Porquê Editar a Marginalia Pesssoana? |
Quando se fala da necessidade de editar a obra de Fernando Pessoa, da importância de rever e republicar os textos já editados em diversas edições, ou até da intenção de a disponibilizar online, ambicionando-se à publicação de uma obra completa que, a concretizar-se, ainda demorará algum tempo, dada a extensão do espólio, é fundamental questionarmo-nos sobre tudo o que o poderá constituir – os fragmentos deixados na arca, os cadernos, os artigos publicados em jornais e revistas, as traduções realizadas, as cartas, entre outros.
Na realidade, ainda está por considerar aquilo que, com as devidas especificidades, poderíamos chamar de um “segundo espólio”, praticamente todo por editar e que se encontra incluído nas centenas de volumes que pertencem à Biblioteca Particular de Fernando Pessoa, na sua maioria, à guarda da Casa Fernando Pessoa (1060 títulos), embora alguns exemplares ainda se encontrem em posse dos familiares do poeta (150 títulos), ou na Biblioteca Nacional (99 títulos).
Ainda que a Biblioteca que agora está disponível para consulta não compreenda a totalidade dos livros realmente lidos e consultados por Pessoa (já que a identificação dessa totalidade – “a biblioteca ideal” – dificilmente será concretizada[1 ]), aquela a que agora temos acesso dá testemunho de um poeta, não apenas como leitor, mas também na sua função de anotador, não raras vezes estabelecendo uma relação intrínseca com os escritos que deixou por revelar dentro da sua arca.
Assim, quando consultamos esta Biblioteca e nos detemos naquilo que ela nos oferece em termos de marca pessoana, podemos identificar um conjunto de especificidades e particularidades que apontam para a concepção de uma regularidade ou homogeneidade em termos de anotação, o que nos leva a concluir que a marginalia de Fernando Pessoa se assume como um instrumento de trabalho para leitores e para críticos, que permite a reconstituição de um percurso enquanto leitor, ao mesmo tempo que revela uma outra faceta ao nível da produção reflexiva, crítica e até poética, a par da possibilidade de estabelecer uma confrontação com textos posteriormente produzidos pelo poeta, determinando, portanto, a construção da sua identidade literária.
Deste modo, para percebermos a recepção que Pessoa terá feito de determinadas obras, será pertinente, desde logo, especificar o tipo de anotações, marcas e outros sublinhados que podemos encontrar ao longo das páginas que constituem esta biblioteca, identificando algumas particular-dades, categorizando-as de acordo com as suas especificidades e procurando verificar quer a função a que se destinam quer a relevância que assumem para o texto em que se inserem.
Não parece haver grandes dúvidas de que Fernando Pessoa dedicou grande parte do seu tempo à leitura: desde os tempos em que viveu em Durban e até 1935 (ano da sua morte), os livros foram uma presença constante e importante para a construção da sua identidade estético-literária. Tal pode ser observado através da Biblioteca Pessoal (que contém cerca de 1310 títulos), das várias listas de livros que pretendia adquirir e ler (que encontramos nos diversos cadernos e nas folhas soltas pertencentes ao espólio da Biblioteca Nacional) e dos diversos comentários nos seus diários ou textos reflexivos acerca do papel que a leitura exerceu ao longo da vida. Da consulta realizada aos livros desta Biblioteca, podemos comprovar a existência de marginalia de tipologia diversa:
A marginalia, propriamente dita, onde se incluem os comentários ou as notas escritas nas margens ou noutros espaços em branco junto do texto de uma página impressa, nas folhas em branco ou nas folhas de guarda de um livro. Para além das tradicionais marginalia, devemos considerar ainda de extremo interesse as notas escritas em folhas de papel soltas, em caderninhos de leitura ou ainda em pequenos papéis deixados dentro das folhas dos livros, sendo que as mesmas podem também ser consideradas como uma forma de marginalia paralela, desde que se refiram claramente ao texto do livro a que correspondem ou onde foram encontradas.
