'As Únicas Coisas Nobres Que a Vida Contém' |
Permitam-me que entre em matéria pela porta grande, dirigindo-me desde já a um dos loci sancti do corpus pessoano: o poema VIII do «Guardador de Rebanhos», ou melhor, o incipit do poema VIII:
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.[1 ]
Suspendamos a reverência pelo fulgor técnico com que um grande poeta do verso livre aqui contrabandeia uma certa versão da rima, fazendo-o como se nesse contrabando jogasse a sua má consciência de moderno (mesmo tratando-se de um moderno que não foi à escola), e fiquemo-nos com o símile: «um sonho como uma fotografia». Estranho símile, e também estranha gramaticalidade a que Caeiro aqui contrabandeia, aliás com um sucesso de mercado esmagador, tal o silêncio com que a crítica tem recoberto esta comparação conceptual e gramaticalmente estranha. Pois, o que significa ter «um sonho como uma fotografia»? A comparação parece supor que Caeiro sabe (i) como são os sonhos que não são como fotografias, e (ii) como são os sonhos que são como fotografias. É claro que a hipótese (i) é estritamente função da hipótese (ii): só porque postulamos que certos sonhos são como fotografias podemos admitir que existam sonhos que não são como fotografias. Ou seja, antes do século XIX a impossibilidade da hipótese (ii) impossibilitava a hipótese (i): sonhos que não são como fotografias não existiam, tout court. O argumento reproduz a lógica do argumento com que Philip Auslander nega a possibilidade da existência de concertos «ao vivo» antes do advento da gravação: sem a possibilidade histórica e técnica desta, não existe a possibilidade do concerto «ao vivo».[2 ] Há concertos apenas, tal como, numa cronologia algo síncrona, há sonhos apenas.
Mas como devemos entender esta comparação? Estará Caeiro a tentar dizer-nos algo como «Tive um sonho [que era] como uma fotografia»? Mas que significa isto, em rigor? Em que sentido podem sonhos ser como fotografias? Ou melhor, e regridamos ao singular da frase, em que sentido pode um sonho ser «como uma fotografia»? Notemos que Caeiro, o poeta das coisas sem colectivo nem plural – «Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas. / Renque e o plural árvores não são cousas, são nomes» (XLV) –, parece dizer, prima facie, que a um sonho corresponderia uma fotografia. Ou melhor: Caeiro, em boa lógica poética e ontológica, deveria dizer isto, ou algo como isto, para não ter de admitir que a fotografia da comparação não é uma cousa no mundo fenomenal, desde logo porque é um símile, mas sim uma coisa como um universal da era da técnica: aquilo a que Rosalind Krauss chamou, em obra homónima, «o fotográfico» enquanto «espaço discursivo», remetendo para o Foucault da Arqueologia do Saber, obra de que extrai uma citação sobre a «arqueologia do arquivo», citação essa da qual me permito, por minha vez, extrair uma brevíssima citação tendo em mente Caeiro: «mostrar em vez de falar é fazer uma coisa, uma coisa diferente de não expressar o que se pensa» (Foucault, apud Krauss, 2010: 56).
Caeiro, de facto, fala como quem mostra. E como quem nada mais tem a fazer do que dizer essa coisa que é mostrar. Mas isto, em rigor, não é, como nota Foucault, uma modalidade negativa de expressão do pensamento (Foucault está bem mais interessado em relevar as condições – regras, relações – que estruturam o campo de possibilidade de uma prática, pelo que a «expressão» é aqui uma questão pouco pertinente: desde logo porque integra o lastro do «humanismo»). É antes, e desloco propositadamente a questão, uma forma de ocultar o medium em benefício da mensagem. Sendo porém a mensagem o mostrar, o falar esvazia-se tanto de conteúdo quanto a mensagem, coincidindo ambos nesse gesto de quem aponta: «Vejam!» Ou, se se preferir, no gesto de quem fotografa.
Mas, e se o fotográfico fosse, bem vistas as coisas, o fundamento ontológico do universo de Caeiro, ou melhor, da sua semiótica? Lembro que a fotografia integra os signos que Peirce incluiu na classe do índice, ou seja, aqueles signos, como a pegada, a impressão digital, a sombra do nosso corpo, nos quais a referência deixa a marca ou traço da sua existência física.[3 ] Nesse sentido, a fotografia é incapaz da generalização ou abstracção que acompanha as representações escritas (os símbolos) ou gráficas (os ícones), dotadas da capacidade de evocar classes de coisas. A fotografia arrasta consigo o aqui e o agora da coisa fotografada, aqui e agora que contudo a reprodução, na conhecida tese de Walter Benjamin, dissolve. A fotografia, e recordo agora Roland Barthes, oscila entre a evidência bruta da imagem que nos assalta, por exemplo na lógica da espectralidade do morto que nela não morre e sempre regressa, ao mesmo tempo que, justamente pelo carácter mudo do signo indicial, transporta consigo um «Nada a declarar» que o autor de La chambre claire coloca sob a égide do não-hermenêutico: «É precisamente nesta interrupção da interpretação que mora a convicção da Foto: constato à exaustão que aquilo foi». (Barthes, 1980:165, eu traduzo) É difícil não ver aqui, e desde logo nesta declaração da inutilidade do esforço interpretativo sobre a coisa-fotografia, a descrição das «boas intenções» de Caeiro no seu enfrentamento com o mundo.
