MatLit_NTEM

Mediações Dilaceradas:
Linguagem e Experiência no Pensamento de Theodor Adorno
Matheus de Brito
Universidade de Coimbra

1. Mediações dilaceradas

“Só o falar que em si preserva a escrita liberta a fala humana da mentira de que ela é já humana”(Adorno, 2001: 90) é uma das afirmações a partir das quais, sobretudo se acidentalmente recebida, o leitor pouco habituado a Theodor Adorno pode fazer experiência do caráter paradoxal de seu pensamento, ou mesmo de um certo grau de alexandrinismo, de distância do filósofo em relação à realidade.

Com esse aforismo, Adorno respondia à discussão sobre uma “escrita democrática” e a aproximação do medium escrito ao oral. Sua resposta parece uma simples inversão da proposta; em se tratando de um pensador reconhe-cidamente grave como Adorno, é mais do que isso: a oralidade deveria absorver a experiência dos recursos materiais possibilitados pela necessidade de objetivação da língua em texto escrito, como modo de reconhecer e superar os condicionamentos imediatos de sua experiência. O indivíduo deve haurir da reserva de experiência sedimentada nos objetos social ou culturalmente produzidos; sendo este um modo de preservá-la do possível caráter “regressivo” da máquina cultural – como obstáculo a um desenvolvi-mento efetivo – uma tal práxis oral, vetando a ilusão de comunicação pela “facilitação” do acesso e propiciando ferramentas mais “avançadas” aos sujeitos, é que faria jus à verdade de uma ideia como a de homem.

O teor político na passagem é um quanto acidental. Dos anos 1930 ao final dos 1960, com efeito, Adorno fez uma série de considerações sobre as transformações do século XX que ainda estão em pauta, considerando individual e coletivamente as possibilidades da vida no mundo tecnicamente administrado, em que se implicam mesmo na fibra mais íntima do quotidiano dos indivíduos as intricadas relações entre ciência, economia e sociedade. Podemos suspender a feição política do rapsódico comentário de Adorno ao reconduzi-lo ao âmbito mais amplo de sua preocupação com o estado e as feições da experiência humana contemporânea, o pensamento filosófico, a arte, a moralidade.

Com o conceito de mediação, Adorno pretendia manter visível a tensão entre a especificidade de um dado momento da experiência humana e seu lugar no todo, ao invés de, como nos sistemas positivos contra os quais o método dialético se orienta, aprisionar a experiência no mutismo imediato de sua singularidade ou de sacrificá-la a um ídolo arcaico do “todo”, o que interdiria qualquer intenção de algo que seja mais do que a construção inflexível da história. Pretendemos aqui recuperar alguns dos momentos em que se cristalizam as preocupações de Adorno, mormente aqueles que se relacionam com a experiência da linguagem.

 

2. A resistência dos materiais ao imperativo da comunicação

A passagem a que nos referimos na introdução sugeriu-nos o ensaio “Sinais de pontuação” (Adorno, 2003: 141ss) como possibilidade de complementar o sentido da síntese proposta. O ensaio inicia-se com a tese de que os sinais de pontuação teriam um conteúdo próprio, vinculado mas não redutível à função sintática, na medida em que estivessem opostos à semântica imediatamente ligada à função comunicativa.

Esta aporia dos grafemas, trabalhada com um humor inabitualmente leve para Adorno, seria o específico da técnica de escrita. O que à primeira vista serviria apenas para encadear proposições semânticas emergiria do interior da própria linguagem e seu teor histórico apareceria pela tomada de consciência a respeito do devir de seu uso tipográfico. O resto do ensaio se dedica à fisiognomia de alguns sinais de pontuação, pondo-os entre sua objetivação física e as experiências cognitivas, processos lógicos e discursivos a que esta remete, algo como uma “retórica” dos sinais. Pouco mais além, Adorno adverte-nos de que esta proximidade da expressão à coisa pensada, operada pelos sinais, não deve ser submetida ao emprego simplesmente convencional, às indicações normativas relativamente a estes, o qual corre o risco de terminar com a “ratificação da imbecilidade por uma racionalidade depurada de qualquer mistura”(Adorno, 2003: 147). Vinculando o sujeito à experiência sócio-histórica sedimentada nas práticas de escrita, os sinais formam um sistema historicamente mutável ligado ao estado da linguagem e da experiência social por ela mediada; são as afinidades que o sujeito mantém, a modo de impulso – o que se chama intuição categorial na fenomenologia de Husserl – em direção à coisa, que devem presidir a organização do texto. A operação intuitiva é a segurança da “objetividade” da escrita contra a codificação protocolar.

Se nos mantivermos no texto geral de Notas de Literatura, vemos Adorno responder de diversos modos a uma de suas preocupações constantes, que surgem tanto no texto Dialética do Esclarecimento como em Dialética Negativa, e tornam-se um dos centros de força de Teoria Estética: como é que a técnica de escrita (seja filosófica, seja estético-literária ou mesmo musical) pode viabilizar a experiência do objeto, não se limitando a informar conteúdos (as formas finais abstratas da cognição), mas oferecer a possibilidade mesma de experiência ao sujeito receptor?