Por outro lado, encontramos outras formas de anotação, igualmente importantes e reveladoras, a que podemos chamar de sub-marginalia e que incluem os sublinhados, as linhas verticais ao longo das margens do texto ou outras marcas e sinais de pontuação, que apontem claramente para uma intervenção do leitor no texto original.
Finalmente, salienta-se também o que pode ser apelidado de quasi-marginalia e que, como já referimos, corresponde às notas escritas em livrinhos de leituras, cadernos ou em folhas separadas e que, não tendo sido escritas no próprio livro, a ele se referem directamente e que apontam para a probabilidade de Fernando Pessoa ter escrito essas notas num desses cadernos ou folhas soltas, enquanto ia lendo o livro, ou em resultado de uma leitura temporalmente próxima.
Como parece ficar claro, a constituição da biblioteca do poeta português não terá sido, de modo algum, concretizada ao acaso já que, exceptuando os livros que recebeu do irmão do seu padrasto, ou de alguns amigos, cada livro foi adquirido com base num motivo ou intenção, uma vez que o poeta procurava estar a par das edições nacionais e estrangeiras que iam sendo publicadas, relativamente aos temas que lhe eram mais caros, chegando a fazer listagens de livros que desejava vir a adquirir ou que já tinha adquirido (Figura 1):
Figura 1. Página de um caderno assinado em nome de Alexander Search (BN-144-H-1). |
Na literatura portuguesa, o corpus da marginalia Pessoana é um dos mais importantes e representativos, quer pela variedade dos temas que abrange, quer pela acuidade crítica, quer ainda pela importância que assume para a generalidade da sua obra. Cerca de setenta por cento dos livros que constituem esta biblioteca contêm alguma forma de anotação que importa destacar e compreender, sendo que para procedermos ao seu estudo é fundamental, desde logo, identificar algumas características que determinam a sua categorização e interpretação: qual a extensão das notas inseridas num determinado livro, que tipo de anotações ou comentários podemos aí encontrar, qual a função de cada referência e que importância assumem para o texto em que se inserem.[2 ]
Uma das formas primárias de anotação consistia em deixar no livro a chamada “marca de posse” ou assinatura. Assim, é comum vermos os livros que pertenceram a Pessoa assinados por si ou por alguma das suas personalidades literárias juvenis. Efectivamente, o número de livros com a inscrição de uma assinatura ascende a três centenas e, em muitos casos, torna-se possível determinar a altura em que, aproximadamente, Pessoa os leu, ainda que a esmagadora maioria não inclua qualquer datação escrita pelo poeta que nos permita determinar o ano exacto da sua leitura. Tal possibilidade deve-se ao facto de, por exemplo, podermos classificar as assinaturas encontradas nos livros de Pessoa de acordo com dois períodos distintos, que o próprio poeta descreveu numa carta a Armando Cortes-Rodrigues quando declarou que, a partir de Setembro de 1916, tomaria a decisão de fazer “uma grande alteração” na sua vida: tirar o acento circunflexo do apelido. Assim, Pessôa passaria a assinar Pessoa (Figura 2):
Figura 2. |
Para além da forma mais comum de identificação da posse de um livro, encontramos também o recurso a uma espécie de carimbo com as iniciais do nome do poeta (que podemos também associar temporalmente ao período da sua adolescência em Durban), bem como a referência a Charles Robert Anon, (sempre em conjunto com a assinatura do ortónimo), a Alexander Search (autonomamente) e a outras personalidades literárias, o que nos leva a reflectir acerca de questões tão diversas como a “autoria” de dada anotação, sublinhado ou comentário.
O percurso de Fernando Pessoa como anotador inicia-se logo na infância, durante os seus tempos de escola em Durban. Da Biblioteca do poeta consta um conjunto de obras adquiridas enquanto viveu naquela cidade[3 ] que, para além de incluírem os seus compêndios escolares e outros livros de apoio, compreendem também obras que lhe foram oferecidas ou que foram recebidas através da atribuição de prémios escolares e, ainda, de outras referenciadas nos seus “caderninhos de leituras” e diários.