Tanto mais que, e recordo agora com Krauss as palavras de Daguerre em 1850, ao apresentar o seu invento perante a Academia das Ciências em Paris, «O Daguerreótipo não é um instrumento que serve simplesmente para desenhar a natureza … ele dá-lhe o poder de reproduzir-se a si mesma». (Daguerre, apud Krauss, id.: 66) Não satisfeita, Krauss reforça este ponto com uma outra evidência: «François Arago, quando defendeu a patente do invento de Daguerre, afirmou que ‘a própria luz reproduz as formas e proporções dos objectos reais’». (Krauss, id.)
De Daguerre a Benjamin ou a Rosalind Krauss, o tópico, muito reconhecível, da anulação da figura do «artista» por meio do aparelho fotográfico concilia-se com esta subtracção do sujeito em favor de uma auto-evidência e auto-reprodução do objecto-Natureza que parece coincidir de novo com essa reivindicada metafísica da coisa a que damos o nome de Caeiro.[4 ] Por outro lado, porém, a comparação, nos termos em que é formulada – «Tive um sonho como uma fotografia» – supõe uma fase do processo da história da técnica fotográfica em que o fotógrafo (no poema de Caeiro, um Sr. de nome Id) pode estabelecer já com a realidade um contacto de natureza instrumental e, ponto decisivo, instantânea. Basta um clique e eis uma foto do Menino Jesus, o que não era de todo o caso de um Lewis Carroll, que para convencer os seus impúberes modelos tinha primeiro de os narcotizar com as histórias de Alice, e outras, já que o colódio, a técnica que usava, exigia longas exposições imóveis dos modelos. Talvez possamos perceber então por que razão o poema VIII do «Guardador de Rebanhos» abre com um símile que introduz o fotográfico, introduzindo em rigor também não propriamente o visível mas sim o óptico. Recordo, a partir de Friedrich Kittler – reporto-me a Optical Media (Kittler, 2010) –, que o óptico é um subdomínio da física, enquanto a visão é um subdomínio da fisiologia, da psicologia e da cultura. Ou seja, o espectro do visível é uma banda estreita de um muito mais vasto espectro óptico. Nesse sentido, é um erro tomar as possibilidades, e sobretudo as quantidades humanas, como medida de todas as coisas, já que de acordo com Kittler não podemos conhecer os nossos corpos e os nossos sentidos senão a partir do momento em que eles são externalizados nos e pelos média.
O poema VIII do «Guardador de Rebanhos» é, seguramente, como disse a abrir, um dos loci sancti do corpus pessoano. Mas é também um locus infectus, em boa medida porque o Menino Jesus é aqui submetido ao efeito panóptico e reprodutivo dos média modernos (não apenas a fotografia, como já veremos). Num certo sentido, a vertigem mediática que se abate sobre Jesus no poema bate certo com uma religião que, excluindo o protestantismo, aceitou o princípio da representação imagética de Deus. O problema do fotográfico no poema reside precisamente no índice peirceano: como fotografar o Menino Jesus se o que o define é que da sua corporeidade não ficam pegadas no mundo? O Menino Jesus é, digamos, o esplendor do simbólico e, por isso mesmo, a estratégia de Caeiro no poema passa por fazer com que a Sagrada Família produza um vasto rastro indicial – os escarros de um Deus «estúpido e doente», os dejectos de um Espírito Santo «empoleirado nas cadeiras» – que forneça as condições de possibilidade do fotográfico. A profanação seria assim uma exigência da própria ontologia do meio, que necessita da cena doméstica para que a Sagrada Família seja fotografável, ou melhor, para que a Sagrada Família seja parasitada pelo fotográfico enquanto dispositivo historicamente privilegiado nessa data pelo princípio do óptico.
Mas não apenas pelo fotográfico. Avanço para a estrofe terceira do poema, o que quer dizer que salto o travelling da estrofe segunda, em que o Menino Jesus vem «a correr e a rolar-se pela erva», montanha abaixo:
Tinha fugido do céu.
Era nosso de mais para fingir
De segunda pessoa da trindade.