“O ensaio como forma”, que é uma dessas respostas, dá-nos o núcleo dessa resistência à comunicação ao denunciar o primado do método cartesiano (análise, classificação, síntese totalizadora), tal como se incorporou à prática científica esclarecida, como fraude da experiência do objeto e, em seu lugar, a “representação da verdade como conjunto de efeitos” (Adorno, 2003: 33). A cifra “conjunto de efeitos” remete-nos à mesma degeneração da experiência estética perpetrada pelo imperativo da comunicação de massas, um dos elementos a que se refere a sua crítica à “Indústria da Cultura”.

Adorno propõe-nos o inverso numa única sentença: “As obras de arte não devem ser compreendidas pela estética como objectos hermenêuticos; na situação actual, haveria que apreender a sua ininteligibilidade”(Adorno, 1982: 138). Trata-se de opor ao primado do método e ao imperativo de comunicação, o primado do objeto, o reconhecimento do incomunicável. A apreensão do ininteligível seria uma utopia – um valor que deve orientar os esforços cognitivos e, ao mesmo tempo, colocar-lhes limites à pretensão de uma identificação totalizada (Adorno, 2009: 13).

 

3. O problema estético da comunicação

Em se tratando da experiência propiciada pela obra de arte, Adorno desenvolveu um conceito de “material” que enquadra, em sentido específico, a noção de materialidade enquanto conjunto geral de meios e práticas estéticas que decidem da experiência da obra de arte. Isto implica tanto o meio físico e seus materiais – cores, sons, formas – quanto os elementos imateriais – temas, narrativas, efeitos e sentidos intencionados – e também as técnicas compositivas e a tecnologia (Adorno, 1982: 170).

A atual pesquisa sobre a interação entre sistemas à procura de condições ou determinações anteriores à comunicação pode ser recuperada – com alguma fantasia retrospectiva, de qualquer modo válida para dar continuidade ao trabalho especulativo de Adorno – se compreendermos que a arte, como um caso específico de “dialética negativa”, é também um sistema que, em sua abertura, se opõe ao seu caráter de sistema – “qualquer artefacto”, diz ele, “se opõe a si” (Adorno, 1982: 125). O tema da inelutabilidade dos condiciona-mentos técnicos, a tese da precedência do meio em relação à mensagem, ecoa numa passagem que implica a tese da cultura como segunda natureza: “A imediatidade do comportamento estético é ainda apenas a imediatidade de um elemento universalmente mediatizado” (1982: 246). O que Adorno pretendia, com isso, era salientar o fato de que não há um elemento primeiro a ser determinado pelo impacto do desenvolvimento técnico, mas que ele é sempre já determinado. A autocontradição do artefato, a possibilidade de realizar um détour em relação às condições de produção, de suspender a determinidade supostamente “natural” dos meios, isto é que interessaria à estética como disciplina que lida com o elemento ininteligível da experiência.

Ao longo de Teoria Estética, o que Adorno elabora em torno de “material” e “materialidade” é uma imago da guerra entre as possibilidades de produção de experiência do mundo pelo medium artístico, isto é, a partir dos seus materiais, e os usos que regulam, como sistemas de coerção, o seu emprego. Não devemos ser simplistas e ver aí, como poderíamos, uma simples tematização da fixada dialética marxista entre os meios materiais de produção e os discursos e práticas sociais que determinam, reprimem e até “falsificam” o poder dos meios pela “ideologia”. Se alongarmos a reflexão que serve de pano de fundo ao ensaio “Sinais de pontuação”, isto é, de que mesmo os elementos assemânticos da escrita veiculam um significado que se sedimenta através da história, e nas formas artísticas de uma maneira ainda mais rica, o que temos é uma espécie de hegelianismo às avessas, em que a história específica da Arte é a do esforço humano de implicar-se nos materiais e reconhecer-se como natureza (Adorno, 1982: 222).

Com a “dialética da espiritualização” (Adorno, 1982: 108-112), Adorno reescreve a narrativa hegeliana da “racionalidade estética”: conforme o conhecimento racional progredia, sistematizava-se e absolutizava-se, produzindo-se assim um excedente de experiências que já não serviam como válidas para os propósitos racionais e por isso eram abandonadas pela práxis “cartesiana” da comunicação. Esse excedente participa da dinâmica histórica como um sistema de elementos não consumíveis na comunicação, resultante do desenvolvimento coletivo e histórico de práticas específicas aos media artísticos. Se partirmos desta linha para pensarmos as materialidades em Adorno, e vice-versa, isto impõe uma cisão incontornável: apesar de se servirem dos mesmos materiais e de se ligarem, em parte, às mesmas técnicas de produção, as atividades de comunicação – sejam massivas, sejam intersubjetivas – sugerem o inverso da atividade estética. “A comunicação”, diz Adorno,“é a adaptação do espírito ao útil, mediante a qual ele se integra nas mercadorias, e o que hoje se chama sentido participa desta monstruosidade”(1982: 91).

O lugar da literatura, porque sobrecarregada de “linguagens”, é ambíguo. Não poderia ser concebido apenas “entre” ambos sem a dupla desqualificação tanto de seu aspecto comunicativo como de seu teor estético. A tentativa de determinar o primado isolado de qualquer termo ou o reduz a informação ou o conduz ao problema do artefato textual bruto, aquém de qualquer experiência. Mas esta impossibilidade de termo médio, dentro de um quadro esboçado a partir do pensamento de Adorno, indica sua verdadeira preocupação com uma estética voltada para os materiais: a possibilidade de romper o circuito fechado dos sentidos com os quais se protocolizou a experiência humana sem recair na indiferença da absoluta ausência de sentido.