Se centrarmos, em primeiro lugar, a nossa atenção nos livros de escola utilizados pelo poeta, verificamos que estes apresentam já uma série de anotações, sublinhados, traços e outras marcas que nos mostram Pessoa, ainda muito jovem, como aluno que, tipicamente, escreve nos seus manuais, resolve exercícios, sublinha e salienta as matérias ou definições de conceitos considerados como mais relevantes, mas que também usa algumas páginas em branco para fazer rabiscos, desenhos, ou treinar assinaturas suas e de alguns heterónimos ou personalidades literárias em construção.
Nos cerca de vinte e cinco compêndios, as anotações que aí encontramos permitem-nos observar que se centram, essencialmente, na identificação de partes importantes das matérias, desde capítulos que são destacados e assinalados nos índices, a definições que são sublinhadas e postas em evidência. Estas parecem-nos ser anotações típicas de um aluno que utiliza os manuais escolares como fonte de estudo e de aplicação e utilização nas aulas. Sendo de uso recorrente, muitos destes livros revelam algum desgaste devido ao constante manuseamento e foram anotados a caneta e a lápis (inclusive a lápis de cor), o que aponta para as utilizações continuadas a que estiveram sujeitos.
De entre algumas particularidades curiosas que podemos encontrar nos livros de Pessoa relativos a esta época, destacamos a indicação escrita num compêndio de Latim: “Don’t steal this book / For fear of shame/ For in it is / The owner’s name. / And if I catch / Him by te tail / He’ll run off / To Durban jail gaol.”[4 ]
Para além desta observação, encontramos outra semelhante na folha de guarda final do mesmo livro, escrita em Inglês e Francês: “If by chance, this book should come to you as if running away; give him the stick and then send it to F. Pessoa – West St. 157”; “Si ce livre viendrait à vous donnez-le un peu de baton et envoyez-le à F. Pessoa – West St. 157” e ainda “Steal not this book for fear of shame”.[5 ]
Para além das marcações regulares de uso escolar, alguns destes livros contêm também anotações curiosas e de extremo interesse, que revelam a sagacidade e espírito crítico do jovem Fernando Pessoa, bem como a sua grande capacidade de leitura e especial interesse pelos clássicos da literatura em língua inglesa uma vez que, ao longo dos anos em que permaneceu em Durban, Pessoa contactou com alguns autores que se revelaram determinantes na construção da sua identidade poética. Nomes como Shakespeare, Milton, Keats, Poe, Addison e Steele, Tennyson, Carlyle, Whitman, Shelley e muitos outros fizeram parte das leituras do jovem Pessoa, tendo alguns destes autores integrado os currículos escolares para a prestação de exames, enquanto outros faziam parte do conjunto de livros que recebeu em resultado de alguns prémios ganhos em concursos académicos.
