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Ver a Poesia, Ler o Cinema
Manaíra Aires Athayde
Universidade de Coimbra
Bolseira da CAPES

Registros, marcas, relatos. Imagens, memórias, vestígios. Lugares onde a passagem do tempo se torna visível, lugares tangíveis, que acumulam em si diferentes períodos, como certas formas geológicas nas quais se pode ler a idade da Terra. Estratos sob estratos de um passado soterrado debaixo de um chão vivo, com placas que se movem deslocando fronteiras. Formação epigênica, pois, onde se dá o encontro das poesias moderna e contemporânea com o cinema, que mais não são do que estes lugares onde triunfa a experiência das imagens como forma de presentificar o mundo.

E em atenção a este mundo pautado pela circulação de imagens, no paradoxal desconforto de nos acharmos simultaneamente entre a iconofilia e a iconofobia, surge O Cinema da Poesia (Documenta, 2012), de Rosa Maria Martelo, professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigadora do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa e da rede internacional LyraCompoetics. Depois de Poemas com Cinema (Assírio & Alvim, 2010), onde a autora antologia, juntamente com Joana Matos Frias e Luís Miguel Queirós, poemas da literatura portuguesa relacionados com a sétima arte, de homenagens a personalidades a composições que aproveitam as estruturas cinematográficas como mecanismos de criação, a proposta é então pensar, a partir de uma cuidadosa base teórica (e lá estão Antonin Artaud, Gilles Deleuze, Giorgio Agamben, Jean Epstein, Jean-Luc Nancy, Maurice Blanchot, Noël Carroll, Walter Benjamin, entre outros), sobre essas inflexões da escrita.

Os treze ensaios reunidos nesse livro, embora trabalhem autores e questões diferenciadas, num corpus cingido à poesia portuguesa, possuem uma mesma unidade fundadora, que consiste em refletir sobre o modo como as imagens são concebidas e articuladas na poesia de tradição moderna. Daí então é que surge o diálogo entre o texto poético e outras artes da imagem, especialmente o cinema, em questões que circunscrevem o processo de intermedialidade. Como se move a convergência entre poesia e cinema? E em que consiste o cinematismo da poesia? Mais do que a emergência do invisível, como os poetas lidam agora com o excesso do visível? Aliás, a necessidade de dar a ver tem mais a ver com transformar o que está visível do que fazer vir à tona o invisível, num mundo tomado por diárias avalanches iconográficas.

A poesia, nessa relação intermedial, é atrelada à imagem em movimento produzida tecnicamente ao acentuar a visualidade e o visionarismo, a tensão e a rapidez, e tomar para si valores alinhavados ao mundo moderno, então delineados pela valorização da imagem como elemento fundador do poema. Por isso a poesia de tradição moderna muitas vezes se apresenta como uma espécie de cinema, uma arte na qual o fluxo das imagens desempenha um papel determinante e onde se desvela o cruzamento entre lirismo e narratividade. Torna-se, assim, no terreno próprio da modernidade, definitivamente uma arte da imagem – a sintaxe entre as imagens e o seu poder evocativo – e da montagem, procurando novos caminhos a partir da conjugação iconográfica. Afinal, embora o modo de apreender a imagem seja substancialmente diferente para a poesia e para o cinema, o conceito de imagem e os processos de relação entre as imagens configuram uma problemática que lhes é comum. 

Não por acaso, o núcleo de investigação de O Cinema da Poesia não está na intertextualidade temática, embora o universo cinematográfico seja realçado por um conjunto de poemas inspirados pela memória do cinema e pela experiência do espectador, com vários poemas dedicados a filmes, realizadores e atores, ou poemas que funcionam por processos ecfrásticos ou por transposição narrativa. O livro centra-se sobretudo num outro tipo de relação entre poesia e cinema, com consequências mais profundas porque diz respeito às reciprocidades entre duas artes que partilham uma extensa e multiforme reflexão sobre os processos de fazer imagem. Al Berto, Carlos de Oliveira, Fernando Guerreiro, Fiama Hasse Pais Brandão, Herberto Helder, Luís Miguel Nava, Luiza Neto Jorge, Manuel Gusmão, Ruy Belo ou Sophia de Mello Breyner, ou ainda Fernando Pessoa ou Cesário Verde, desenvolvem formas de intermedialidade situáveis nesse plano, que Rosa Maria Martelo procura no livro desenvolver. 

No «Preâmbulo» de O Cinema da Poesia, composto pelo ensaio introdutório «Poesia: imagem, cinema» e por «Pensar e sentir por imagens (Fernando Pessoa, 1912)», são assentadas questões fundamentais para a construção e manutenção do diálogo amplo e aberto que a poesia de tradição moderna legitima para com o cinema. Discute-se como essa poesia – pautada pela nitidez, pela plasticidade e pela imaginação, como caracterizaria Fernando Pessoa –, ao encontrar o dinamismo e o deslubramento na valorização da celeridade e do fluxo contínuo de imagens, revela a consciência de que tal processo tem efeito na des-subjetivação e que, por isso mesmo, a nova organicidade do poema trazida pela conjugação desses vetores estéticos não poderá ser assegurada pelo expressivismo lírico, mas sim por um princípio construtivo.