Seguindo Adorno, mesmo os sentidos produzidos são um elemento menor da experiência estética; a elucidação das suas condições de produção só importaria quando estas condições fossem vistas antes no sentido oposto, isto é, pensadas elas próprias como condicionadas pelos objetos em função dos quais pretendem comunicar. O sentido é um acidente de uma substância irredutível à intenção totalizadora da hermenêutica, o que realmente interessa só pode ser concebido se se considera que “o sentido da constituição de sentido” não pode ser senão este objeto experiencial que o condiciona. Dessa forma, Adorno pretende algo como a elucidação dos conteúdos não-manifestos daquilo que, não fosse mediado inevitavelmente pela semântica, não poderia jamais ser apreendido. Esses conteúdos, enquanto não-intencionalmente produzidos no processo de constituição de sentido, a modo de ruídos, escapam à hermenêutica tradicional. É deste modo que, como Adorno diz, nem o literal da arte pode ser literalmente concebido (Adorno, 1982:105): mesmo o que é semântico quer fugir ao protocolo da significação. As “materialidades” são, em Adorno, um elemento de um “espírito”, i.e., da totalidade objetiva dos meios materiais e imateriais com que o sujeito se depara. O “espírito”, a cultura, é também material; o afazer da teoria seria pensar não conforme um paradigma comunicacional que privilegiasse o aspecto imaterial mas, precisamente, para além dele.

 

4. Linguagem como medium

Se temos de pensar na experiência da linguagem, então também temos de fazer um pequeno esboço sobre o conceito de “linguagem” em Adorno. Introduzimos já, em parte, o quadro maior em que suas considerações se inserem ao tratarmos da “dialética da espiritualização”; ela é a contrapartida da conhecida “dialética do esclarecimento”.

O impulso de toda obra de Adorno é a crítica à racionalidade moderna. Dialética do Esclarecimento apresenta-nos uma narrativa do processo segundo o qual o controle dos recursos naturais realiza-se historicamente por meio da dominação dos homens. Seu motor é um progressivo “desencantamento” das imagens mágicas que serviram como primeiras formas objetivadas de experiência humana, tentativas de explicar e dominar a natureza como o comportamento natural que assegura a autoconservação da espécie. Progresso significa que a ferramenta mais avançada torna obsoleta a anterior. Mas quando a razão se torna cega a esse enraizamento na natureza e pretende assenhorear-se das demais experiências, ela entra em vias de autodestruição. A “regressão” que se acusa como sombra do progresso esclarecido é o “bloqueio” experiencial causado pela ofuscação da finalidade original (Adorno e Horkheimer, 1985: 17ss).

A construção da racionalidade ocidental, latu sensu, cartesiana, positiva, tecno-científica, moderna ou esclarecida, seria como a emergência discursiva deste processo como um todo. A Aufklärung seria seu marco histórico-institucional. O impacto social do programa do Iluminismonão seria apenas decorrente de uma forma imediata de ordenar a realidade a partir de cima, dos conceitos e das políticas burgueses. O que o Esclarecimento tem de grave não é tanto a administração da ordem social quanto o empobrecimento perpetrado à inteligência, o facto de os mecanismos institucionais introduzirem-se na linguagem humana e, com isso, solaparem a base de todas as experiências linguisticamente mediadas, reduzindo a própria atividade de pensar à reprodução do sistema e abortando qualquer hipótese de verdadeira comunicação:

Ao invés de trazer o objeto à experiência, a palavra purificada serve para exibi-lo como instância de um aspecto abstrato, e tudo o mais, desligado da expressão (que não existe mais) pela busca compulsiva de uma impiedosa clareza, se atrofia também na realidade. (Adorno e Horkheimer, 1985: 136)

A “impiedosa clareza” remete-nos ao imperativo de comunicação e ao método cartesiano, e com ela Adorno também endereça uma crítica ao dogma do conceito estruturalista de linguagem. A redução da palavra ao signo, à função de “designar”, dessubstancializa-a e redu-la a uma fórmula petrificada, como a palavra mágica. A reversão do processo de esclarecimento da linguagem em mito, deve-se à ênfase radical na motivação “arbitrária” do significante, que impõe “do alto” um veto à historicidade concreta e, assim, à motivação “necessária” da própria linguagem, impossibilitando sua experiência viva. Só a letra estruturalista seria morta. Disto decorreriam, como vemos em Dialética Negativa, o nominalismo filosófico e o relativismo enquanto manifestações da consciência limitada (Adorno, 2009: 38).

Para recuperar a experiência humana imanente à linguagem, seria preciso produzir novamente sua experiência, isto é, aproximar-se dela como um objeto, como algo substancial e intransitivo, e não só como medium transparente de comunicação. As exigências entram em conflito: se esta suspensão da “imediatidade” do linguisticamente mediado é necessária para tomá-la como coisa exterior ao sujeito, o pensamento continua inelutavelmente preso à linguagem enquanto seu medium.

 

5. Vivência ou interpretação

Até agora construímos um conceito de “experiência” sem, no entanto, definir precisamente seus contornos. Através da simples remissão para contextos anteriores a qualquer definição, não deixamos de determinar uma moldura pré-conceitual. Antes de particularizarmos “experiência”, pretendemos prolongar algo da discussão sobre o “não-comunicacional”. Tomamos o título desta seção à discussão iniciada pelos estudos do campo não-hermenêutico e procuramos pensar, junto com Adorno, o sentido implicado na questão: vivência ou interpretação?

