O Elástico da Lira ou Outros Lirismos nas Obras de Fernando Aguiar e de Manuel Portela |
Entre outubro de 2012 e outubro de 2013 a Casa da Escrita, em Coimbra, recebeu exposições retrospectivas de reconhecidos nomes da Poesia e da Arte Experimental Portuguesa. O ciclo, batizado de «Nas Escritas PO.EX» e comissariado por Jorge Pais de Sousa em parceria com o projeto «PO.EX’70-80: Arquivo Digital da Literatura Experimental Portuguesa», exibiu exposições individuais de Ernesto Melo e Castro, António Barros, Silvestre Pestana, Fernando Aguiar e Manuel Portela [1 ]. Tendo em vista que na edição anterior da revista MatLit apresentamos uma recensão sobre as três primeiras exposições («PO.EX em EXPO»), até então as que haviam sido realizadas, agora dedicar-nos-emos às duas subsequentes, que inclusive são os dois projetos expositivos que mais dialogam entre si em todo o ciclo, sobretudo pela preocupação com a plasticidade e com a materialidade das obras (e a capacidade de com elas proporcionar experiências sinestésicas), e por suscitarem importantes reflexões sobre a relevância do ativismo a partir de críticas sociais e manifestações políticas sob diversas formas de intervenções artísticas, sem que se comprometa, todavia, o compromisso estético da arte como plano primeiro.
Figura 1. «Frágil»(180 x 120 cm). «Portugal neste momento fragiliza por ser frágil», afirma Fernando Aguiar em entrevista, onde ainda diz ter a intenção de querer retratar da mesma maneira outros países «cujas dificuldades económicas os tornam bem negros, como o fundo da tela exposta». |
A ver, por exemplo, o «frágil frágil frágil frágil frágil frágil frágil frágil frágil frágil frágil frágil frágil frágil frágil frágil frágil frágil frágil frágil frágil…»: 103 frágeis, ao todo. Palavras inteiras ou fragmentadas ao longo do percurso, em que o território de Portugal vai sendo composto por uma fita adesiva utilizada em caixotes que transportam objetos frágeis. «Frágil» (2010/2013) é um dos trabalhos da exposição Ex.Po / Po.Ex 1982-2012, que revisita uma obra que pouco tem de frágil: numa mostra pujante e consistente, Fernando Aguiar apresenta parte de suas quatro décadas de carreira reunindo trabalhos poéticovisuais, plásticopoéticos ou scannerperformativos. Palavras compostas como parece ser a sua obra, em se tratando de um artista que gosta de justaposições.
Na Casa da Escrita, em Coimbra, entre 07 a 28 de junho de 2013, o que se pode encontrar é mesmo isto: um artista que, de camada em camada, na sua possível interação digital está sempre a passo da interatividade analógica.
Figura 2. Fernando Aguiar e a intervenção que propôs na Biblioteca da Casa da Escrita, onde cada pessoa que lá entrasse era convidada a escolher um pedaço de papel com versos e reproduzi-los numa grande cartolina branca, com a qual seria fotografada depois. O artista conta que o projeto inicial era bastante diferente; consistia em apresentar, no único painel eletrônico da cidade de Coimbra, três sequências de sete pequenos poemas da série inédita «Um fio de perplexidade». «O projeto, no entanto, foi considerado demasiado complexo tecnicamente, e acabou por não passar disso mesmo, e de possível interação digital passou a interatividade analógica», comenta Aguiar. |
É que a matéria é aqui também valorizada como unidade fundadora de sentido, enquanto são construídas ligações entre as imagens verbais e a técnica do olhar, usufruindo-se do poder iconográfico como forma de diagnosticar superfícies materiais e delas extrair sentidos imateriais latentes. «Sempre considerei que o poema visual deveria ser uma obra que se dissesse através de uma relação íntima entre a forma e o conteúdo, e que essa seria efetivamente uma obra conseguida. Tenho, geralmente, a preocupação que os meus trabalhos contenham essa dualidade que se complementa e completa. Isto é, que não representem unicamente uma forma (des)agradável ao olhar e a uma apreensão imediata, mas que signifiquem algo para além disso», afirma Aguiar.