Estes exemplares encontram-se anotados e sublinhados, a maioria a caneta preta e a lápis de carvão, evidenciando assim a atenção especial que Pessoa lhes dedicou e as diversas leituras realizadas em períodos distintos. Alguns destes livros incluem notas que remetem para a leitura de outros autores, como é o caso de The Poetical Works of John Keats, volume em que, para além de apreciações feitas ao lado dos poemas destacados (“good”, “admirable”, “true and painful”), podemos encontrar referências a autores como Gray e Dryden.[6 ]
É indubitável que Fernando Pessoa escrevia notas marginais por razões múltiplas: enquanto estudava (ainda nos anos da sua juventude), como forma de se recordar de algumas passagens que lhe interessavam particularmente, e às quais poderia recorrer quando necessitasse. Por outro lado, através das notas e marcações apostas em alguns exemplares, podemos também ter acesso ao que chamaríamos de esboço da tradução de alguns textos; noutros casos, observamos momentos relativos à produção poética e reflexiva do poeta, e noutros ainda, pura e simplesmente, assistimos ao modo como Pessoa elogia ou ironiza com alguns dos textos lidos (Figura 3):
Figura 3. Relativamente ao poema “Fortunati Nimium”, Pessoa escreve num tom claramente irónico: “Fortunate is he who doesn’t read it” in Palgrave’s Golden Treasury of Songs and Lyrics, London, Macmillan and Co., 1902. |
Em função dos diversos instrumentos de escrita utilizados por Pessoa para anotar os seus livros, torna-se possível identificar o número de leituras que o poeta terá realizado de um determinado texto, se levarmos em conta a inclusão, no mesmo livro, de notas a caneta preta, a lápis de carvão, a lápis de cor lilás e até a caneta vermelha. Não raras vezes, chega a ser possível observar numa única obra a realização de duas ou até de três leituras, sendo que o uso de um determinado instrumento de escrita pode ser indicador de uma determinada época. Assim, do estudo até agora realizado, fica claro que sempre que coexistem anotações a caneta preta e a lápis de carvão, por exemplo, a caneta preta corresponde geralmente a uma leitura anterior, ou primeira leitura, e o lápis de carvão a uma segunda leitura. Esta constatação pode ser também comprovada pela caligrafia usada em cada ocasião: a caneta, uma caligrafia mais cuidada e legível; a lápis, uma caligrafia menos cuidada, mais corrida, mais apressada. Também o uso do lápis lilás parece ter ocorrido numa época anterior, provavelmente, enquanto adolescente ou jovem adulto, já que em livros com data mais tardia, este não é utilizado.
Por outro lado, convém observar que, embora, regra geral, Pessoa anote os seus livros na língua em que estes se encontram, por vezes, alguns podem incluir marginalia em duas línguas (geralmente em inglês e em português), podendo associar-se o uso da língua inglesa a uma leitura e anotação prévias e o da língua portuguesa a uma anotação posterior ou mais recente.
Mesmo que possamos identificar com alguma clareza o objectivo de uma dada anotação, é natural e provável que Fernando Pessoa não estivesse consciente destas especificidades e apenas as associasse à expressão linear de um pensamento ou leitura crítica, já que aquilo que verificamos a partir da análise da marginalia pessoana dá-nos a conhecer um poeta que, enquanto anotador, se dirigia, com alguma frequência, directamente aos autores dos livros que lia, fazendo habitualmente uma leitura crítica e atenta, embora tendo, naturalmente, a consciência de que os mesmos não estavam disponíveis para estabelecer uma troca de ideias. Ainda assim, tal assumpção não o impedia de partilhar uma certa ilusão de intimidade e dramatismo, encarando cada livro como se de uma personificação do seu autor se tratasse, parecendo esperar que ele ouvisse as suas objecções ou os seus elogios.
Através da análise e do estudo da marginalia pessoana, constatamos que esta se constrói com base numa fantasia característica do processo de leitura que estimula o diálogo fictício entre autores (que conversam com alguém) e leitores (que respondem), sendo que os primeiros não têm a oportunidade de expor directamente as suas perspectivas e os segundos não obtêm respostas às solicitações ou às provocações que vão colocando. Assistimos, portanto, a uma oscilação entre a rendição e a resistência, entre a identificação e o afastamento, na medida em que, apesar de o seu sistema de anotação ser invariavelmente simples e regular, os seus comentários podem ser muito estimulantes, pois parecem promover uma espécie de “debate” entre o autor e o seu leitor/anotador. Efectivamente, quer as reacções negativas ou de resistência que podem levar Pessoa a considerar determinado texto como “monstruous” ou “horrendous”, quer as elogiosas mostram o seu carácter exacto e rigoroso, embora envolvente e dominador.