O texto de Adorno sobre o ensaio como forma objetivada de experiência intelectual dá-nos indicações de como ele responderia à questão. Interpretação, no sentido tradicional da hermenêutica, e vivência, irmanam-se no cartesianismo implícito: o imperativo da escolha entre a “percepção” e a “compreensão” repete a cisão entre sujeito e objeto: entre sujeito que prontamente identifica o objeto a si, consumido na imediatidade com que é dado aos sentidos, e, diametralmente, objeto a ser identificado ou novamente acolhido no conjunto das categorias de que se serve o sujeito (Adorno, 2003: 33-36). Desta cisão desdobram-se as posteriores dicotomias, respectivamente, de corpo e espírito, sensível e inteligível, afeto e entendimento, intuitivo e conceptual, e, se prolongarmos isto no sentido da teorização linguística tal como Adorno a critica, à dissociação do signo em um significante sensível e significado inteligível (Adorno e Horkheimer, 1985: 27-34).

Se acompanharmos a tese de que as práticas sociais pré-formam a percepção ou vivência dos objetos (Adorno e Horkheimer, 1985: 159), e, com esta, de que as categorias empregadas para a interpretação são a tradução conceptual de práticas sociais (Idem: 72-74), ou, grosso modo, uma possível implicação do conhecido slogan da teoria dos media segundo o qual “o meio é a mensagem”, resta-nos que ambos são desdobramentos de uma só perspectiva epistemológica fixa e limitada em relação ao objeto. Passa-se de “vivência”, interna, de um sujeito singular ao critério objetivamente formulado de um sujeito coletivo, do senso comum ao consenso intelectual. Remetendo isto à crítica de Adorno: os primeiros termos mais acima mencionados (percepção, vivência, imediatidade, consumo) pertencem à experiência danificada do indivíduo pelo isolamento da subjetividade na sociedade socializada[1 ]; os seguintes (interpretação, classificação, mediação, consenso) remetem à pretensão de uma verdade injetada nos textos e nas obras de arte a ser recuperada a partir do recurso a uma língua franca de conceitos atemporais e universais (2009: 110ss). Ambos, tomados abstratamente, seriam um único e mesmo caso de comportamento modelado após práticas culturais:

A experiência meramente individual, que a consciência toma como ponto de partida por sua proximidade, é ela mesma já mediada pela experiência mais abrangente da humanidade histórica; é um mero auto-engano da sociedade e da ideologia individualistas conceber a experiência da humanidade histórica como sendo mediada, enquanto o imediato, por sua vez, seria a experiência própria a cada um. (Adorno, 2003: 26)

O que preocupa Adorno, a exemplo do que vimos em “Sinais de Pontuação”, pode ser melhor expresso como o facto de os signos estabelecerem seu sentido apenas por meio de contraposições recíprocas e historicamente condicionadas. O que isto significaria como resposta é que a vivência só seria legítima ao extrapolar os limites de suas expectativas por via da interpretação, ao descobrir e confrontar os pressupostos implicados no seu ato perceptivo particular pelo alargamento de possibilidades suscitado pelo objeto; inversamente, toda interpretação que, aspirando à universalidade, não passasse pela esfera da vivência e reconhecesse a fragilidade de suas pretensões seria apenas má abstração, pois careceria da força que o sujeito tem para romper com as limitações da “objetividade” (no sentido de “consenso”) conceptual.

De resto, o sentido de “experiência” que assim pretendemos simplificar significa a aproximação do sujeito ao objeto, isto é, “a irrupção da objectividade na consciência subjectiva” (1982: 274), o que exclui automaticamente a tentativa pretensiosa de classificá-lo de uma vez por todas sob categorias hierarquicamente organizadas; o sujeito deve muito mais fazer recurso a essas categorias visando sua explosão crítica. Não se trata de um conceito positivo mas o simples recurso a um modo de cognição que se move “entre os extremos e, mediante consequências extremas, impulsiona o pensamento para a alteração, em vez de o qualificar” (Adorno, 2001: 75), isto é, ao invés de simplesmente declinar em tautologia.

 

6. Experiência e “reflexão segunda”

O que indicamos como “espiritualização dos materiais” no mesmo quadro de uma forma de pensar “a partir dos extremos” parece explicar o facto de que, para Adorno, a racionalidade estética dinamiza a emancipação dos “particulares” sensórios, por força da verdade neles sedimentada, perante as exigências e expectativas de fruição, bem como sua resistência à racionalidade positiva. Ambos – a materialidade e o espírito – seriam tão legítimos quanto, tomados abstratamente, deficientes para a explicação dos fenômenos estéticos:

A arte é do ponto de vista genético, mas segundo a sua constituição, o argumento mais drástico contra a separação teórico-cognoscitiva entre a sensibilidade e o entendimento. A reflexão é capaz, ao mais alto nível, de fantasia: a consciência determinada daquilo de que uma obra de arte precisa em determinado lugar é disso a prova. (Adorno, 1982: 198)

A necessidade de atividade intelectual no próprio seio da experiência sensória oferecida pela arte é uma forma de contrapor-se à ideia de racionalidade fixada, ao mesmo tempo acusando a falsidade do “sensório irracional” (Adorno, 1982: 116). Para Adorno, o pensamento tem legitimidade à medida que participa integralmente das faculdades do sujeito; em qualquer performance cognitiva, “o momento somático é irredutível” (2009: 166). A cisão entre entendimento e sensibilidade não deve ser hipostasiada como anterior à atividade teórica, mas “todo espiritual é impulso corporal modificado” (2009: 172). A hipótese de uma arte não-espiritual degenera na produção de artefatos brutos só abstratamente concebíveis: o estímulo puro, conforme apreendido, já é mediado (2009: 165). Inversamente, “intuição” e “conceito” demarcam orientações distintas na relação entre sujeito e objeto: a “consciência determinada” é seu índice; apenas anular sua oposição presta-se à regressão – como a estetização do material empírico, a tentativa de fundir sem mais conhecimento e arte, etc. (1982: 116-9, 278-9; 1985: 99ss).