No céu tudo era falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações. (itálico meu)
É claro que o símile é racista, e é claro que o racismo é e não é função de contexto. O novo símile introduz a iconografia colonial, de que exibirei alguns espécimes meramente aproximativos.[5 ] Começo ao contrário, com a capa de um número da Ilustração posterior à data de escrita de «O Guardador de Rebanhos» e concluo com imagens de um dos feitos do Império Colonial português – a rendição de Gungunhana –, dos mais responsáveis pela omnipresença dos «pretos nas ilustrações»: nos seus efeitos de desfasamento civilizacional (o músico de jazz figurado como um indígena africano, Gungunhana vestido «como nós», Gungunhana enquanto «preto nas ilustrações» mas ao mesmo tempo representado como um rei nobremente derrotado), o meio enquanto «arquivo» colonial impõe a evidência das regras da sua própria arqueologia (Figuras 1-3).
Figura 1. |
Figura 2. |
Figura 3. |
Chamo porém a atenção para o facto de que o novo meio que agora surge não é apenas «as ilustrações». Lendo com atenção a estrofe, cuja episteme é latamente regressiva, percebe-se a pertinência da leitura de Américo Lindeza Diogo, quando chama a atenção para o facto de que o poema VIII mas, mais latamente, o «Guardador de Rebanhos», é literatura infantil, ou seja, e no contexto inglês desde logo, literatura de massas, tal como de massas se trata quando se refere o impacto dos «pretos nas ilustrações».[6 ] No contexto inglês, e retomo Américo Diogo, trata-se de «literatura eduardiana» entre Peter Pan e Winnie-the-Pooh.[7 ] Não deixa de ser revelador, a este respeito, que no termo do ensaio sobre as relações entre Caeiro e a literatura infantil eduardiana – «Caeiro e Winnie-the-Pooh: a Infância, o Cepticismo, o Clown» –, Diogo sinta a necessidade de convocar o mundo das ilustrações para que a anexação de Caeiro pelo infantil se torne plena:
Proponho, enfim, que se leia Caeiro como literatura infantil eduardiana do tipo do Peter Pan, do Winnie-the-Pooh ou do Wind in the Willows. Poderíamos começar por uma edição da obra com ilustrações convenientes (como as de Ernest Shepard para o Pooh)... (Diogo, 1994:88)
Como vimos antes, as «ilustrações convenientes» de Diogo estão já um pouco por toda a parte n’«O Guardador de Rebanhos»: restaria conceder-lhes resolução temática, admitindo que a «Eterna Criança» é, já de si, um efeito (milenar) de ilustrações para as massas.
Basta porém mudar de coordenadas nacionais, ainda dentro da literatura infantil «histórica», e os «pretos nas ilustrações» podem surgir com contornos algo diferentes. Proponho a obra mais popular de Heinrich Hoffmann (1809-1894), o Der Struwwelpeter (1845), em Portugal traduzido por Pedro Esgrouviado (Figuras 4-8). Uma das suas histórias mais marcantes, «A história dos rapazes pretos», faz das condições de existência do meio – a cor, a tinta, o contraste – a sua própria moral: tudo se resolve no tinteiro e a lição parece ser a de que a lógica da diferença, sendo distribucional, permite um número razoável de comutações entre, por exemplo, branco e preto ou preto e mais preto. Puro Saussure…
Figura 4. | ||
Figura 5. | Figura 6. | |
Figura 7. | Figura 8. |
Ou, se se preferir, uma celebração daquilo a que Clement Greenberg, num famoso ensaio de 1960, «Modernist Painting», chamava a «experiência puramente óptica» (Greenberg, 1997:104) que definiria a pintura moderna. Como se percebe em particular na última ilustração, se há algo a que esta arte não aspira é a transcender a flatness do meio, já que a bidimensionalidade reforçada pela sugestão do jogo de sombras dá a ver, digamos, a verdade desta pedagogia anti-racista (esqueçamos a ambiguidade do «preto de sombrinha»): somos todos, brancos ou pretos, aquela coisa sem transcendência, achatada no papel e condenada a marchar contra a moldura da página. Uma espécie de euforia (uma euforia sartriana) imposta pelo meio: o livro ilustrado.
Uma outra hipótese de hiperligação com o símile «Como os pretos nas ilustrações» seria o poema que Fernando Pessoa dedicou ao assunto, destinando-o reveladoramente às crianças da família: «O soba de Bicá».
O SOBA DE BICÁ [8 ]
O soba de Bicá,
maravilhoso gajo,
usava um admirável trajo
– que era feito de pele e coisa nenhuma.Um dia o soba, coitado,
sentou-se por descuido em cima de uma brasa.
Em vez de gritar: «Ai as minhas calças uhhh!...»
Gritou ele, esquecendo o trajo:
«Ai… minha fisionomia contrária».