Figura 3. «Calligraphy #2» e «Calligraphy #1» (73 x 100 cm). |
É o caso, por exemplo, da série «Calligraphy» (2006), em que o estudo do movimento torna-se enigmático numa obra composta por duas fotografias onde podemos questionar o segundo plano em função da disposição das mãos no primeiro plano: o fundo tanto pode ser o céu quanto uma superfície qualquer em azul celeste.
No entanto, apesar de geralmente haver em vários de seus trabalhos essas superfícies emblemáticas, vale ressalvar que em Fernando Aguiar tudo o que não foi não é. Por isso, em Ex.Po / Po.Ex 1982-2012 os trabalhos são assumidos em sua individuação, no espaço necessário de respiração para cada época e contexto, mas a forma resoluta com que as obras são encadeadas acaba por criar uma maneira curiosa de as próprias obras revisitarem-se umas às outras, estando dispostas a uma relação aberta com o espetador e onde o diálogo é defronte, é certeiro e assertivo. A consonância coletiva revela a estética criativa, o rigor formal e a exigência técnica que encontramos na poética de Aguiar, em todas as formas expressivas e abrangência de linguagens a que o artista se dedica, desde a performance à pintura, passando pela colagem, pela instalação e pelo livro-objeto. Percurso consistente na plasticidade que recupera luzes das cores que gradativamente a vida vai nos relevando ao passo que nos vai revelando.
Figura 4. Maquete do «Soneto ecológico» (164 x 56 x 20 cm), concebida em 1986/1987. |
Figura 5. Imagem da obra em 2008, no Parque do Soneto, em Matosinhos. |
Pois, em Fernando Aguiar a plasticidade é mesmo essa forma peculiar de lidar com a passagem do tempo, como bem podemos observar na obra «Soneto ecológico» (1986/1987), em que várias espécies de árvores foram plantadas no Parque do Soneto, em Matosinhos, seguindo uma ordem de composição do artista. Para mais, é interessante observar como essa obra «ecológica» assoma-se à plasticidade de Aguiar, em muito relacionada ao plástico e a outros elementos de difícil decomposição na natureza.
Aliás, a utilização de materiais de fácil descartabilidade mas de forte resistência não é apenas uma escolha estética; está relacionada à conceção de permanência na e da efemeridade intrínseca às suas composições, sobretudo resultante do exaustivo trabalho de investigação sobre a performance, a que se dedica há trinta anos, explorando de que maneira ela pode ser transformada a partir da materialização. É o caso, por exemplo, de pinturas feitas a partir de fotografias de performances poéticas, que depois de impressas (algumas com impressões sobrepostas, resultantes de sobras da tipografia) e trabalhadas no Photoshop acabam por dar origem a novas peças, numa recriação de um instante do ato performativo. Uma obra sua, portanto, muitas vezes é transformada ou materializada em outras formas e de outras formas, resultando por fim em novos trabalhos, uma recriação ou mesmo revisitação à obra inicial.
Figura 6. «Tokyo» (2003/2004, 130 x 195 cm). |
A obra de arte é, senão, matéria da vida, em toda a sua condição de maleabilidade e transformação, cuja propriedade maior é a de adaptar-se sob distintas formas. E nessa «plástica» plasticidade encontramos a própria noção de obra em Fernando Aguiar, afinal, plástico é tanto o que pode moldar como também o que pode ser moldado, tanto é o que pode adquirir como receber diferentes formas pela moldação ou pela modelação. Em seu trabalho, a materialidade é assumida sem ser suplantada pela abstração, ou seja, a apreensão estética não é relegada a segundo plano e cria cadência com o arcabouço ideológico.