A marginalia de Fernando Pessoa mostra-nos, portanto, e no geral, um tipo de leitor que era em simultâneo um pensador e um interlocutor de cada um dos livros que lia e anotava, delineando um percurso de raciocínio e conhecimento a partir das obras que serviam de alimento ao seu espírito. Na realidade, tanto as anotações dos livros como as notas de leitura incluídas em cadernos ou folhas soltas mostram claramente que a leitura era, para Pessoa, uma actividade dinâmica e que, quase tudo o que era lido despertava em si uma energia intensa de reflexão, de partilha com o autor e de auto-conhecimento.
Num ensaio relativo à psicologia da leitura e que, certamente, poderá ter implicações relativamente ao modo como percepcionamos a construção da marginalia, Marcel Proust (apud Jackson: 2001, 85) refere subtilmente que ler é uma forma de conversar com os melhores e os mais sábios. A diferença entre um livro e um amigo, segundo o autor, não assentava no seu grau de sabedoria ou de grandeza, mas na forma como comunicavam entre si, na medida em que a leitura, ao contrário de uma conversa, assentava na recepção de comunicação de um outro pensamento, embora este estivesse a ser recebido em solidão, ou seja, enquanto se desfrutava do poder intelectual que se adquiria quando se estava sós, e que a conversa rapidamente dissipava.
Também a autora americana H. J. Jackson (85) refere, a propósito desta questão, que alguns defendem que a experiência da leitura envolve quase sempre um elemento de competição ou de luta, de uma oscilação entre a rendição e a resistência, entre a identificação e o afastamento, sendo que a marginalia pode servir como suporte desta perspectiva ao ilustrar o conflito associado à tarefa normal de leitura (Jackson 2001, 86).
Estas considerações podem, seguramente, aplicar-se ao caso de Pessoa, cujas anotações revelam o leitor/anotador sensato que geralmente é, estabelecendo um confronto ideológico com alguns dos autores que lê, podendo, contudo, transformar-se subitamente em irregular ou impetuoso, chegando até a anotar livros sem abrir as páginas ainda seladas![7 ]
Ao folhearmos as páginas que contêm a marginalia de Pessoa, observamos que estas são reveladoras de uma nítida excelência artística, não só pela sua inteligibilidade e coerência, como pela sua regularidade, espontaneidade e relevância para a compreensão da obra em que se encontram. Na realidade, a marginalia deste autor não se limita a uma marcação monótona, sendo que a sua originalidade acentua a forma independente e crítica de pensar, testando e reajustando as diversas posições até chegar a uma opinião definitiva.
Pessoa manifesta, ainda, uma combinação muito particular como anotador, já que, para além de demonstrar um relacionamento sério com o texto (objecto de leitura), assume uma expressão clara e utiliza um tom pessoal bastante convincente, associando o seu talento a uma inteligência incisiva e a uma capacidade natural de postura crítica que, quando produzida sob indignação, humor ou ironia, simula magistralmente a forma de diálogo com o autor a quem se dirige, podendo dar origem a comentários inequivocamente admiráveis até em livros absolutamente normais e sem grande excelência.
Este comportamento vem demonstrar que a anotação pode ser também encarada como uma forma ou rotina de aprendizagem, que levaria o leitor a procurar palavras para articular a sua diferença e marcar a sua independência em relação a um autor. Parece-nos que, em termos psicológicos, esta técnica funcionaria para Fernando Pessoa como uma forma de auto-consciência, já que a concordância ou discordância relativamente a um determinado autor contribuía para a construção ou descoberta da sua identidade de anotador, pelo que um livro anotado traçava o desenvolvimento da auto-definição de Pessoa enquanto leitor relativamente ao texto.
Apesar de o poeta português pretender afirmar a sua separação relativamente ao livro que anotava e ao seu autor, muitas vezes revela algumas particularidades aparentemente contraditórias, tendendo a adoptar meios de identificação ou empatia com o mesmo. Talvez fosse por isso que, muitas vezes, como já referimos, escrevia as suas notas na língua do texto, em vez de na sua língua materna, ou até em duas línguas em simultâneo (resultado de duas leituras diferentes), sugerindo assim que assumia em pensamento uma língua que poderia não ser exactamente a sua.
