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A Poética Sociológica de Medviédev e Sua Atualidade
Matheus de Brito
Universidade de Coimbra

O espírito de “escola” nunca foi realmente comum entre os críticos lusófonos. Uma das consequências disto seria o fato de entre nós não proliferarem, a despeito do prestígio de certas teorias, nem discursos em defesa de monólitos nem invectivas desesperadas contra fantasmagorias teoréticas. Explica-se com isso a demora em traduzir para português um texto como O método formal nos estudos literários? Este chegou aos EUA praticamente desde a descoberta do grupo de cooperação intelectual formado por figuras como Pável Medviédev, V. Volochinov e Mikhail Bakhtin – devido à proeminência deste ficando conhecido como “Círculo de Bakhtin” –, cujo processo de integração foi geralmente seguido com equivalente afã pela academia brasileira. De qualquer modo, curioso como o intervalo de quase quatro décadas entre a tradução americana (1974) e a brasileira (2012), o texto é dado “fundamental para os estudos de linguagem” no expediente anônimo das abas da presente edição.

A tradução a partir do russo (Formálnyi miétod v literaturoviédenii) é algo como um quiasmo realizado conjuntamente por Sheila Camargo Grillo, linguista eslavista que também assina o prefácio, e Ekaterina Vólkova Américo, cuja competência, além do russo como língua materna, é seu envolvimento com teoria da literatura e a semiótica da cultura. A apresentação redigida por Beth Brait, professora aposentada da USP que largamente se responsabiliza pela promoção do bakhtinismo no Brasil, contextualiza o trabalho na contemporânea vida acadêmica. O livro traz também, além dos textos de Brait e de Sheila Grillo, um breve comentário sobre minúcias da tradução, o qual é assinado também por Ekaterina Américo. O prefácio “A obra em contexto: tradução, história e autoria”, além de explicar o trabalho (as fontes, o cotejo com outras traduções), discute substancialmente a autoria efetiva do texto, a qual – a despeito de “neutralmente” Grillo considerar impedida a “resolução da questão” (36) – é todo o tempo orientada no sentido de subscrever a autoria atribuída na bibliografia, assim se ocupando de refutar quaisquer posições favoráveis à de Bakhtin e reiterar as hipóteses que levem a concluir a favor de Pável Medviédev. O epílogo consiste numa nota biográfica de autoria de Iuri Pávlovitch Medviédev (Pávlovitch, i.e., filho de Pável) e reforça-nos certo senso ético, memorial da autoria; segue-se, enfim, uma bibliografia por ele organizada.

Voltando às abas, duas perguntas podem fazer-se quanto à promessa de encontrarmos algo “fundamental” neste libelo antiformalista, algo que talvez tenha sido esquecido. A primeira procura a referência aos “estudos de linguagem” que se alicerçariam nela; fundamental para sanar o uso retórico de “fundamento” seria compreender que a única contribuição possível ao campo seria do tipo retroativo, desde já devido à histórica ausência do texto, mas também pelo seu caráter rudimentar em relação à atual pesquisa linguística. Hipótese a considerar-se é a de que o texto não se traduziu por – afora a escaramuça prometida na “crítica” anunciada no subtítulo – já não ser, sendo seu achado tardio em relação a desenvolvimentos ulteriores de alguns tópicos ali ensaiados, “substancial” para os estudos do discurso. Com isso, porque mais rudimentar que a obra de Bakhtin, cuja proeminência ofuscou os demais do “Círculo”, ele acabou por deixado para o fim da pauta acadêmica. Quanto à segunda perspectiva, concernente ela à dimensão menos literal da expressão (e menos anacrônica), esconjure-se a falta de convicção da retórica editorial com a consciência de que as várias considerações ensaiadas nesse texto comparticipam da concepção “bakhtiniana” de linguagem, apresentando inflexões do que se consolidou como “teoria do enunciado concreto”. O que fundamentalmente já não interessa, isto é, o que não interessa para fins atuais ou efetivos dos estudos do discurso, contudo, não seria matéria senão da pré-história de um campo ou da história potencial de uma disciplina – e é essa leitura que talvez faça mais proveito hoje da obra de Medviédev. Acrescente-se a isso que a aba não assinada é uma colagem feita a partir da excelente apresentação, “A importância e necessidade de O método formal nos estudos literários”.