Voltamos aos «pretos nas ilustrações», agora em versão radical, sem tanga, pois o admirável trajo do soba era feito «de pele e coisa nenhuma». O poema é um prodígio de quebra do decorum, quer no elogio – «maravilhoso gajo» – quer na frase final do soba promovido a Lord que, embora nu e «gajo», não cede a uma rima fácil com «cu». O corpo negro e nu do soba argumenta aqui o privilégio, muito típico da literatura e da ilustração infantil, do figurativo, primeiro, e do óptico, depois, na medida em que é uma pura, e supomos que vasta, superfície monocromática. Uma ressalva de Clement Greenberg sobre o impressionismo ajuda-nos aqui a tornear o anedótico: «Foi em nome do pura e literalmente óptico, não em nome da cor, que os impressionista puseram-se a minar o sombreado, a modelagem, e tudo mais na pintura que parecesse sugerir o escultural». (id.) O impressionismo é, pois, não a cor mas o óptico; não o escultural mas a superfície: o «admirável trajo», digamos.
O «Soba de Bicá», tal como Pessoa o concebeu, existe para ser contemplado num dispositivo panóptico. Proponho duas possibilidades: (i) a Exposição Colonial, talvez demasiado óbvia; ou, em alternativa, (ii) pensando no pré-cinema, num dispositivo como o Flip-Book, numa breve e primitiva sequência de animação em que o soba se sentaria e levantaria (a mesma cena pode ser imaginada em Taumatrópio ou, com outros meios, em Fenaquistoscópio ou Zootrópio). A proposta sugere meramente a contiguidade temporal destes média, raramente objecto de aproximação (e é claro que muito haveria a dizer sobre o cruzamento destes dois tipos de dispositivos panópticos). Seguem-se exemplos de cada um dos dispositivos de ilusão óptica, pela ordem referida (Figuras 9-12):
Figura 9. Flip-Book. | Figura 10. Taumatrópio. | |
Figura 11. Fenaquistoscópio. | Figura 12. Zootrópio. |
Mas, para avançarmos nesse domínio, proponho agora um poema diferente, de um Álvaro de Campos já tardio, intitulado «Dactilografia».
Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Formo o projecto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.
Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.
Que náusea da vida!
Que abjecção esta regularidade!
Que sono este ser assim!
Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavalarias
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.
Outrora...
Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.
Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhámos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substracto de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer.
Neste momento, pela náusea, vivo só na outra...Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
Se, desmeditando, escuto,
Ergue a voz o tic-tac estalado das máquinas de escrever.
19/12/1933 [9 ]
O poema tematiza a racionalização e o desencantamento modernos recorrendo a um engenheiro, um cubículo, um plano e o ruído de uma máquina de escrever. Opõe-se a isso o devaneio motivado por ilustrações de livros infantis, o que delineia um quadro de oposições reconhecível em Campos e em Pessoa: a verdade do sonho versus a falsidade da vida prática, vida versus morte. O ponto estimulante não é contudo nenhum destes, mas sim aquilo que surge quando, na penúltima estrofe, podemos ler:
Na outra não há caixões nem mortes.
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
A pergunta que creio devemos endereçar aos livros infantis, e que resume toda a epistemologia desse meio, está bem patente nestes versos: «Os livros infantis são para ler ou para comer com os olhos?» Notemos antes de mais a contraposição, na ordem das grandezas, entre o cubículo de engenheiro e a dimensão dos livros infantis, todos «grandes». Mas fiquemo-nos com a resposta que do texto nos chega à pergunta que antes fiz: grandes livros coloridos que são «para ver mas não ler». Ou seja, para «comer com os olhos». O final do poema retoma a questão e relança-a:
Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
Se, desmeditando, escuto,
Ergue a voz o tic-tac estalado das máquinas de escrever.
Resumamos: até aqui, o poema, cujo título (não esquecer) é «Dactilografia», construíra uma banda sonora «banalmente sinistra» – a das máquinas de escrever –, que vai e vem ao longo do texto mas que, e essa é a sugestão perceptiva imediata, está sempre presente, ao contrário das ilustrações infantis, que estão por definição ausentes algures no passado. A materialidade do som precede a materialidade da ilustração, por isso que possui a fenomenalidade que na outra se esvai na anamnese. O problema, porém, reside no penúltimo verso, «Se, desmeditando, escuto», que dá a entender que entre o plano fenomenal e o da consciência perceptiva existe um bloqueio. A tal ponto que a recuperação do fenomenal, isto é, do som do matraquear da máquina, é fruto de uma condição cuja activação depende da capacidade, ou não, do sujeito para fugir ao canto de sereia das ilustrações infantis. O triunfo da ilustração é afinal, e contra todas as aparências, esmagador: os livros infantis, comidos com os olhos, induzem no sujeito não-leitor mas contemplador aquela fenomenologia a que chamamos «a morte da bezerra». Se preferirmos outro jogo de linguagem, podemos descrever esse estado como um preenchimento total do espaço da consciência do sujeito pela imersão na imagem. Essa imersão a que o poema chama «meditação» mas a que na tradição ocidental teríamos de chamar antes evasão, imersão, anulação do sujeito no império do objecto. A conclusão do poema dá-nos ainda a ver a descontinuidade no sensorium de Álvaro de Campos: os sentidos bloqueiam-se mutuamente, vão cada um para seu lado e podemos perguntar-nos o que do som da máquina de escrever chega efectivamente ao aparelho auditivo (a derrota do som faz-se apesar de uma prosopopeia como «Ergue a voz o tic-tac estalado das máquinas de escrever», uma espécie de assomo derradeiro do orgulho ferido do princípio da realidade) ou o que das ilustrações chega ao aparelho óptico (neste último caso, a fenomenologia da «morte da bezerra» tende a transformar pormenores em padrões e recortes em borrões). Podemos imaginar as imagens que ilustrariam este poema, ou podemos simplesmente acompanhar a nossa reflexão com algumas, de um período razoavelmente sincrónico do de Pessoa (Figuras 13-16).