Figura 7. «Ensaio para uma nova expressão da escrita nº 278» (65 x 50 cm). |
Figura 8. «Ensaio para uma nova expressão da escrita nº 237» (65 x 50 cm). |
É o que presenciamos, não obstante, em trabalhos como a série «Ensaio para uma nova expressão da escrita» (1982/1983), «Construção do romance musical» (2006) ou «Contra-texto ou anti-romance com 14 personagens» (2004/2013). Nesta última obra, aliás, e que já vai em sua terceira versão, distinta em formato e expressividade, vemos o «antropomorfismo aberto» (na expressão do próprio artista) de que falávamos, que permite uma multi-plicidade de interpretações a partir, inclusive, de corpos que lembram gaiolas e cuja presença condiciona em vez de configurar a abertura desejada. Afinal, a ausência acondiciona, de um modo ou de outro, a presença, e não a falta.
Figura 9. «Contra-texto ou anti-romance com 14 perso-nagens» (2004/2013) ao centro, e em frente «Frágil» (2010/2013). Na parede esquerda, dois dos três quadros que compõem «Feelings» (2002). |
O mais surpreendente em Fernando Aguiar é que a vivência material muitas vezes serve como preâmbulo para uma longa investigação sobre como a materialidade se comporta quando sua origem é imaterial e advém de uma técnica efémera, como ocorre na série «Scanner-Poems», poemas criados diretamente no scanner e gravados, de seguida, no computador. Interessa ao artista elucubrar (e aqui lembremos dos videopoemas de 2003-2006 apresentados na exposição, dentre eles o que Fernando Aguiar apresenta um alho no lugar do olho) a interação entre os materiais «materiais», tais como os recorrentes plástico, madeira e pedra, e os materiais «imateriais», como o vídeo ou a fotografia digital, «provavelmente os novos perenes e futuros tradicionais», como afirma em entrevista.
Figura 10. Fernando Aguiar numa performance para video-poema da Seleção 2003-2006 apresentada na Casa da Escrita. |
É nesta mesma entrevista que Fernando Aguiar revela que «muitos poetas e artistas contemporâneos ignoram o meu trabalho por levar o rótulo de “poesia visual” (se o designasse por “Language Art”provavelmente teria uma maior aceitação e seria mais considerado)» e que «poderia participar em mais festivais de poesia ou em mais antologias se não fosse “visual”, assim como teria participado em muitas mais exposições coletivas se o meu trabalho não fosse precedido da rotulação de “poeta”». Ainda completa: «Os críticos, sejam eles os literários ou os de artes plásticas, têm tido uma posição mais ou menos comum em relação à poesia visual: não conhecem, não procuram entender e, portanto, não gostam».
Se por esta perspetiva a conjugação entre poesia e artes plásticas parece ter causado, pelo menos em Portugal, privações ao artista, que ressalva ser «mais conhecido e reconhecido no estrangeiro», por outro é este mesmo enviesamento entre poesia e artes plásticas que acaba por compor o que podemos chamar de caligrafia de Fernando Aguiar, com todas as suas peculiares marcas criadas num percurso de progresso estético-criativo que não se esgotou, que está sendo constantemente reinventado tendo em atenção (e aqui há alguma intervenção de sua formação em design) as competências técnicas, a capacidade de transmissão de informações e a maneira perspicaz de lidar com as limitações materiais, o que acaba por fazer deste artista um dos nomes da poesia experimental que melhor soube atualizar a sua obra em toda a sua pluralidade e amálgama.
Figura 11. «Construção do romance musical» (46 x 36 x 12 cm). |
Fernando Aguiar é mesmo um artista da proliferação das artes poéticas, cuja poesia dá-se em constante atração pelas outras artes, competindo poeticamente com elas. É o artista da poética letter-press ou da fita tesa-film, ou ainda das telas plásticas. No estado translúcido é que os estratos reiteram o movimento fixado: superfície de impressão, impressão tipográfica, tipografia offset, planográfico. Tudo isto, de fato, na caligrafia que transcende a letra.