O caráter rudimentar do texto não se deve tanto a um atraso intelectual em relação ao “estado da arte”, é-lhe antes constitutivo. A obra explora sistematicamente as insuficiências do “método formal” (lê-se “formalismo russo” na maior parte dos casos) e quase acidentalmente formula algo para além dos expedientes deflagrados por essa violenta dialética – uma dialética meio empalidecida pela ciência marxista e que às vezes roça o programa cultural soviético com seu colorido de realismo socialista. Isto é quase anunciado no subtítulo, por extenso: Introdução crítica a uma poética sociológica. A prova do “crime” ortodoxo vai da regra compositiva dos parágrafos-de-ordem – o estilo não raro monofrástico e sentencioso que se aproxima do também controverso Marxismo e Filosofia da Linguagem – à ordenação do texto como um todo, que às vezes se assemelha a uma cartilha: quatro partes, cada qual com dois ou três capítulos, cada um dos quais discutindo entre oito e quinze tópicos, normalmente havendo um saldo do discutido. Mas isto, contrariamente ao que se infere do apetite estilístico contemporâneo, é a felix culpa da teoria: o rigor serve-lhe de crivo para o ouro-de-tolo que doutra sorte passa por teoria.

Considerada em seu antídoto contra o formalismo, o destino da monografia na contemporânea teorização literária – ecoando a emergência da “era bakhtiniana” apresentada por Brait – é-lhe extremamente favorável. Embora se possa tratar do método formal (e do estrutural) como de um inimigo vencido, o espírito positivista que os chamou à vida nunca foi de todo extirpado das humanidades; assim, vale salientar a forma como Medviédev (ou Bakhtin) articula e discute os principais teoremas (ou dogmas) dos formalistas ab ovo, exigindo sua revisão sob um prisma materialista, histórico e sociológico. Ao estudante deste início de século, o livro coopera com o trabalho de realizar o saldo epistemológico dos estudos literários no século de sua quási-cientificização, sem reduzir seus temas ao categórico “isto foi superado” com que às vezes a máquina educacional defrauda as expectativas acadêmicas. Antes mesmo de contribuições conceituais, que é o que se quer da teoria, o livro dá-nos a rica experiência de imersão num certo contexto intelectual, tornando presentes as implicações de tomadas de partido no campo simbólico da cultura; introduzir a “poética sociológica” por meio da crítica ao seu antípoda asseguraria de maneira consequente que a teoria não fosse deduzida de um sistema qualquer, mas dialética: produto e processo.

O pouco de fantasia histórica que nos é cobrado para superar o tédio estilístico e acompanhar a discussão é gratificante. É possível esboçar três modos de leitura de O método formal: linearmente, acompanha-se a apresentação em série de conceitos formalistas e de suas insuficiências, emergindo daí a anunciada “poética sociológica”; a modo de pesquisa informacional, pode-se ir à procura de versões protoconceituais de dialogismo, cronótopo e outros conceitos afins, comuns ao “Círculo”; pode-se, por fim, fingir o êmulo formalista e inquirir, num simulacro de vendetta, a “poética sociológica”, procurando pôr em evidência os pressupostos e compromissos epistemológicos assumidos, o seu cui bono. A primeira leitura é ineludível; as demais são formas de reelaborar o interesse pelo livro. Um exemplo de recuperação de informação dá-nos Brait ao resumir a concepção de género na ideia de que a linguagem se materializa por meio de enunciados concretos articulando “interior” e “exterior, viabilizando a noção de sujeito histórica e socialmente situado (...) o gênero emerge da totalidade concluída e solucionada do enunciado, que é o ato realizado por sujeitos organizados socialmente de uma determinada maneira. Trata-se de uma totalidade temática, orientada pela realidade circundante, marcada por um tempo e um espaço. (14-15, itálicos da autora)

O capítulo a que ela se refere, “Os elementos da construção artística”, é o terceiro da terceira parte, de título “O método formal na poética”. Como indica, essa parte pormenoriza o formalismo e seus conceitos, como linguagem poética, material e procedimento, fabulação, a conhecida parafernália que se apresenta nos cursos de Teoria desde os anos de 1970-80, com o revival do formalismo na república (brasileira) das letras. Previamente, ocupara-se Medviédev de introduzir “a ciência das ideologias e suas tarefas” (estudos da cultura, em amplo sentido), assim especificando num tom igualmente enfadonho o “Objeto e Tarefas dos Estudos Literários Marxistas”, título da primeira parte, e oferecendo uma perspectiva geral do formalismo na Europa Ocidental e na Rússia, na segunda parte. A última parte, já considerado o método, dedica-se à história da literatura e sua correlação à doutrina marcadamente a-histórica da epistemologia formalista.