O que dissemos sobre “experiência” no âmbito cognitivo também se aplica, de outro modo, à dinâmica imanente à “reserva” estética. Esta explode, desde o íntimo, o conteúdo isolado da vivência (o sensório/intuitivo) bem como o da hermenêutica (o conceptual); ultrapassa-os. A racionalidade estética é a própria “experiência” humana sedimentada e (re)produzida por meio da obra de arte e volta-se à sociedade como o palco de um duplo corretivo (Adorno, 1982: 68): ao libertar o objeto das intenções ou expectativas sob as quais o enterrou o sujeito, liberta-o também do circuito vicioso da sua intencionalidade; ao confrontar o sujeito com os limites de sua imediatidade, leva-o a abrir-se para o que está além deles. Torna-se assim paradigma de uma conduta real dos sujeitos num mundo que excede qualquer esforço de apreensão (1982: 23).

Adorno desenvolve também mais considerações sobre a “interpretação”. Mas a contraposição que vimos na seção anterior já não pode ser reproduzida aqui: interpretar é objetivar os conteúdos latentes sem reduzir sua dimensão experiencial, elaborar novamente a obra (Adorno, 1982:149); não exaurir “um” sentido (1982: 40), mas fazê-lo de modo a restituir a experiência, “de tal modo que se reconhecem as exigências contraditórias que tal problema apresenta aos intérpretes” (1982: 210). Aquilo que na hermenêutica seria visado, o conteúdo cognitivo, Adorno postula-o como o verdadeiro objeto da experiência estética (1982: 153), para as quais as obras são o meio. Esse conteúdo, porém, não é semântico: diz respeito à própria participação, mediada pela obra, dos homens na experiência coletiva. A “verdade” como algo não “posto”, mas historicamente desenvolvido, dinâmico e objetivo, é experienciada na ruptura das expectativas. Nessa medida os meios materiais adquirem uma importância distinta dos meios na comunicação, já que eles integram irredutivelmente a experiência.

A interpretação não poderia ser mera transposição de conteúdos, mas necessariamente uma forma de “ressubstancializar” uma dada experiência num dado contexto. Os problemas numa obra a que a percepção contemporânea tornou-se insensível precisariam ser recuperados, seja na performance realizada por outro medium artístico seja na atividade através de conceitos, a cognição teórica. Esta, que Adorno chama de “reflexão segunda”, difere da anterior interpretação pois, elaborada nos conceitos, implica também a autorreflexão sobre a natureza do teor experiencial. Porque a medida da verdade não é a intenção comunicada, mas a dinâmica da experiência: “resolver o enigma equivale a denunciar a razão da sua insolubilidade” (Adorno, 1982: 143), razão também pela qual “o dever de uma restituição autêntica é em princípio infinita” (1982: 210).

Interpretação, crítica, reflexão segunda: trata-se sempre de fluidificar os meios, os objetos em que se sedimentou a experiência humana e usar a experiência acumulada contra as tendências de regressão, contrapondo aos processos de enquadramento na organização da sociedade a possibilidade de pensar e experienciar, sem reduções, a diferencialidade. Em última instância, o que Adorno chama de “verdade”, na experiência estética como na filosófica, é esta mesma possibilidade.

 

7. Literatura como medium

Nas seções anteriores, acompanhamos a crítica de Adorno ao primado do método e à redução do objeto da experiência aos critérios da comunicação; por outro lado, mostramos que com os conceitos de experiência e interpretação, bem como com o próprio sentido que postula para a estética, Adorno pretendia oferecer uma nova forma de perspectivar as aporias da crítica da racionalidade. Podemos considerar os textos de “Notas de Literatura” como modelos para tal. Nesta seção, pensaremos através deles.

O primeiro modelo a considerar é aquele em que a mediação linguística tende à intenção estética. O título “Poesia Lírica e Sociedade” apresenta-nos à partida a dicotomia em que se exprime esse dilaceramento; neste, e nos ensaios “Em memória de Eichendorff” e “A ferida Heine”, Adorno pretende oferecer-nos o “lírico”, em certo sentido, como o propriamente artístico na experiência literária.