Figura 13. |
Figura 14. |
Figura 15. | Figura 16. |
Perceberemos assim algumas coisas que convém relembrar. A narrativa modernista na arte, tal como produzida por um Clement Greenberg, em ensaios como «Vanguarda e Kitsch», de 1939, «Rumo a um mais novo Laocoonte», de 1940, ou o já referido «Pintura Americana», de 1960, fez da abstracção o telos de um processo cujo operador decisivo foi a noção de meio. Cito, do ensaio de 1940: «As artes, portanto, foram tangidas de volta a seus meios, e neles foram isoladas, concentradas e definidas. É em virtude de seu meio que cada arte é única e estritamente ela mesma». (Greenberg, id.: 54) Num momento particularmente retórico e demolidor, Rosalind Krauss, na abertura do seu (grande) livro The Optical Unconscious descreve um menino chamado John Ruskin que passava longas horas da sua infância a contemplar o mar, treinando assim a atenção que fará a sua glória. Krauss comenta (eu traduzo):
O mar é um tipo de meio especial para o modernismo, por causa do seu perfeito isolamento, a sua separação do social, o seu senso de auto-fechamento e, acima de tudo, a sua abertura para uma plenitude visual que é elevada e pura, ao mesmo tempo uma expansão ilimitada e redundante, achatada até ao nada, até ao não-espaço da privação sensorial. O óptico e os seus limites. Vejam o John a ver o mar. (Krauss, 1994: 2)
Daqui a Mondrian vai apenas um passo, com a ajuda da teoria óptica do final do século XIX: racionalização da pintura em torno das leis da teoria das cores e da óptica fisiológica, ou seja, partindo-se do princípio de que o campo retiniano e o campo da imagem são isomórficos e que as leis do primeiro organizam a harmonia ordenada do segundo; e ambos os campos, o retiniano e o pictórico, organizados de forma flat.
A questão interessante reside em que ao longo de todo este processo a ilustração no livro infantil funciona como uma contra-corrente de massa em relação ao devir não-figurativo, e crescentemente centrado na opacidade dos meios, da arte moderna (e é igualmente possível ler a própria literatura infantil como uma bolsa de resistência ante os ímpetos anti-miméticos da literatura moderna). Contudo, a ilustração infantil é também, como creio ter já demonstrado, concentração nos meios e celebração dos meios próprios; e é ainda flatness, justamente por ser essa a condição natural da ilustração em idade infantil, ou melhor, para idade infantil (Caeiro parece intuir isso, ao escrever grandes poemas flat como «O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia»[10 ]).
Um bom exemplo de tudo isto, embora não infantil, no Livro do Desassossego [11 ], é um breve texto em que se fantasia o diálogo amoroso entre figuras que ilustram um serviço de chá. Bernardo Soares lamenta-se por não possuir «ouvidos apropriados para as ouvir, morto na policroma humanidade!» (Soares, 20013: 333) A bidimensionalidade da ilustração do bule harmoniza-se com a suspensão do tempo e o verdadeiro amor pode então manifestar-se:
O verdadeiro amor, o imortal e inútil, pertence àquelas figuras em que a mudança não entra, por sua natureza de estáticas. Desde que eu o conheço, o japonês que se senta na convexa … do meu bule não mudou ainda… Não saboreou nunca as mãos da mulher que está a um distar errado dele. Um colorido extinto como de um sol despejado, entornado, irrealiza eternamente as encostas desse monte. (id.)
O «teatro estático» (ou eleático), verdadeira fixação pessoana, é aqui dado na sua versão nano: um par numa superfície circular e num posicionamento que não percebemos se os condenaria a uma fuga eternamente para os braços um do outro, ou ao invés. Mas trata-se de gente japonesa e de, digamos, teatro Nô, feito de lentidões e ritualidades estranhas, como esta de não tocar na mulher que se ama e que, por definição, está «a um distar errado dele» (Lacan comentaria: «Il n’y a pas de rapport sexuel»). O estatismo é também função de um cromatismo negativo: a humanidade seria polícroma e Bernardo Soares, imerso e por isso «morto» nessa policromia, não pode pois ouvir os amantes, já que estes são em grande medida função «de um colorido extinto». Digamos, de um colorido a caminho do neutro, essa figura maior do Livro do Desassossego tardio e que aqui argumentaria não apenas o «não saborear» o objecto do (não) desejo, mas sobretudo o estético como abdicação do real.