Assim sendo, podemos considerar que a marginalia de Fernando Pessoa combina e sintetiza as funções de leitura e de escrita, o que aumenta a tensão natural entre autor e leitor, tornando-se este último uma espécie de rival do primeiro, embora sob condições que lhe conferem um poder considerável. Mesmo quando, aparentemente, Pessoa parece mais subserviente ao texto, continua a ser implicitamente crítico, assumindo até funções autorais, tornando-se a marginalia, por isso mesmo, quase sempre invasiva, uma vez que expressa um impulso primário de posse. Cada nota encerra em si mesma uma auto-asserção e Pessoa, enquanto leitor/anotador, deixa no livro a sua marca como evidência desta “rivalidade”, quer através de observações críticas ou depreciativas, quer de elogio e de reconhecimento. Grande parte destas anotações revela um estudo laborioso e pormenorizado, reflectindo um razoavelmente elaborado sistema de marcação – sublinhados, traços verticais simples e duplos nas margens, sinais de chamada de atenção, correcções, traduções, referências e citações a outras obras, ou mesmo comentários relativos a questões de interpretação textual, ou reflexões pessoais.
A questão que, necessariamente, se coloca incide na necessidade de edição da marginalia pessoana, dado o seu valor para o estudo da produção de Fernando Pessoa ao longo do tempo. Como tal, várias são as razões que podem destacar-se e que devem ser levadas em conta.
Em primeiro lugar, salientamos a vasta diversidade temática dos livros que compõem a Biblioteca particular do poeta e que oscila entre categorias múltiplas. Para além da atenção particular dada à literatura em língua inglesa, Pessoa dedicou também muito tempo à leitura de títulos relativos aos temas esotéricos e herméticos, com especial destaque para o Ocultismo, a Astrologia, a Maçonaria e o Rosacrucianismo, sendo o interesse por estas questões evidente, já que os livros ligados a estas áreas incluem uma marginalia coerente, insistente e reveladora da atenção hermenêutica que o poeta lhes dedicou.
Se o ocultismo e a mediunidade terão, numa primeira fase, cativado a atenção de Pessoa (ainda jovem), pela forma como, em determinada altura, aderiu à chamada “forma automática de escrita”, muito em voga na segunda metade do século XIX, como meio de comunicar com os espíritos (visto que a leitura de alguns livros sobre esta questão lhe teria sugerido as regras a seguir para concretizar este processo), a partir de determinada altura foi a astrologia que absorveu o poeta, o que é comprovado não só pelo elevado número de obras sobre o assunto[8 ] , pela atenção com que os mesmos foram lidos e anotados[9 ] , como ainda pela importância que os mesmos tiveram na redacção de textos sobre estas questões, de que modo contribuíram para a concepção da Mensagem ou até no que respeita à criação e construção dos heterónimos.
A marginalia pessoana estende-se, ainda, a importantes obras de alguns filósofos e pensadores de renome como Kant, Hobbes, Schopenhauer, Hegel, Darwin, Laing, Haeckel, Robertson (para mencionar apenas alguns), bem como às novas concepções ideológicas em curso. Efectivamente, o que viria a constituir o pensamento filosófico autónomo de Fernando Pessoa ter-se-ia iniciado a partir do regresso do poeta a Portugal, em 1905, e consolidar-se-ia durante a sua permanência na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e aquando das visitas quase diárias à Biblioteca Nacional onde contactou com as principais correntes filosóficas de todos os tempos.
Foi, portanto, a partir desta altura que Pessoa produziu uma grande quantidade de textos que nos permitem conhecer alguns dos seus interesses característicos e verificar que leu insistentemente quase toda a espécie de textos filosóficos e esotéricos, muitas vezes de forma pouco ordenada e sem ter em mente uma qualquer forma de orientação específica ou sistemática. Começam a delinear-se as primeiras reflexões acerca das temáticas do “génio”, do “talento” e da “loucura”, que tanto interesse lhe despertaram e o ocuparam durante quase toda a vida, sendo que tal fica amplamente comprovado pelas diversas leituras que realizou sobre questões de geniali-dade e de perturbações psicológicas, como a loucura, a degenerescência ou a neurastenia, e pela forma como insistentemente anotou, sublinhou e marcou cada uma dessas obras, geralmente com mais de um instrumento de escrita, o que acentua também o interesse que as mesmas lhe terão suscitado[10 ].