Caligrafia transcendente, aliás, que em Manuel Portela tem o seu reparo político-social intensificado. Vejamos, por exemplo, o poema-mural «Cras! Bang! Boum! Clang!», com alargada influência dos grafites ou da chamada arte urbana, ou ainda das histórias em quadrinhos. Projetado em 1988 e pintado em 1995 na parede externa de um edifício escolar (na exposição «escreler» foi apresentado o estudo que vemos abaixo), a obra propõe redimensionar o papel da escola ao pensar a instituição como instrumento de libertação e de aprendizagem, facultando a apropriação das línguas falada e escrita como mecanismo de conhecimento do mundo, ao mesmo tempo que sinalizam a consciência de que a escola, bem como a linguagem, podem ser instrumentos de opressão.
Figura 12. «Cras! Bang! Boum! Clang!», poema-mural projetado em 1988 (imagem; tinta guache sobre papel) e pintado na parede externa do edifício de uma escola em 1995 (400 x 600 cm). |
A linguagem é tratada como uma forma de ação, quer dizer, «eu tomo já a linguagem como conjuntos organizados de instruções, de injunções que nos solicitam e que nos pedem para agir de determinada maneira», como afirma Portela em entrevista. Daí o relevo que os discursos adquirem em sua obra, que está sempre a trabalhar com a composição, a repetição, a fragmentação de diferentes discursos dos mais diversos meios e produzidos com múltiplas intencionalidades, como os discursos da publicidade, da política, da guerra. As obras, assim, revelam a dimensão ativa e social da linguagem, incidindo em como as relações são constituídas através desses discursos e na forma como os discursos posicionam o sujeito em relação aos outros.
Figura 13. «Google Earth: A Poem for Voice and Internet», a mais recente performance de Manuel Portela, realizada em setembro de 2012 em Coimbra. |
Desse modo, a performance acaba por ocupar um lugar de destaque no trabalho de Manuel Portela, que se dedica exclusivamente ao gênero há dez anos e diz que se trata de uma continuação, por outros meios, do trabalho experimental que fazia antes. É uma espécie de inscrição que interpela o sujeito na tentativa de recontextualizar os discursos, tentando chamar a atenção para a natureza da intenção e das estruturas que estão contidas neles. «De certa forma, a performance acabou por ser, para mim, uma forma de ler em público, de ler um voz alta, de dar uma dimensão da presença subjetiva, da presença de qualquer coisa que está pré-constituída na linguagem ou na escrita e que precisa dessa inscrição viva, dessa presença viva do sujeito no momento da decifração», afirma o artista, que apresentou na abertura da exposição «escreler: 1988-2013», que ocorreu entre 13 de setembro e 11 de outubro de 2013 na Casa da Escrita, a performance «escreleituras», onde leu vários de seus textos visuais encenando atrás de uma moldura e acompanhado por uma projeção multimédia.
Figura 14. O vídeo acompanha a leitura feita por Portela, que está atrás de uma moldura. Vários dos textos visuais escritos no início de sua carreira foram depois animados e vocalizados. |
«Numa moldura clara e simples sou aquilo que se vê» é uma frase perfeitamente adequada para compor uma súmula da exposição. É como se das obras de Manuel Portela emanasse essa frase que assinalamos de uma canção dos Los Hermanos, que em nada teria a ver com o trabalho de Portela se não fosse realmente o último verso. Aliás, toda a exposição parece estar sempre a nos pedir uma banda sonora, onde entrariam não somente músicas mas os mais atinados experimentos com o som.
Se repararmos, por exemplo, no quadro «recordação de Portugal» (1994/1995), o título nostálgico que nos remete a toda uma tradição portuguesa (com os seus tais «labirintos da saudade») acaba por ser convertido em ironia quando olhamos atentamente para a tela, em que são pintados, de forma pixelizada, quatro monitores a mostrarem, em cores distintas, uma mesma imagem que lembra Cavaco Silva (então há mais de dez anos no poder como primeiro-ministro e que, dez anos depois, seria candidato eleito à Presidência da República). Logo, a «recordação de Por-tugal» passa de lírica no título para consubstancialmente nociva – a imagem em píxeis acaba por se tornar uma metáfora com a «ampliação» da matéria. Poderíamos encaixar como trilha sonora, nesse caso, desde aquele chiado que os aparelhos televisores fazem quando estão a falhar até «Portugal Radical», dos Ena Pá 2000, com o seu «Não sei o que falar / mas tou farto de vos aturar», ou ainda «Hoje eu acordei feliz», do Charlie Brown Jr., com «Hoje eu acordei para sorrir mostrar os dentes / Hoje eu acordei para matar o presidente». Mas quem na imagem pintada realmente está a sorrir é o espectro de “Cavaco”, com toda a sua imagem mediática.