E é com esta ideia que passamos para a primeira seção temática, «Deambulações na poesia», que reúne ensaios de caráter mais amplo e coordenadas deícticas, em que se inscreve as transformações do espaço e os registros dos lugares, e de como as imagens são a eles articuladas, em tempos de manipulação, montagem e enxertia, em tempos de metamorfoses e hibridismos. Em «Imagens, paisagens, espaços poéticos», «Metáfora e imagem perceptiva na poesia de Cesário Verde» e «Errância e imagem na escrita de Al Berto» explora-se, em suma, a experiência de uma urbanidade tão fascinante quanto desagregadora e de uma incontornável adscrição da evanescência do visível. Está em análise, também, as transformações no modo de conceber a deambulação surgida na poesia moderna, no seu genuíno espírito flâneur, e associada a noções como as de trajeto, viagem, lugar, espaço e paisagem. Procura-se investigar o que essas mudanças nos podem dizer sobre a evolução das relações entre poesia e imagem.

Já em «De imagem em imagem», a discussão torna-se mais estrita, focada em refletir sobre como a poesia se aproveita das propriedades do suporte e da sintaxe cinematográficos como mecanismos de criação. De que forma um poema pode ser cuidadosamente pensado e estruturado conforme uma montagem cinematográfica, com todo o seu processo de seleção, ordenação e ajustamento articulado ao «ato de recortar» ou de «cortar dando forma» ao cruzamento entre lirismo e narratividade. Ou como, então com a facultação da montagem, decorrem os processos relacionais das imagens entre si, em composições de transição, descontinuidade ou choque, por exemplo. Ou ainda como a própria imagem poética emerge de recursos estéticos do cinema, como tipos de enquadramento, composições de planos e mediações focais. «Imagens e som no mundo de Sophia», «1961: as imagens», «Fiama ou opensamen- / tovisual», «Alegoria, fragmento e montagem nos poemas longos de Ruy Belo» refletem, enfim, a atenção dada à irrupção e ao tratamento das imagens.

Na última seção temática, que nomeia o livro, além de se dar continuidade às implicações da montagem e de outros processos relacionais, é a vez da noção explícita de cinema ser somada às elucubrações. A articulação entre imagem poética e imagem cinematográfica é estabelecida em função da experiência do espectador, e o que está em discussão é a concreção iconográfica como forma de ver e rememorar o mundo. Quer dizer, a memória como cinema ou o cinema como uma forma originária na mente humana, a qual o surgimento do cinema enquanto arte teria vindo dar materialmente resposta. O que explica, em parte, que a poesia de tradição moderna e o cinema usufruam da imagem como unidade fundadora. Para mais, a seção «O Cinema da Poesia» desdobra-se a partir da contaminação entre as duas artes, revelando que a intertextualidade pode ser assente mais do que numa relação de ordem temática ou ecfrástica, mas numa relação situada essencialmente no plano discursivo, na construção do discurso poético. Nesses vieses, pois, é que encontramos «Na sala escura», «“Qualquer poema é um filme”?», «Entre poesia e cinema (Herberto Helder e Manuel Gusmão)» e «Imagens de imagens na poesia de Manuel Gusmão», para finalizar o livro.

Os dois primeiros ensaios, em «Preâmbulo», e o segundo e quarto ensaio de «De imagem em imagem» eram até então inéditos, enquanto os demais textos do volume já foram publicados de forma dispersa, em atas de congressos ou em revistas, tendo sido revistos, ampliados e articulados para a edição. A resoluta forma com que os textos são encadeados e a capacidade de criar espécies de súmulas internas a cada ensaio, sintetizando o que já foi discutido ou introduzindo o que vem a ser analisado, constroem uma cadência nítida e vigorosa, numa escrita assomada pela elegância. Pois que certamente são fatores que levaram O Cinema da Poesia a receber, em maio deste ano, o Grande Prêmio de Ensaio Eduardo Prado Coelho, atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores e que nas edições anteriores já havia galardoado Vítor Aguiar e Silva, Manuel Gusmão e João Barrento.

No tocante, porquanto, da poesia concebida enquanto fundamentalmente uma aventura da linguagem, O Cinema da Poesia vem nos mostrar como as imagens verbais fazem parte de um projeto de revitalização da palavra poética, que denota o fascínio do poder da imagem e da técnica do olhar enquanto se investiga sobre a matéria de que os poemas são feitos, as suas unidades de sentido, as palavras, cuja definição acaba por se fundir, ou se confundir, com o próprio conceito de imagem. Eis as primícias de uma nova poética do espaço, por assim se avivar, em que a linha tênue entre imagem poética e imagem cinematográfica é persistentemente reconstituída pelo poeta, numa diluição amalgamatória do significante material de superfície e do sentido imaterial profundo. O poeta, aliás, enquanto agente escultor do movimento, que caminha num espaço tecido por tempos que vão se sobrepondo: esse espaço temporaliza-se, estratifica-se, e o que está à vista evoca uma outra rede de imagens, e assim sucessivamente, num movimento contínuo que fixa espacialmente os estratos oriundos da relação com o tempo. Camadas, sobreposições, sedimentos. Planos, sucessões, epigenesia. Na poesia, no cinema. Em que tudo o que é profundo se revela à superfície.

© 2013 Manaíra Aires Athayde.