Já no caso da literatura – a classe mais abrangente em termos de número e variedade de temas, bem como a mais extensamente anotada – verificamos como, desde os tempos de juventude em Durban, Pessoa contactou com os autores clássicos, autores de língua inglesa, francesa, espanhola e portuguesa. Podemos, assim, observar o interesse de Pessoa, por exemplo, pelos ensaios de Addison & Steele em The Spectator, ou verificar a influência de Milton, Byron, Carlyle, Shelley, Keats, Wordsworth, Walt Whitman, Oscar Wilde, Shakespeare, Molière, entre outros, na sua obra e nas dos seus heterónimos.
Para além desta diversidade textual, a marginalia pessoana permite-nos verificar algumas manifestações da heteronímia em livros desta biblioteca, não apenas pelo facto de alguns livros estarem assinados por algumas personalidades literárias (Alexander Search, Charles Robert Anon, David e Lucas Merrick, Pip, Sidney Parkinson Stool), como pelo facto de encontrarmos remissões para, por exemplo, o heterónimo Alberto Caeiro (em textos de outros autores, que tenham suscitado ao poeta português relações de semelhança), ou ainda, por encontrarmos textos da autoria de alguns deles – Alexander Search, Alberto Caeiro e, eventualmente, Charles Search – em páginas de livros que foram lidos pelo poeta.
Por outro lado, verificamos, ainda, a existência de projectos de tradução de algumas obras, como é o caso de The Tempest, de William Shakespeare ou das Odes, de Horácio, ao mesmo tempo que podemos comparar leituras e anotações diversas em exemplares diferentes da mesma obra. Tal acontece, por exemplo, com a peça de William Shakespeare – The Tempest (de que encontramos dois exemplares na biblioteca particular do poeta); com os poemas de John Milton – “L’Allegro” e “Il Penseroso”, ou com os poemas de Walt Whitman – Poems e Leaves of Grass.
Embora, em dado período da sua vida, Pessoa tivesse afirmado que, a partir de determinado momento, nada mais iria ler, podemos perceber que a leitura seria sempre um dos seus “vícios”. Daí o acumular de livros em diversas línguas que levariam à constituição de uma biblioteca, de modo algum organizada ao acaso. A aquisição dos diversos volumes teria sido efectuada com base num motivo ou intenção, pois o poeta estava a par das edições publicadas (nacionais e estrangeiras), especialmente dos temas que lhe eram mais caros, chegando mesmo a fazer listas dos livros já adquiridos ou a adquirir e mantendo contacto com algumas editoras a quem solicitava o envio de obras específicas.
Certo, ainda assim, é que Fernando Pessoa não teve meios para adquirir todos os livros que ambicionava, daí que muitos deles tenham sido consultados na Biblioteca Nacional, onde passava algum tempo a ler. Contudo, como aparentava ser um leitor sem grandes “pressas” mas de grande insistência, procurava enriquecer a sua biblioteca, a fim de ter os livros sempre à mão e de os anotar e sublinhar quando e como entendesse.
A apresentação, análise e publicação da marginalia de Fernando Pessoa assume-se, deste modo, como um elemento valioso para a compreensão deste autor, uma vez que permite o acesso à construção do processo mental enquanto leitor/anotador, reflecte a vontade de interacção com o livro objecto da leitura e, implicitamente, com o autor do mesmo, deixando entrever como a recepção de um conjunto de leituras contribuiu para a construção de uma individualidade própria. Deste modo, torna-se determinante salientar a importância da divulgação e análise destas anotações e marcações, sempre na certeza de que teremos pela frente um leitor cuja intensidade emotiva faz da marginalia por si produzida uma das maiores referências do género na literatura portuguesa.[11 ]
Referências
Coleridge, Samuel Taylor (1980). The Collected Works of Samuel Taylor Coleridge – Marginalia I. London: ed. George Whalley, Routledge & Kegan Paul.