Como dissemos, a arte para Adorno é uma reserva de experiências não protocoladas. Estas experiências são, por sua vez, “conteúdo” de experiência ligado às técnicas, antes mesmo de quaisquer conteúdos semânticos, e, por meio destas, inscrevem-se nos materiais estéticos. “Poesia Lírica e Sociedade” é o ensaio em que Adorno apresenta a tese, também um dos centros de força da teoria, de que a vivência subjetiva a que se refere o poema lírico é radicada num “subterrâneo coletivo” e, nessa medida, é uma forma objetiva de participação na dinâmica social. A “vivência”, vista de maneira imediata, é redescoberta como “experiência” quando o sujeito humano é percebido como um elemento que ao mesmo tempo participa e se diferencia da coletividade em que se insere; ele mesmo é objetivamente mediado. Em Teoria Estética, Adorno escreve:

O que acede à linguagem integra-se no movimento de algo de humano que ainda não existe e se agita em virtude da impotência que o constrange à linguagem. O sujeito, tacteando por detrás da sua reificação, limita esta mediante o rudimento mimético, representante da vida intacta no seio da vida mutilada, que o sujeito erigia em ideologia. (Adorno, 1982:138)

Adorno condensa assim a componente conceptual do seu ensaio “Poesia Lírica e Sociedade”. O primeiro argumento resume o processo segundo o qual o influxo subterrâneo e coletivo da experiência, o teor social latente, ganha expressão (estética) na linguagem, na medida em que não é capaz de ter uma expressão social pragmática, isto é, de acordo com sua exclusão dos esquemas racionalizados de organização da vida. O “sujeito reificado” é função do social. Mas o processo de objetificação da experiência encontra seu limite no “rudimento mimético”, no comportamento que, mesmo sob a ação heterónoma da sociedade, persiste na relação do sujeito àquilo que não se reduz a mero objeto. O sujeito tateia porque o contexto social total, seu determinante, lhe escapa; o que Adorno chama “ideologia” não é simplesmente “falsa consciência” a ser negada para que se descubra a verdade, mas a necessária condição da verdade.

O que “ideologia” significa no plano extra-estético é, no intra-estético, “aparência” (Schein), enquanto refúgio “do que ainda não existe”. A aparência da arte – ou a ficcionalidade, desse modo – é sua possibilidade de fazer surgir o “não-aparente”, a aspiração e o movimento coletivo que se implicaram no discurso da arte pela mediação do artista (Adorno, 1982: 103). Ao mesmo tempo, “aparência” diz respeito ao momento sensório da obra, ao artifício pela qual ela se contrapõe à realidade “desencantada”. Para Adorno, o lírico diz respeito à ressubstancialização da linguagem verbal pela ênfase a um aparente “em-si” da palavra, que se caracteriza, no plano técnico, pelos reforços à significação – e. g. a unidade “orgânica” entre forma e conteúdo –, e a decorrente irredutibilidade das escolhas realizadas no processo compositivo (Adorno, 2003: 88). Quando Adorno menciona este processo como “esquecimento do sujeito no interior da linguagem”, não se trata senão da linguagem do medium como a que possibilita a inscrição da experiência; ao mesmo tempo, a imediatidade do sujeito que lida com as possibilidades técnico-formais do medium é o que confere a este “substância” (2003: 106ss).

A descoberta da “universalidade” pela imersão no extremo particular, um tópico romântico e quase um escândalo metafísico, não é, para Adorno, flatusvocis (Adorno, 1982: 190). A “astúcia da razão” estética consiste em fazer do sujeito empírico, o artista, o mediador entre as categorias (os universais) da tradição e a sua experiência particular; assim, a experiência do fazer artístico é a inscrição de dado momento histórico-social na reserva maior da arte. O valor desta inscrição – o critério que Adorno, afinal, emprega para julgar a obra – não se mede tanto pela capacidade de negar simplesmente a tradição quanto pela crítica imanente das categorias enrijecidas: se a pretensão da arte é propiciar uma experiência integral – um índice do que não foi totalmente mutilado pela racionalidade, uma promessa de “reconciliação” –, então ela só pode situar seu modelo na atualidade da experiência em relação negativa com os sedimentos coletivos.

Adorno evoca o poema como o “relógio solar da história” (Adorno, 2003: 79) e põe, na teoria, como dissemos, a interpretação a serviço da recuperação dessa substância anterior à comunicação. Mas o que temos dito não é válido tão-só para a poesia lírica; podemos encontrar outro exemplo em “Sobre a ingenuidade épica”, no qual vemos o medium narrativo dilacerado entre o mito e o mundo. No épico, a técnica de parataxe (composição por adição) restitui a integralidade das imagens, sua substancialidade, ao mesmo tempo em que não as subordina à intencionalidade, “deixando aflorar a realidade de forma pura” (2003: 51). A forma paratática resulta da mnemotécnica exigida pelo medium da oralidade e consiste em fixar a unidade semântica na unidade do verso; mas através de sutis irregularidades em relação à tradição oral assim estabelecida, a narrativa épica opera a crítica implícita da dominação mítica. Essas variações são recursos sintáticos que revelam a condicionalidade das práticas relativas ao medium oral, e, no plano semântico maior (ou cognitivo), desfazem a circularidade causal do mito pela introdução de uma consciência do singular (2003: 49, 52). Pelo medium narrativo, a substância do mito, “a monotonia não-articulada”, é dada à experiência do diferente (2003: 48).