É pois altura de transcrever na íntegra o excerto do Livro do Desassossego que dá título a este texto: «Ver e ouvir são as únicas coisas que a vida contém. Os outros sentidos são plebeus e carnais. A única aristocracia é nunca tocar. Não se aproximar – eis o que é fidalgo». (id.: 379) Se traduzirmos estes tropos da fidalguia naquele significante-mor do alto-modernismo – o desejo de incontaminação pelo mundo da instrumentalidade –, perceberemos, creio, que o que está aqui em causa é algo que poderíamos descrever como uma luta pela liberdade. O alcance dessa luta pode ser intuído num outro excerto do Livro em que se afirma:
Viver não vale a pena. Só olhar é que vale a pena. Poder olhar sem viver realizaria a felicidade, mas é impossível, como tudo quanto costuma ser o que sonhamos. O êxtase que não incluísse a vida!... (id.: 415)
A felicidade, resumamos, consistiria no esvaziamento radical do espaço da consciência e na sua saturação pelo mundo contemplado. O sujeito reduzido a uma pura potência óptica, a um dispositivo do tipo do aparelho fotográfico, uma caixa vazia com um obturador pelo qual o mundo, ou seja, a luz, entra na retina, eis a versão pouco humanista sonhada por Bernardo Soares.
Resta-me explorar brevemente a questão do ouvir no Livro do Desassossego, ou melhor, daquilo a que Bernardo Soares numa passagem sobre «o ruído da chuva lá fora» chama a «minúcia abundante da paisagem do ouvido» (id.: 316-317). Começo por um fragmento que inicia em tom amargo sobre a «vida reles» da maioria dos homens. Segue-se, sem transição, o parágrafo que transcrevo:
Oiço, coados pela minha desatenção, os ruídos que sobem, fluidos e dispersos, como ondas interfluentes ao acaso e de fora como se viessem de outro mundo: gritos de vendedores, que vendem o natural, como hortaliça, ou o social, como as cautelas; riscar redondo de rodas – carroças e carros rápidos por saltos –; automóveis, mais ouvidos no movimento que no giro; o tal sacudir de qualquer coisa pano a qualquer janela; o assobio do garoto; a gargalhada do andar alto; o gemido metálico do eléctrico na outra rua; o que de misturado emerge do transversal; subidas, baixas, silêncios do variado; trovões trôpegos do transporte; alguns passos; princípios, meios e fins de vozes – e tudo isto existe para mim, que durmo pensá-lo, como uma pedra entre erva, em qualquer modo espreitando fora de lugar. (id.: 353)
É-me difícil não pensar, a propósito da frase que, em inciso a abrir, cria a moldura para este exercício de fenomenologia da audição – «coados pela minha desatenção» –, nas ideias de Walter Benjamin sobre a «atenção distraída» promovida pelo cinema, no seu famoso ensaio de 1935-1937, «A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica» [12 ]. Recordo que o termo que Benjamin usa para «distracção» é quase sempre Zerstreuung, que significa estar distraído, pouco concentrado, com a cabeça noutro lado (o sentido literal etimológico refere-se a alguma coisa que está espalhada [13 ]). Como nota Peter Gilgen, o conceito de distracção de Benjamin não significa de modo nenhum cabeça oca (ou «morte da bezerra»). Uma passagem no final da secção XIV do ensaio sobre a reprodutibilidade técnica esclarece que se trata antes do oposto: de modo a ser absorvido, o efeito de choque do filme «exige ser amortecido por um esforço de atenção intensificado». (Benjamin, 2006: 237). Nas palavras de Gilgen,
A distracção é uma espécie de atenção dispersa que pode registar tudo o que entre no seu vasto campo de radar. É a presença constante do ser atento sem atenção, da intencionalidade (no sentido fenomenológico) sem intenção. É uma presença de espírito, o potencial para a actualização em qualquer ponto do tempo. (Gilgen, 2003:55)
A distracção, no excerto em pauta, parece ser a pré-condição de um exercício de disponibilidade para ouvir aquilo a que, recorrendo a John Cage, poderíamos chamar a «ecologia sonora do mundo». Os «ruídos», «coados pela desatenção» (significativo não-oxímoro) sobem da rua até ao sujeito/aparelho auditivo. São muito variados, são objecto de montagem e mistura – por exemplo, e de forma mais espectacular na passagem: «o que de misturado emerge do transversal; subidas, baixas, silêncios do variado; trovões trôpegos do transporte; alguns passos; princípios, meios e fins de vozes»; e são radicalmente acusmáticos, isto é, e seguindo Pierre Schaeffer, não é possível produzir uma identificação precisa da sua fonte ao longo da passagem.[14 ] Podia seguramente tratar-se de uma peça de Schaeffer ou de Pierre Henry, para me ficar pelos mestres da música concreta. Convirá em todo o caso ler um passo posterior, ainda neste fragmento, no qual o ajudante de guarda-livros avança para as conclusões:
Mas eu modorro, digestivo e imaginador. Tenho tempo, entre sinestesias. E é prodigioso pensar que eu não quereria, se agora perguntassem e eu respondesse, melhor breve vida que estes lentos minutos, esta nulidade do pensamento, da emoção, da acção, quase da mesma sensação, o ocaso-nato da vontade dispersa. (id.)
