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Um Inventário do Escrito no Cinema
Rita Novas Miranda
Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa | Universidade do Porto

O título é literal: L’Écrit au cinéma não é um livro sobre a escrita no cinema, mas, sim, sobre o “escrito”, ou seja, as variações em que a letra, a palavra e o discurso aparecem, legíveis ou no limite da legibilidade, materialmente escritas no ecrã. Estamos, portanto, perante uma obra que é menos sobre as relações entre cinema e escrita do que sobre a forma através da qual o cinema trabalhou a inscrição verbal [1 ]. Com efeito, o objetivo de Michel Chion parece ser o de mostrar de que modo a utilização da escrita no cinema torna inteligível o mundo e o mundo do cinema em particular.

Nos prolegómenos, lemos desde logo: “C’est ici de même tout l’écrit au cinéma que concerne cet essai, pour lequel nous avons voulu redevenir l’enfant avide aux yeux de qui même l’étiquette d’une bouteille d’eau mérite d’être lue. Rien n’est trop humble ici, trop négligeable” (Chion, 2013a: 5). E a lista é longa e heterogénea: “Bien sûr les génériques, les titres, les intertitres et autres sous-titres, mais aussi les lettres que les personnages écrivent ou lisent, les télégrammes, les SMS, les mots tracés sur des vitres, les cartes de visites et les enseignes d’hôtel, les banderolles, affiches, panneaux de direction et d’interdiction, écrans d’ordinateur, bien sûr, et tout ce qui peut se tracer dans l’air, dans la neige et sur le sable, sur le métal ou sur le bois, sans oublier le papier, aussi bien que dans le ciel et sur la peau humaine” (Chion, 2013a: 5).

A heterogeneidade de formas de escrita – da palavra “fim” à carta ou ao livro – é paralela à pluralidade de exemplos de filmes, não havendo critério cronológico nem uma “ideia de cinema” (valorativa ou não) que possa ligar todos os filmes citados, sendo que a única delimitação do corpus apresentada é a categoria “filmes de ficção”, que o autor não explicita. Podemos, então, inferir que o critério de organização é temático e técnico (técnica que é tanto a cinematográfica como a escrita). As três partes do livro – “Un inventaire infini”, “Écrire, lire” e “L’écrit dans l’espace du film” – seguem uma minuciosa divisão e uma impressionante atenção ao detalhe: não apenas as formas em que o “escrito aparece” – o nome de lugares ou de personagens, a tatuagem, a escrita a tinta ou na areia, o computador, etc. –, mas também o modo como o cinema o mostra e o faz funcionar – do plano aproximado de detalhe que coloca o escrito em evidência à erosão ou diluição da escrita através de processos de sobreposição e de fusão, entre muitos outros exemplos.

Na introdução, Chion faz duas divisões metodológicas que ajudam a compreender a minuciosa empresa. A primeira, na qual não se detém em profundidade, é a distinção entre real diegético, real cinematográfico e real pró-fílmico. Em segundo lugar, estabelece cinco definições operativas, isto é, cinco modos em que o escrito aparece no cinema: (1) o “écrit-porche” enquanto escrito não diegético que, nas figuras do genérico de início e de fim, enquadram o filme (um dos grandes motivos de interesse deste livro reside precisamente aqui, no entendimento do filme enquanto totalidade, do momento em que o projetor inicia o filme ao momento em que o suspende); (2) a este termo introduz uma variante a que dá o nome de “écrit-superposé” que se distingue do primeiro somente porque o genérico se sobrepõe à “ação”; (3) o “inclus”, quando o escrito aparece mas não é o elemento central; (4) o “insert” que é, desta vez, um plano aproximado de detalhe entre outros dois planos (divididos em diegético alinhado e diegético não alinhado); (5) e, por fim, uma forma de “insert” a que dá o nome de “iconogène”, quando o que começa por ser um “insert” se torna o meio através do qual nasce a continuação da narrativa. Nestas três últimas categorias, destaca-se ainda a importante noção de “athorybe” (do grego “athorybos” que significa ausência de ruído, como explica em L’Audio-Vision [Chion, 2013b: 221]), quando o escrito tem um caráter prementemente visual, é mudo e independente da voz (Chion, 2013a: 67), ou seja, é verdadeiramente lido pelo espetador.