Por outro lado, a literatura ter seu modelo experiencial na história define sua própria participação histórica. Uma das implicações da dependência que a “racionalidade estética” mantém com a “racionalidade esclarecida” será, por exemplo, o declínio do “teor de verdade”, do que seria o teor experiencial constitutivo do lirismo natural. Essa exaustão do valor da lírica como modelo de composição poética seria consequência tanto da concretização da dominação tecnológica da natureza – que não permite idealizar uma Natureza – como do progresso do nominalismo, a dominação conceitual da cultura – que veta a imagem de uma Humanidade (Adorno, 1982: 246). Com isso, Adorno pretendia indicar a inadequação da experiência e, assim, a falsidade da imediatidade estética na contemporaneidade: “Uma arte desprovida de reflexão é a fantasia ao invés da época que se diz reflexiva” (1982: 371, nossa ênfase). O ensaio “Posição do narrador no romance contemporâneo” apresenta-nos Joyce, Proust, Mann, Kafka como figuras que estiolam a pretensão de comunicação – como relato de experiência – imputada ao romance. É a partir do mesmo fenômeno da crise do sujeito na “sociedade socializada”, seu confisco na era da informação (2003: 57), que ele parte às conhecidas considerações sobre a recusa radical da Arte à aparência imediatamente assimilável da “redenção” e da felicidade. Para Adorno, a recusa da imago da redenção estética é o último recurso para salvar o “não-aparente” – a única hipótese de salvar a ideia de reconciliação, da experiência digna dos homens, é recusar a ideia de que pode haver a menor paz em meio ao irreconciliado (1982: 263).

 

8. “Ensaio como forma” ou estilo intelectual

Protegido pela esfera da aparência, autonomizado da exigência de realidade, o primado do estético na linguagem literária vive à partida um conflito bem menos explícito com seu aspecto comunicativo; em “Poesia Lírica e Sociedade”, por exemplo, Adorno evitou mais considerações sobre o declínio do lirismo, como as que mencionamos por alto, em que ganha evidência a aporia da linguagem. Já “Ensaio como forma”, por outro lado, tem a vantagem de constituir, em parte, uma glosa sobre a tensão que indicamos com a expressão “mediações dilaceradas”.

Segundo Adorno, o ensaio é uma espécie astuciosa de forma textual em que se objetiva a pensamento crítico (Adorno, 2003: 38). Com “astúcia”, Adorno indica um movimento de revés: a forma supera o enrijecimento dos significados/conceitos por meio da própria intenção de “realidade” neles contida, isto é, rompe a “simples” linguagem através da elaboração da linguagem. Uma vez que o pensamento se desembarace da ideia positivista de verdade, e que submeta o método às exigências da experiência particular a que visa dar substância (2003:26), ele se torna livre para medir os conceitos e construções culturais com a suposta realidade que eles visam, revelando sua fragilidade e desdobrando suas contradições (2003: 39). A experiência que o ensaio objetiva é uma crítica imanente, uma “sofisticação” do conteúdo sedimentado nos universais da cultura pelo seu confronto com as experiências históricas que lhes são irredutíveis.

Mas o ensaio é uma objetivação, algo produzido através da atividade cognitiva. Ele é uma interpretação materializada em discurso. A pergunta que nos importa verdadeiramente é: como ele oferece, no quadro da comuni-cação, essa experiência? Como é que ele pode não apenas “informar sobre” mas “apresentar o novo como novidade” em meio ao já conhecido? A pri-meira e simples palavra de Adorno é: “retórica” – os recursos de significação possibilitados pelo medium verbal, tendo em vista, porém, não a persuasão mas o valor epistêmico da “mimese do objeto”, isto é, pensando-se como reelaboração de uma experiência que excede a pura conceitualidade. E, indis-sociável desta “refuncionalização” da retórica, a estratégia de distanciamento do padrão discursivo “dessubstancializado” em função da consciência daquilo que, no objeto com que lida, resiste à conformação. O ensaio não visa apenas falar sobre a incongruência do conceito perante a experiência real, mas, ao fazer recurso àquela pequena astúcia, precisa reproduzi-la em sua forma de exposição; nessa medida, o que está em jogo é o elemento estético.

“Não se consegue perceber mais nas palavras a violência que elas sofrem” (Adorno e Horkheimer, 1985: 138), porque os signos da comunicação tendem a ser consumidos na imediatidade do significado convencionado. O que Adorno propõe com a noção epistemológica de “constelação” é uma tentativa de remediar a “transparência” do signo ao desdobrar, através dele, uma multiplicidade de significados e ao realizar uma série de associações, contraposições, justaposições não raro paradoxais. O procedimento chega a uma forma textual que apresenta ao leitor uma figura final opaca ou algo tortuosa do pensamento; este “algo tortuoso” da exposição, uma “maior concretude” (e resistência) da escrita, quer oferecer ao leitor certo teor do gesto inicial, em que “constelação” é um esforço teórico-cognoscitivo que desconfia da pretensão de reter a realidade sempre dinâmica em categorias bem formadas. O verdadeiramente difícil nos textos mais densamente conceituais de Adorno não está tanto no seu caráter abstrato como no teor estético através do qual ele visa remeter a escrita filosófica à concretude do objeto, com a dupla finalidade de estiolar a soberania do pensamento e, no mesmo movimento, resgatar aquilo que nele ainda reflete a experiência dos homens.