A vida boa de Bernardo Soares é, pois, esta vida de «nulidade do pensamento» e de «ocaso-nato da vontade dispersa», que mima aproximativamente aquele regime da pura opticidade de um viver que fosse só olhar, sem viver. Também aqui, no caso da audição desatenta, o viver parece ser a vítima propiciatória de uma indolência corporal que faz recuar a consciência, ou, antes disso, a vontade de consciência, até àquele ponto em que o sujeito, trabalhado para ser um puro aparelho perceptivo, se deixa avassalar pelo ruído do mundo. O ponto crítico desta sujeição, contudo, reside em que o ruído do mundo, coado pela desatenção do sujeito, ganha uma evidente, e inesperada, proporção harmónica (uma harmonia radicalmente moderna, por isso «ruidosa»).
Seja como for, não parece que os regimes do óptico e do sonoro sejam equivalentes, no breve conspecto que aqui tentei traçar. O regime instaurado pelo fotográfico em Pessoa manifesta poucos pontos de contacto com a atenção distraída benjaminiana. Em rigor, aliás, o fotográfico funciona muitas vezes em Pessoa como a condição de possibilidade de uma opticidade despojada de obstáculos, sendo que no limite o obstáculo de que ela limpa (ou deseja limpar) o campo perceptivo, como quem deita fora as tralhas do sótão, é o próprio sujeito. A opticidade da ilustração infantil é já de outra ordem, remetendo-nos para aquele «mundo de cores ostensivo e auto-suficiente» que segundo Walter Benjamin está «inteiramente reservado ao livro infantil». É certo que para Benjamin
nas imagens dos livros infantis o objecto representado e a autonomia do material gráfico acarretam a impossibilidade de se pensar numa síntese entre cor e superfície. Liberta de toda a responsabilidade, a fantasia pura deleita-se nesses jogos de cores. Pois os livros infantis não servem para introduzir os seus leitores, de maneira imediata, no mundo dos objectos, animais e seres humanos, para introduzi-los na chamada vida. (Benjamin, 2002: 61-62)
Essa introdução seria de natureza mediata e função da lenta correspondência estabelecida entre o exterior, onde se constitui o sentido, e o interior dos leitores. A cor barra o acesso instantâneo ao sentido do mundo, pois «A interioridade [da] contemplação reside na cor, e no seu meio desenrola-se a vida sonhadora que as coisas levam no espírito das crianças». (id.:62)
Tudo indica, pois, que o investimento pessoano no óptico e no sonoro é bastante assimétrico. O fotográfico representaria a episteme da nitidez e da auto-evidência do mundo (a episteme Caeiro), enquanto a ilustração colorida acarretaria a perda de si de um sujeito que, nas palavras de Benjamin, se sente em casa na contemplação sensual da cor. E à experiência da audição estaria reservada, enfim, a atenção distraída pela qual o sujeito «coa» os ruídos do mundo, transformando-os em música concreta.
Seria caso para dizer que de entre as coisas nobres que a vida contém, a mais nobre seria a que consistiria em permitir, pela afinação de regimes fenomenológicos diversos, o triunfo das próprias coisas: um êxtase que não nos incluísse a nós e de nós fizesse tão-somente aparelhos de reprodução High Tech[15 ].
Referências
1.
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2.
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Notas
[1 ] Uso a edição Assírio & Alvim, a cargo de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith (20042: 35).
[2 ] Cito Auslander: «As a starting point for this exploration, I propose that, historically, the live is actually an effect of mediatization, not the other way around. It was the development of recording technologies that made it possible to perceive existing representations as ‘live’. Prior to the advent of those technologies (e.g., sound recording and motion pictures), there was no such thing as ‘live’ performance, for that category has meaning only in relation to an opposing possibility». (Auslander, 1999: 51)
[3 ] É justamente a isto que Rosalind Krauss chama o fotográfico, dispondo-se pois, no livro em causa, a «Falar não da fotografia mas da natureza do índice, da função de traço em sua relação com o significado, da condição dos signos deícticos». (Krauss, id.: 16)
[4 ] Relembro neste ponto um dos grandes ensaios sobre Pessoa, da autoria de José Guilherme Merquior («O Lugar de Pessoa na Poesia Moderna»), no qual, retomando o Eduardo Lourenço de Pessoa Revisitado, o autor conclui que «…no fundo, como Lourenço faz notar, a objectividade do naturismo franco e sem rebuços de Caeiro (naturismo, pois naturalismo seria já uma intelectualização) é algo desprovido de vida. A natureza de Caeiro não é uma mãe-natureza acolhedora, mas tão-somente uma existência nua, cega, inconsciente». (Merquior, 1989:31) No fundo, trata-se da questão do inumano da natureza, que prefiro ler com Paul de Man, inumano que, ao contrário dos que vêem no hermetismo e esoterismo uma saída para ele em Pessoa, tanto Lourenço como Merquior entendem sem redenção, por essa via ou outra (posição que subscrevo).