Figura 15. «recordação de Portugal» (200 x 200 cm). |
Essa ironia também não deixa de estar presente na série «Ó pus» (2001), onde se tenta criar uma estranheza com o próprio ato de se perceber o objeto. Quer dizer, cada uma das seis pinturas é substituída por um texto que descreve a própria pintura, que tem agora que ser imaginada pelo espectador mediante aquilo que lê. E o que lê acaba por ser «a paródia cerebral que se tornou a marca do estilo [desse artista]», como abjura com ironia o texto de «Ó pus 1», ou mesmo a «preocupação com a superfície anódina do quotidiano mais banal», como se afirma em «Ó pus 3». O tom chistoso equilibra a dose de sarcasmo e a série se torna uma análise crítica, fulgurada numa paródia formal, ao rebuscamento da arte, à crítica de arte e ao mercado de arte (no final do texto, apresenta-se o valor do quadro). A ver em «Ó pus 5»: «Esta obra […] revela o realismo pós-conceptual e quase fotográfico da sua terceira fase. […] O enquadramento é o factor essencial na instituição de uma percepção do espaço em deslocação que se epifaniza no objecto mais ocasional».
Figura 16. Montagem com algumas das obras que integram a série «Ó pus» (70 x 95 cm, cada quadro). |
O título «Ó pus» também contracena com o teor antipoético que circunscreve boa parte do trabalho de Manuel Portela. É que sendo opus uma palavra que em latim significa «obra» (geralmente referente à obra de arte), quando transformada em «Ó pus» lida com a ideia de pus, de secreção, então ligada à noção de antilirismo e o seu programa pré-concebido do que não pode estar na obra de arte. Para mais, a palavra opus também é frequentemente utilizada para designar uma composição musical, normalmente de música clássica, e situá-la na data em que foi concebida ou divulgada. É o caso de obras de Bach, Beethoven, Mozart, Schubert e tantos outros que certamente poderiam ter composições a fazer parte de nossa banda sonora ao ver «Ó pus» ou mesmo que poderiam integrar a própria obra.
Não obstante, esse é um dos trabalhos mais representativos desses 25 anos de carreira artística de Manuel Portela, que se misturam com mais de duas décadas de docência na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Grande parte desse percurso, onde as problemáticas estéticas partilham do mesmo cariz das investigações científicas de Portela, desdobra-se sobre a dimensão da presença da leitura na escrita enquanto cerne de seu trabalho experimental e acadêmico, com questões que podem inclusive ser vistas em seu mais recente livro, Scripting Reading Motions: The Codex and the Computer as Self-Reflexive Machines (MIT Press, 2013), publicado na mesma altura da exposição e apresentado pelo autor no dia 20 de setembro, em sessão na Casa da Escrita.
Questões sobre como a leitura escreve a escrita e como ela se torna presente de novo na escrita – num artista preocupado em como «eu releio reescrevendo os discursos dos outros, mas também na forma com eu leio reescrevendo muitas vezes as obras anteriores» – são nucleares nos trabalhos «bê-a-bá» (1996; capa da exposição), «como é que eu gostava que fosse e podia ser» (1995) e na série «seis» (1992/2001). Nesta, são colocadas no chão da sala principal da mostra seis fileiras, cada uma com seis quadros, que apresentam frases ou palavras com diferentes cores, fontes e tamanhos e o subtítulo de cada secção é em si um conjunto de eco aliterante: «sentidos», «águas», «feridas», «logros», «sóis», «sons».
