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Testamentos Literários: A Difícil Arte da Mediação
Ricardo Namora

CLP | Universidade de Coimbra

Uma das coisas mais importantes que a Europa ocidental herdou do Direito Romano foi uma preocupação rigorosa com o trânsito material que a posteridade inevitavelmente produz. Por causa dos romanos, é hoje bastante normal que coisas como as “disposições testamentárias” tenham, atrás de si, um longo e complexo edifício de leis, imposições e tomos de jurisprudência, usados tipicamente para garantir a execução de uma vontade. Em muitos casos, este emaranhado jurídico tem por objecto um património físico e material, de tamanho bastante variável, que era de alguém e transita, por morte deste, para outro (ou outros) alguém. Esta construção é facilitada pela noção de “propriedade”, à qual se junta a de “posse” e ainda a distinção crucial entre “domínio público” e “esfera privada”. Esta última distinção é instrumental para a compreensão das diferenças que existem entre aquilo que descrevemos como as “pessoas comuns” e aquela estranha subespécie humana constituída pelas pessoas que produzem coisas – inventos, artefactos, máquinas ou poemas (desse ponto de vista, parece existir uma disparidade substantiva entre o acto de comprar um automóvel e o de escrever meia dúzia de poemas). Tanto num caso como no outro, todavia, o suporte legal garante que existam sítios (neste caso, tribunais) em que conflitos de interesse podem ser dirimidos, de forma mais ou menos razoável e sobre um entendimento não polémico do “espírito” ou das “intenções” do testador. Na vida real, contudo, esta linha de demarcação não existe, propriamente falando, e isso leva a que, quando o testador é também um autor, certas dúvidas angustiantes se imiscuam gradualmente na actividade dos agentes que têm a seu cargo a execução testamentária.

A questão (e o estatuto) da autoria não levanta problemas de maior no contexto da lei, e muitas coisas estão previstas na legislação, como de resto acontece com milhares de outras possíveis ocorrências, e isto passa-se justamente porque uma das funções do legislador é a de criar uma ontologia específica para cada figura jurídica. Neste sentido, autores de poemas são diferentes de criadores de engenhocas, de mestres-sapateiros e de artesãos que fazem papagaios de papel (a comparativamente tardia criação da noção de “propriedade intelectual” contribuiu decisivamente para esta espécie de emancipação). No terreno da edição textual, no entanto, a posteridade de uma obra parece, nalguns casos, uma fonte de problemas complexos, perturbantes e nada fáceis de resolver. Se é relativamente consensual que uma esmagadora maioria dos autores de textos literários deixaram, por um lado, uma obra publicada completa ou, na pior das hipóteses, indicações precisas para a sua construção, não é menos verdade que existe um elenco de casos marginais que perturbam a normalidade íntegra daquele conceito. Não há nada, no entanto, que nos garanta que, nos primeiros casos, o autor desejasse mesmo aquilo que deixou escrito em testamento literário (em certas situações, o autor pode ser o pior falsificador das suas próprias intenções, e até de forma deliberada). Como não há, em relação aos segundos, a garantia de que, à falta de um testamento, a sua obra não venha a ser tornada pública de forma igualmente íntegra e racional – embora tenhamos que entender esta integridade de forma provisória, hermenêutica e radicalmente transitiva. Apesar de as convenções, os usos e as formas de manejo de casos particulares omissos ou equívocos sejam activados de forma análoga à dos casos normais, existem alguns contextos em que a realidade perturba as boas intenções dos executores de modo sistemático e desafiante.

Em La Medición Editorial – Sobre la Vida Póstuma de lo Escrito, Jerónimo Pizarro debruça-se sobre dois casos paradigmáticos da difícil operacionalização da vida póstuma da obra literária, exercida in absentia por uma série de críticos, filólogos, especialistas em exumação, arqueólogos e editores. Os casos de Fernando Pessoa e de Macedonio Fernández são, na sua narrativa, estudos de caso cruciais para a sua noção de edição textual como um processo colectivo de reordenação da disparidade intrínseca de certos monumentos a que por vezes nos referimos como “a obra literária”. Dividido em quatro partes, dedicadas a “obras”, “autores”, “textos” e “originais”, o livro de Pizarro gira à volta de uma peculiar retórica de auto-justificação do esforço de edição textual em contextos manifestamente fronteiriços. A primeira parte refere-se à edição das obras de Fernando Pessoa, e aos vários acidentes históricos que a constituíram, desde as primeiras edições até às mais recentes, detendo-se em questões hierárquicas, genéricas e de organização que a famosa arca de Pessoa (um tipo de testamento caótico, gigantesco e muito problemático) obriga, de tempos a tempos, a reformular. A segunda parte tem a ver com o modo como Adolfo de Obieta editou a obra do pai, o escritor argentino Macedonio Fernández (1874-1952), em clara contradição com outras edições e, nomeadamente, a de Borges, de cujo pai Macedonio era grande amigo. Neste caso, o problema não é, como no de Pessoa, a dispersão fragmentária ou a heteronímia, mas a construção de um autor através de uma disposição particular do conjunto dos seus escritos. A terceira parte, dedicada aos textos, dá conta de como as edições críticas da “Colección Archivos” – uma famosa colecção de autores ibero-americanos fundada em 1984 e patrocinada pela UNESCO – se prestam a uma série de problemas que são comuns ao esforço de editar: o equilíbrio ténue entre compilar, estabelecer e comparar, a tensão entre texto estabelecido e anotação ou certas mudanças de paradigma hermenêutico entre edições, por exemplo. A quarta parte, por fim, refere-se aos originais, e àquilo que Pizarro classifica como “a supersticiosa ética das edições «genéticas»”, numa defesa da impureza constitutiva da interpretação.