Outro exemplo de recuperar o que já não é efetivo seria pensar o valor documental do livro e o que se pode inferir para uma história “possível” de uma área correlata. Aquilo a que lato sensu o autor se refere como “formalismo” (132-136) é a deficiência metodológica que por um lado consiste em pôr o objeto de estudo de uma vez por todas à parte do contexto total da cultura, ou ainda hipostasiar o estético l’art pour l’art no sistema da “linguagem” (134,162) e, por outro lado, em tomar parte na recusa ilimitada da psicologia da arte, o que, rejeitando o fato de que o psiquismo individual é uma inflexão de natureza histórico-social, acaba por criar uma objetividade “comprada à custa do sentido” (212). Formalismo é a autonomização do objeto, acompanhado da desreferencialização do sujeito; uma metafísica da forma significante de uma substância ausente. A teoria do “enunciado concreto”, aguilhão da resposta à insuficiência formalista, pensa a literatura na “mediação entre a língua, como um sistema abstrato de possibilidades, e sua realidade concreta” (189) sem, por outro lado, incorrer na ilusão psicologista de que o processo de criação, subjetivamente mediado, seja restrito à esfera do indivíduo. Documento, seu compromisso é com a distância pregnante entre o universo social e a singularidade do sujeito, entre a experiência da língua e a percepção enraizada no hic et nunc determinado que os formalistas quiseram banir em nome da “objetividade”. A necessidade atual de O método formal tem a ver com esta consciência.

O que Medviédev sustenta, tanto a favor, quanto contra os formalistas, se ambos comungam inimizades, é uma teoria que se recuse à fixação do objeto à custa de sua vida na dinâmica da cultura. O problema é posto ao perguntar-se “como reunir, na unidade da construção artística, a imediata presença material de uma obra singular, seu aqui e agora, com a finita perspectiva semântica dos significados ideológicos introduzidos nela” (181). A isto se responderia se se pudesse pensar um mediador que fosse parte “tanto da presença material da palavra quanto do seu significado e intermediasse a reunião da profundidade e abrangência do sentido com a singularidade do som pronunciado” (182). Noutras palavras, seria algo como a concepção aristotélica de signo enquanto correlação imediata entre concretude sensual e realidade do sentido.

Essa perspectiva rompe com a ideia da motivação arbitrária do signo, imprimindo-lhe o matiz da necessidade socio-histórica: “entre o sentido e o ato (enunciado), entre o ato e a situação concreta histórico-social, é estabelecida uma ligação histórica, orgânica e atual” (184). Isto obriga a considerar o material não como “entidade” mas como inseparável do evento de écriture da “avaliação social”, “essa atualidade histórica (...) que individualiza e concretiza o sentido e compreende a presença sonora da palavra aqui e agora” (184). A observação de que a expressão típica desse processo é a “entonação expressiva” remete-nos à esfera do assemântico, do supra ou infra segmental, que não se reduz à intenção direta de significar, mas de maneira oblíqua insere “ininterruptamente a obra literária no tecido geral da vida social de uma dada época histórica e de um dado grupo social” (188). Não se poderia considerar o mesmo sobre inflexões nos grafemas, a tipografia, convenções bibliográficas, o design na web?

Essa mediação entre a forma interna, historicamente sedimentada na palavra qua material, e a forma externa tout court, respeitante aos contextos de enunciação, refere-se à dialética do gênero sintetizada por Brait na apresentação. Importante a esse respeito é notar a recusa a uma noção de gênero como motivação “meramente estética” e frisar a consideração sobre o valor epistêmico das escolhas estilísticas mediante o processo cognitivo que as rege (198-200). Ao submeter, assim, o problema do “sentido” à esfera social a que o sentido pertence e, por fim, considerar a esfera das práticas indissociável de sua materialidade, sem decidir pelo primado de uma sobre a outra, sua crítica aos formalistas ia também de encontro à cartilha marxista e ao estalinismo cultural. Este, apesar de materialista, punha a consciência sob o primado espiritual do conteúdo; Medviédev, insistindo na dialética entre os meios materiais e as práticas sociais, não coadunava com a estabilidade que a ortodoxia exigiria.

A razão pela qual caiu no olvido pela primeira vez foi, sendo considerado – talvez por pensamentos como esses – inimigo do estado, seu fuzilamento pelo regime soviético. O fato de que Medviédev (ou Bakhtin?) assumiu de modo consequente o confronto epistemológico com o positivismo nas humanidades, cuja ruína se consolidou no século XX, garante que o estado “rudimentar” de sua obra, menos do que uma limitação, seja a oportunidade de desenvolver seu pensamento num sentido diferente do que até então foi fundamentalmente seu destino histórico.

© 2013 Matheus de Brito.