[5 ] Permito-me remeter para a leitura pós-colonial deste excerto por Pedro Serra (2006).
[6 ] Um ponto, eu diria, não suficientemente enfatizado, e no qual podemos ler toda a ambiguidade constitutiva do autor modernista face à modernidade social. Caeiro é o poeta de uma pastoral fake, que em rigor só funciona para as massas (e tem sido esse deveras o caso) na condição de se ler nela uma reconciliação com a Natureza que contudo, em rigor, a ontologia do Heterónimo-Mestre, no seu fazer mundo, não autoriza. Resumindo: para Caeiro ser um Guia espiritual é necessário que o seu poema seja mal lido, o que no fundo actualizaria aquela posição de certos modernizadores conservadores que sugerem, cautelarmente, um uso moderado da Razão para efeitos públicos. Contudo, Caeiro não deixa de ser, em momentos críticos como o que exploro neste momento, um efeito da massificação moderna: no caso, as «ilustrações» enquanto meio de massa. O agon exige a massa e é um subproduto dela, ao contrário da poética do heterónimo, que ilude a massa por uma sucessão de efeitos estéticos que abusam muito literalmente do sensorium do homem moderno, prometendo-lhe o regresso ao concreto de árvores, pedras e rios que a modernidade enquanto processo de abstracção remeteu para a condição de reserva ecológica e poética (uma outra modalidade de distância). Seria caso para perguntar se alguém sai ileso deste duplo equívoco.
[7 ] A leitura infantil de Caeiro percorre dois livros de Diogo (1992 e 1994). Deste último, um excerto: «Caeiro é uma história sobre a infância que, tal qual o Peter Pan, no-la dá, a um tempo, como um lugar encantado e a impossibilidade desse lugar: intimidade ou sono de cem anos» (Diogo, 1994:84)
[8 ] Cito o poema da edição de Manuela Nogueira (1998). Sobre este texto, é fundamental ler Pedro Serra, em ensaio já referido, embora em óptica diversa da que aqui adopto.
[9 ] Uso a edição da poesia de Álvaro de Campos por Teresa Rita Lopes (Campos, 2002: 485-6).
[10 ] Um poema que termina, do ponto de vista do sensorium, em modo à primeira vista equipolente ao de «Dactilografia», já que também aqui a contemplação culmina numa espécie de redução fenomenológica propiciada pela «morte da bezerra»: «O rio da minha aldeia não faz pensar em nada. / Quem está ao pé dele está só ao pé dele». Contudo, a diferença reside em que, ao contrário dos livros infantis coloridos, o rio da aldeia de Caeiro não o projecta retroactivamente para a vraie vie da memória da infância – esse é o atributo do Tejo, que nos recorda «a memória das naus». Por outro lado, na medida em que é de «menos gente» o rio da aldeia é «mais livre e maior», o que nos permite relançar o paralelo no modelo do sensorium: quando o pensamento se bloqueia - «Ninguém nunca pensou no que há para além / Do rio da minha aldeia» - é que as coisas crescem para dentro. Nesse sentido, o rio da aldeia de Caeiro é, de facto, o seu grande livro colorido.
[11 ] Uso a 3ª edição do Livro por Richard Zenith.
[12 ] Recorro à tradução de João Barrento incluída no volume A Modernidade (2006).
[13 ] Devo estas informações a António Sousa Ribeiro, cuja disponibilidade para me ajudar agradeço.
[14 ] Parece-me pertinente aproximar esta passagem da poderosa demonstração da força do acusmático na sequência inicial de um dos primeiros grandes filmes sonoros, M, de Fritz Lang, um filme de data próxima da escrita da secção final do Livro do Desassossego (1931).
[15 ] Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação ‘Nenhum Problema Tem Solução: Um Arquivo Digital do Livro do Desassossego’ (referência PTDC/CLE-LLI/118713/2010), do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra. Projeto financiado pela FCT e cofinanciado pelo FEDER, através do Eixo I do Programa Operacional Fatores de Competitividade (POFC) do QREN, COMPETE: FCOMP-01-0124-FEDER-019715.
© 2013 Osvaldo Manuel Silvestre.