Em “Un inventaire infini” Chion dedica-se, principalmente, a enumerar formas de aparecimento do escrito. Em “Écrire, lire”, por outro lado, problematiza de forma mais detalhada os atos, interligados, de ver e de ler. Aqui, à enumeração das formas de aparecimento do escrito juntam-se as convenções a si associadas, cujo título do subcapítulo 1 – “Quand le personnage lit, le spectateur ne lit pas” (capítulo VI) – pode ser um claro exemplo. Consequentemente, detém-se também no que nomeia “entrelire”: quando o plano é demasiado rápido para que o leitor possa acompanhar a mensagem na sua completude. E é neste momento que demonstra como desde o aparecimento do VHS e, depois, do DVD a relação do espetador com o filme se modificou, sendo agora possível parar o filme para que esse “entreler” se transforme em “ler”. De seguida, falará de práticas que poderíamos considerar até “fora do filme em si”, ou seja, as legendas em línguas diferentes e a dobragem, focando as estratégias de tradução e os problemas de inteligibilidade que daí advêm. Por último, o terceiro capítulo, “L’écrit dans l’espace du film”, é um título interpretado de duas formas diferentes: a primeira em relação à técnica (que devém naturalmente estética), ou seja, a forma como o escrito funciona entre 2D e 3D; o segundo, de caráter conceptual e simbólico (e diegético): o escrito face às forças cósmicas e materiais (o vento, por exemplo), ou o jogo entre cinema, ecrã, suporte e janela. Chion termina, assim, o livro com a noção de “excrit” (não mencionando Jean-Luc Nancy, que desenvolveu o conceito), que está no limiar entre a inscrição e a desaparição: “Détruire l’écrit que nous voyons sur l’écran, nous faire assister à sa disparition, c’est paradoxalement le valoriser, le symboliser. La destruction physique de l’écrit fixe mentalement le moment de l’écriture et de l’inscription, elle en emblematise l’excription” (Chion, 2013a: 200).    

As três partes do livro incorporam, deste modo, diferentes níveis de aparição do escrito, indo de uma abordagem técnica, formal, simbólica e convencional a abordagens mais problematizantes do ponto de vista da conceptualização do escrito no ecrã. Talvez o trabalho sobre as convenções do cinema, no sentido da explicitação de uma espécie de gramática cinematográfica, se torne mais determinante ao longo da obra; fazendo-se, por isso, notar a ausência de exemplos que coloquem em causa de forma mais radical essa mesma convencionalidade (notemos a referência a Anémic Cinéma, de Duchamp, entre as exceções), que o recurso a alguns exemplos literários – Mallarmé, Flaubert, Hugo, Dante, entre outros – não vem resgatar. Isto significa que L’Écrit au cinéma é um verdadeiro manual (a ausência de notas de rodapé, por exemplo, explicita o caráter mais enumerativo e mostrativo), funcionando na ordem do inventário ou mesmo próximo da ideia de dicionário enquanto levantamento e explicitação de termos (enquanto ideia, porque a organização e apresentação do livro não responde em momento algum ao esquema de um dicionário). Podemos, com efeito, dizer que L’Écrit au cinéma é uma porta de entrada para começarmos a pensar de que modo o cinema implica a grafia. Não se tratará, contudo, de um início, mas, sim, de mais uma peça do complexo puzzle que Michel Chion vem construindo sobre as relações entre discurso, som e imagem (onde refere já, em vários momentos, o escrito e a escrita), desde 1982, quando publica La Voix au cinéma, destacando-se ainda, entre outros, L’Audio-Vision: son et image au cinéma (1990) e Le Son: traité d’acoulogie (1998). Estas obras são especialmente relevantes em relação ao livro que aqui tratamos, não só por abordarem questões relativas às formas discursivas no cinema, mas também, e especialmente, pelo facto de as duas últimas terem sido alvo de edições revistas e aumentadas nos últimos anos, 2013 e 2010 respetivamente, e nelas ser abandonado o conceito de “áudio-visão” em favor do de “áudio-logo-visão” que evidencia, por sua vez, o lugar do discurso no cinema: “… il inclut du langage sous forme écrite et/ou parlé, sachant que le langage échappe à la sphère seulement visuelle ou sonore./ Ce terme rappelle que la situation est le plus souvent triangulaire, et non duelle” (Chion, 2013b: 211). O gesto de Chion em relação ao escrito deverá, então, ser lido num quadro mais alargado e complexo que incorpore outras dimensões do discurso em relação à imagem e ao som.       

Em suma, L’Écrit au cinéma é um caso raro e muito interessante de inventariação do que é e de como funciona o escrito no cinema, deixando em aberto o espaço de reflexão para pensar a relação entre escrito, escrita e cinema.

 


Referências
CHION, Michel (1982). La Voix au cinéma. Paris: Éditions de l’étoile/ Cahiers du cinéma.
_____ (2010). Le Son. Traité d’acoulogie [1998]. Paris: Armand Colin.
_____  (2013a). L’Écrit au cinéma. Paris: Armand Colin.
_____ (2013b). L’Audio-Vision. Son et image au cinéma [1990]. Paris: Armand Colin.

 


Notas

[1 ]Em português não é muito comum a utilização do substantivo “escrito” enquanto tradução de “écrit”. Contudo, tentando respeitar o projeto do autor e a necessidade de manter e de evidenciar a diferença entre “escrito” e “escrita”, utilizaremos este substantivo.