A destreza bibliográfica e o conhecimento de especialista de Pizarro são, neste livro, auto-evidentes e usados com uma prodigalidade algo exagerada, tendo em conta o contributo decisivo do autor para a edição e o tratamento do espólio de Fernando Pessoa, uma actividade em relação à qual ele é uma referência incontornável. A defesa de Pizarro da edição crítica como uma forma de interpretação colectiva, caracterizada por uma complexa concatenação de finos equilíbrios e de distinções minuciosas é, em muitos casos, ao mesmo tempo acérrima e redundante (aliás, na senda de outros textos auto-remissivos e de auto-justificação que lhe têm granjeado uma pronunciada fama crítica). No entanto, a retroversão insistente que Pizarro leva a cabo (tipicamente da prática em direcção ao putativo suporte teórico) nem sempre consegue os efeitos desejados. Isto acontece por vários motivos: desde logo, pela escolha dos autores, que são pronunciadamente paroquiais e idiossincráticos (há muito mais vida, quando falamos de interpretação, para além de Barthes, Foucault ou Umberto Eco); depois, pela falta de uma discussão verdadeiramente meta-teórica sobre os argumentos desses mesmos autores (por vezes fica-se com a sensação de que eles foram tomados de empréstimo, de modo asséptico, para se tornarem meros figurantes em torno a um outro actor principal); e, por fim, pela inabilidade que o autor parece ter para compreender que a actividade a que se dedica, como tantas outras em tantos contextos, se auto-justifica pelo facto de ser bem ou mal feita – não exige, talvez, que seja preciso pedir desculpa de cada vez que se reescreve a narrativa de Pessoa porque se descobriu o seu enésimo projecto editorial. Evidentemente, a nossa condição de posteridade permite-nos fazer coisas e tomar decisões cujas consequências podem ser cruciais para o entendimento futuro deste ou daquele autor (no caso de Pizarro, talvez ele se sinta um estrangeiro ou um usurpador, pelo facto de ser um dos mais proeminentes editores de um autor de outra língua e de outro país e que, além de tudo, parece hoje ser o grande escritor da história de Portugal) – mas isso não implica necessariamente uma cadeia de justificações, de explicações sobre justificações, e de teorias sobre práticas que têm sido, salvo melhor opinião, levadas a cabo com rigor, diligência e um tremendo espírito de missão. Neste sentido, a edição textual é também uma metonímia testamentária: ela vive (e sobrevive) no futuro, e dispensa perfeitamente certo tipo de declarações de inocência – por mais bem fundamentadas que estas sejam.

Criar um corpus literário, tratá-lo e organizá-lo é, por inerência, um exercício parcial, incompleto, unilateral e em permanente actualização. Disto segue muito pouco, excepto se aceitarmos noções duvidosas como as de “sobre-interpretação”, “violência sobre o texto” ou “infidelidade” (à intenção do autor ou aos originais). Ainda assim, e se imaginarmos que, de cada vez que tomamos opções editoriais, estamos a exercer um tipo de mutilação imperdoável sobre objectos que tendemos a considerar à luz de conceitos nebulosos como os de “origem”, “integridade” e “coerência”, não existe, em rigor, um tribunal de adjudicação sobre essas mesmas opções. A única coisa que realmente resta, nesse contexto, é a discussão inter-pares que determinadas opções editoriais convocam: em relação a isto, Pizarro está absolutamente certo quando descreve a edição textual como um esforço colectivo e contínuo. A questão é que, muitas vezes, o fantasma de Ossian (e dos seus poemas épicos Temora e Fingal, “descobertos” por James McPherson, e que eram leitura de cabeceira de Napoleão), ainda paira sobre as cabeças de muitos excelentes editores de texto (como é o caso incontestável de Pizarro). Na página 24 de La Mediación Editorial, escreve Pizarro que “um editor produz uma segunda obra depois de ler a primeira e de tomar decisões críticas a respeito de um certo número de opções”. Não estou, no entanto, muito seguro de que, quando saio do barbeiro depois de cortar o cabelo e de fazer a barba, eu seja necessariamente uma pessoa diferente: continuo a ter um corpo, sobre o qual posso construir várias personae distintas, conforme vá jantar fora ou passear o cão. Pessoa, também, já tem o seu corpo, e mesmo que alguém lhe tenha vestido o casaco ao contrário ou colocado os óculos na nuca, os editores do presente (e os do futuro) terão por certo uma ideia de como consertá-lo.                   

© 2013 Ricardo Namora.