Ao longo do texto, vemos Adorno construir o conceito de “ensaio” a partir de sua ambiguidade semântica. “Ensaio” é também “Versuch”; como em português, indica uma tentativa. Enquanto forma de escrita, “cons-telação” é a objetivação de um modo cognitivo que “mimetiza” o processo de registo escrito ao coordenar os elementos semânticos levando em conta o valor que os símbolos assumem conforme sintaticamente articulados; só a partir daí é que se torna prática de escrita de Adorno. Essa “forma” cognitiva não está imediatamente ligada a nenhum substrato puramente mental e anterior como medida de sua infalibilidade (a “Razão”, o método), mas reconhece a história como sua condição determinante, tendo seu modelo na própria experiência linguística:

Ela [a linguagem] não oferece nenhum sistema de signos para as funções do conhecimento. Onde ela se apresenta essencialmente enquanto linguagem e se torna apresentação, ela não define seus conceitos. Ela conquista para eles a sua objetividade por meio da relação na qual coloca os conceitos, centrados na coisa. (Adorno, 2009: 140-1)

A sintaxe detém o primado sobre o material semântico abstrato; ela é que, irredutível à comunicação “cartesiana”, reproduz o diferencial da dinâmica da experiência cognitiva e, ao fim e ao cabo, o verdadeiramente significativo. Como na música, Adorno diz da filosofia que “é aquilo que se passa nela que decide, não uma tese ou posição; o tecido, não o curso de via única dedutivo ou indutivo do pensamento” (Adorno, 2009: 36); ele indicava a intricada dimensão narrativa do texto filosófico. Toda a glosa de “Ensaio como forma”, afinal, sobre o pensamento dialético, a insistência adorniana nas mediações – não apenas como crítica dos conceitos, mas como forma de dar substância à experiência da linguagem – parece dar ao texto um quê de prólogo a Notas de Literatura, por uma simples razão: a própria dialética, que é pensar através da linguagem, consistiria num uso heurístico de “velhos” recursos da literatura ao insistir na linguagem como “mais que um simples sistema de signos” (Adorno e Horkheimer, 1985: 32).

 

9. “Para terminar”

Podemos entender, afinal, a inusitada recomendação de que a fala absorva os recursos da escrita como modo de ressubstancializar a experiência da comunicação: a necessidade de superar o imediato, que se limita à coerência do mundo administrado, e esforçar-se por uma racionalidade comunicativa que dissolva os limites e condições da intersubjetividade e reintroduza a objetividade (no sentido da experiência do objeto, não do consenso) na fala. Se dissemos que a utopia do conhecimento, para Adorno, era a apreensão do ininteligível, também a utopia da comunicação seria a possibilidade de ultrapassar o repertório do conhecimento consensual e, com isso, permitir a emergência do diferente.

Essa possibilidade de inscrição do diferente está ligada ao esforço de produzi-lo através dos próprios recursos de fixação da mediação linguística e dependem do avanço técnico dos media. Não apenas de uma perspectiva tecnológica, mas da própria experiência das técnicas vinculadas às práticas de mediação; isto diz respeito tanto às materialidades “brutas” da comunicação quanto aos “imateriais” que lhes são anteriores e que, através do desenvolvi-mento dos meios, entram em novas configurações históricas. Para recuperar e desenvolver esta experiência, não devemos olhar estes elementos como simples sistemas de mediações de expectativas consensualmente objetivas, mas como tentativas de ir além do protocolar, além da “mentira de que a fala é já humana”.

A possibilidade de uma tal experiência é indissolúvel daquilo que é anterior à mediação; a tese da anterioridade, a condicionalidade dos condicionantes, indica o dilaceramento da comunicação: podemos, por um lado, pensá-la da perspectiva do sentido ou mesmo do efeito comunicado (que, em verdade, são dois nomes para uma mesma coisa, isto é, a atenção voltada à recepção) ou, por outro, pensar que o sentido e o efeito são epifenô-menos em relação à mediação considerada da perspectiva de seu impulso primeiro, o de fixar o de outra sorte efêmero, o trabalho adâmico da nomeação. É este impulso primeiro a que se refere Adorno como “o elemento linguístico” de toda arte.

A arte literária, como caso de “sintaxe sem palavras mesmo nas obras linguísticas” (Adorno, 1982: 209) está precisamente implicada não apenas no dilaceramento dos meios técnicos, como na escusa de que nos servimos na introdução, mas no dilaceramento da experiência da linguagem em suas múltiplas formas. Seria uma “intenção” da literatura a de superar as aporias da “racionalidade irracional” e dar substância à experiência da linguagem? Assim, talvez, à experiência do próprio pensamento? Isso significa sugerir a mediação entre os meios técnicos e as estruturas intra-estéticas, as mediações imanentes das obras, como lugar da pesquisa da diferencialidade.

 


Referências
Adorno, Theodor W. (1982). Teoria Estética. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70.
Adorno, Theodor W. (2001). Minima Moralia. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70.
Adorno, Theodor W. (2003). Notas de Literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34.
Adorno, Theodor W. (2009). Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Zahar.
Adorno, Theodor W. e Max Horkheimer (1985). Dialética do Esclarecimento. Trad. de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar.


Notas

[1 ] Erlebnis, que se traduz vivência ou “experiência vivida”, significaria – tomada como uma modalidade abstrata de relação do sujeito com o mundo – o implícito reconhecimento das limitações da participação individual na coletividade social, a aquiescência do sujeito à sua redução a mera função da “sociedade socializada” e, com isso, significaria a reificação da própria condição de sujeito (Adorno, 2009:154-5; 2001: 18ss). Todo sujeito tem sua “vivência” como incapacidade de realizar uma “experiência” – em alemão, “Erfahrung” indica uma passagem, a realização de uma saída completa. Esta crítica de Adorno ao declínio da “subjetividade” em “subjetivismo” ecoa em Teoria Estética em seu ataque à doutrina do “gosto” e da arte puramente “intuitiva” (1982: 24-27, 270-275).