociologia ou pelos estudos culturais.

Assim, podemos talvez concluir que aos termos iniciais da equação se acrescentam modulações e variáveis que prenunciam um módico de complexidade assinalável a ser imposto àquela. Isto faz com que as dificuldades de partida, já de si substanciais, se multipliquem (e compliquem) exponencialmente e, em consequência disso, que também as tentativas de explicação se tornem, elas mesmas, difusas. Deste ponto de vista, a obra L’Umanista Digitale parece ser um caso paradigmático – uma bomba de fragmentação em vez do desejável tiro certeiro. A obra divide-se em quatro partes: na primeira, Numerico escreve sobre a interacção entre a tecnologia e o saber humanístico; na segunda, Fiormonte leva a cabo uma descrição dos processos de escrita digitais, e respectivas implicações; na terceira parte, Tomasi dá conta dos processos de representação e conservação instigados pelo digital; por fim, na quarta e última parte, Numerico escreve sobre a investigação e a organização dos conteúdos propiciada pelos “motores de busca” e outros meios de pesquisa digital. Num apêndice final, Fiormonte dirige-se de modo panorâmico à situação internacional das humanidades digitais, num texto paradoxal que procura, sem sucesso, escamotear o constante recurso a essa “situação internacional” – que é recorrente ao longo do livro.

O tiro de partida desta obra é dado, segundo se diz na introdução, por um artigo de 2009 publicado na edição online do periódico italiano La Repubblica em que se dá conta do anúncio do gigante informático Google do lançamento de uma biblioteca digital de 500.000 volumes. Este anúncio é usado como uma espécie de metonímia para o tsunami digital das últimas décadas ou, na pior das hipóteses, como uma constatação inequívoca de que algo verdadeiramente revolucionário está a acontecer no mundo da comunicação. Evidentemente, não existe qualquer objecção possível a este facto, e à constatação trivial de que o digital constitui (ou está a caminho de constituir) a verdadeira revolução pós-moderna, comparável apenas, hipoteticamente, à invenção dos tipos móveis ou à revolução industrial. O grande problema é que, quando se tenta descrever uma equação denominada humanidades digitais, devemos ter em mente que existem dois termos discerníveis, e não apenas um. Com efeito, o que Numerico, Fiormonte e Tomasi parecem querer fazer é encenar uma deliberada (embora implícita) incomensurabilidade entre os dois termos – sendo que, no seu caso, é o termo humanidades que é esvaziado do seu sentido para que o termo digital possa, de algum modo, territorializar de modo peculiarmente invasivo as suas implicações.

Assim, e contra as intenções iniciais, aquilo que nos é oferecido na primeira parte (“História da interacção entre a tecnologia digital e o saber humanístico”) reflecte não uma interacção, stricto sensu, entre dois conteúdos discerníveis, mas um longo arrazoado de nomes e factos relacionados com a expansão digital e com o modo como uma série de técnicos muito competentes foram trilhando o caminho tecnológico, a partir das calculadoras de Turing e dos distantes anos 1930 – apenas dois “humanistas”, Bloom e McGann, são citados ao longo do capítulo. Do mesmo modo, a segunda parte (“Escrever e produzir”) é uma tentativa algo confusa de responder às perplexidades criadas pela velocidade in momentum do digital face ao requisito temporal de transmissão que é característico do analógico. Uma vez mais, poucas objecções podem ser levantadas contra esta premissa trivial. O problema é que coisas como a “instabilidade construtiva” dos fenómenos da escrita não são exclusivos da era digital – ao invés, foram (e são) discutidos há já muito tempo por disciplinas de sótão como a Teoria da Literatura, entre outras. “Representar e conservar”, a terceira parte, é um exercício muito bem conseguido de uma “humanista” que é capaz de levar a cabo uma série de truques técnicos em linguagem informática e descrever o modo como, operativamente, alguns repositórios e bibliotecas digitais podem funcionar. A questão, mais uma vez, é que nada (ou muito pouco) neste capítulo nos demonstra o que têm as humanidades a ganhar – ou a perder – com este tipo de conhecimento ilustrativo de esquemas, linguagens e metalinguagens. A quarta e última parte (“Procurar e organizar”) consiste numa descrição, de novo técnica e algorítmica, mais do que conceptual ou epistemológica, dos motores de busca tradicionais, das alternativas a estes e, por fim, numa espécie de apêndice disforme, de alguns problemas políticos e éticos supostamente suscitados pelo uso daqueles. A perspectiva, neste ponto, é ainda técnica e operacional, embora nesta secção exista um arremedo de preocupação social que não figura nos capítulos precedentes.

Em resumo, L’Umanista Digitale é um tiro em falso. Se o virmos como uma iniciação aos mistérios técnicos, a determinados usos e, até, a uma história possível do digital, ele terá seguramente os seus méritos. Se, ao invés, o medirmos à luz do título, e das consequências epistemológicas que as humanidades digitais inexoravelmente reclamam na pós-pós-modernidade, ele não pode senão oferecer motivos de desilusão. Parece-se muito, deste ponto de vista, com uma tentativa desesperada (e ingénua) de alguém que, quando confrontado com um tsunami, se resolve a apanhar o barco mais seguro para fugir dali para fora. Creio, no entanto, que esta não é a melhor forma de se debater o que conta como humanidades digitais nos dias de hoje, e muito menos o que conta como um humanista na era tecnológica. Aliás, ser-se um humanista moderno pode não passar por se demonstrar uma grande aptidão técnica para lidar com linguagens computacionais ou por se conhecer em profundidade os contributos de Vannevar Bush ou de Peter Suber para o mundo digital. Mas talvez passe, de outro modo, por tentar perceber quem somos nós, enquanto humanistas, depois, apesar de, e com o auxílio da “revolução digital”. Se quisermos, pode passar por não entrarmos em pânico e tentarmos refazer a nossa vida calmamente, no sítio onde sempre estivemos.