Estibeira, Maria do Céu (2008). A Marginalia de Fernando Pessoa, Lisboa:Dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Gago, Carla (2009). “Espelho de uma vida intelectual: A biblioteca de Friedrich Nietzsche. Paralelos com a biblioteca de Fernando Pessoa”, em Fernando Pessoa: O Guardador de Papéis, ed. Jerónimo Pizarro, Lisboa, Texto Editora, pp.135.
Jackson, H. J. (2001). Marginalia: Readers Writing in Books. New Haven: Yale University Press.
Notas
[1 ] O termo “biblioteca ideal” foi também utilizado por Carla Gago no ensaio “Espelho de uma vida intelectual: A biblioteca de Friedrich Nietzsche. Paralelos com a biblioteca de Fernando Pessoa” in Fernando Pessoa: guardador de papéis, ed. Jerónimo Pizarro, Lisboa, Texto editores, 2009.
[2 ] Esta categorização foi usada pelo editor da marginalia de Coleridge em The Collected Works of Samuel Taylor Coleridge – Marginalia I, ed. George Whalley, London, Routledge & Kegan Paul, 1980.
[3 ] Tal é comprovado pela datação aposta em alguns desses livros, bem como a inclusão da sua identificação através da assinatura tipicamente utilizada por si, correspondente a esta fase - F. A. N. Pessôa.
[4 ] William Smith (1892); Principia latina: part I: a first latin course comprehending grammar, delectus, and exercise book with vocabularies: for the use of the lower forms in public and private schools, London, John Murray.
[5 ] Esta observação não seria de todo original do poeta, já que expressões como esta (com uma nítida intenção de proteger o livro de terceiros) ou semelhantes a ela podem ser encontradas em livros anotados no século XVIII. H. J. Jackson em Marginalia – Readers Writing in Books (pp. 24-25) faz referência a este tipo de comentários: “Steal Not This Book For Fear of Shame For Here You See the Owners Name …” e “Steal not this book for fear of life for the owner has a big jacknife”.
[6 ] John Keats, The Poetical Works of John Keats, London, Frederic Warne and Co., s/d.
[7 ] Vide por exemplo o livro (8-229), Gorjeos del alma: cantares populares, Madrid, Biblioteca Universal, 1884.
[8 ] São cerca de 30 os títulos exclusivamente dedicados à Astrologia, quase todos em língua inglesa. De entre este conjunto de livros, são quatro os autores mais representados – H.S. Green, Allan Leo, Sepharial e George Wilde.
[9 ] Este grupo de livros foi particularmente anotado, o que mostra o estudo profundo realizado por Pessoa dos princípios astrológicos, das regras para elaboração e leitura de cartas astrológicas e quanto às especificidades de cada signo e cada planeta, aprendizagens estas que Pessoa poria em prática, por exemplo quando fez uma série de cartas astrológicas da sua vida, dos seus heterónimos, de amigos, de figuras históricas e até de Portugal).
[10 ] Na Biblioteca pessoana encontramos obras de Nisbet, Nordau e Hirsch, nomes de destaque relativamente às temáticas da degenerescência e da genialidade.
[11 ] Artigo produzido no âmbito do projeto Estranhar Pessoa: Um Escrutínio das Pretensões Heteronímicas (PTDC/CPC-ELT/4578/2012), financiado pela FCT e desenvolvido pelo ELAB, Laboratório de Estudos Literários Avançados, e pelo IFL, Instituto de Filosofia da Linguagem, unidades de investigação da FCSH da Universidade Nova de Lisboa.
© 2013 Maria do Céu Estibeira.