Figura 17. Série «seis» (40 x 30 cm, cada quadro) sendo apresentada pelo artista na vernissage da exposição. |
Para quem já estava a percorrer atentamente a exposição, e depara-se com essas impressões em papel emolduradas em formato 40 x 30 cm e com marcantes bordas negras, acaba por perceber na obra de Portela a metáfora que é o jogo com a moldura, «jogo que é uma luta», como diz na performance «escrileituras».
Figura 19. Na performance «escreleituras», o projeto do poema-mural «Como é que eu gostava que fosse e imaginava que podia ser» (1994, 500 x 500 cm) acabou por ser animado. |
Figura 20. Detalhe da obra. |
«Este é um dos problemas da arte, que é criar uma forma de representar o mundo que permita ver a própria representação e, portanto, permita ver a moldura, permita ver a forma através do qual o mundo se objetifica de uma determinada forma. Obviamente revelar uma moldura é construir outra moldura e, portanto, esse jogo é um jogo de certa forma infinito, porque qualquer perceção cria sempre qualquer coisa que está fora de si e, portanto, qualquer coisa que essa perceção não permite apreender», afirma o artista. Daí não conseguirmos encontrar um olhar que não coincida com o nosso próprio olhar, o que acaba por ser o motor de busca do trabalho de Portela e que justifica por que por vezes a contenção do campo de visão nos faz ficar mais conscientes do enquadramento – afinal, muitas vezes algo é enquadrado não pelo que se quer no enquadramento mas pelo que se quer deixar fora dele.
Essa tensão entre contenção e liberdade é força motriz no trabalho de Manuel Portela, como não obstante vemos em «deferência aquiescência anuência» (1988), «massacre» (1992), «alvo estratégico» (1995) e «tudo tem um preço» (1995). Em obras como estas vamos observar que «Não é por um acaso que muitos dos meus trabalhos são também sobre o alfabeto, e, portanto, pensar o alfabeto como parte desse processo de submissão à ordem da letra, mas ao mesmo tempo como qualquer coisa que tem potencial de libertação, de expressão e que pode ser apropriado, pode ser transformado, pode ser objeto de invenção», ressalva o artista.
Figura 21. «alvo estratégico» (95 x 70 cm). |
Nesse viés se destacam os seus trabalhos performáticos, onde à ironia e ao tom chistoso ou sarcástico junta-se o humor, que gera uma percepção modificada do objeto ao produzir o distanciamento e permite que se perceba a moldura enquanto invólucro dos discursos, que afinal funcionam dentro desses limites. Quando o humor transforma um discurso noutro discurso, seja por oposição, por ironia, por paradoxo, ele possibilita uma gestão das expectativas que desnaturaliza o enquadramento, desfamiliariza-o, podendo assim ser melhor observado e investigado. Podendo assim ser visto. E o que se vê, em suma, na obra de Manuel Portela está na desmistificação da materialidade. Está numa moldura resoluta, mas não menos complexa e inesgotável. Clara, simples: aquilo que se vê (e que se ouve) em profundas superfícies.
Superfícies de contato, não obstante, em que quer o trabalho de Manuel Portela quer o de Fernando Aguiar redimensionam as fronteiras do lirismo (e não esqueçamos que, em sua origem grega, “lírica” era a poesia acompanhada ao som da lira). Quer dizer, esses dois artistas esticam a “lira” em trabalhos onde há a dialética entre palavra e sonoplastia (mais até do que sonoridade), alcançando medidas sensoriais em ligações de sema e soma, de signo e corpo. O resultado são composições onde, curiosamente, as preocupações com as possibilidades matéricas agregam dimensões originais ao debate sobre o posicionamento ideológico do artista e o papel sociológico da arte.
Notas
[1 ] No plano original, havia ainda a exposição de Alberto Pimenta, em janeiro de 2013, e a de Jorge Lima Barreto, em março de 2013; aquela acabou por não acontecer e esta transformou-se numa jornada, entretanto ocorrida entre 12 de abril e 03 de maio de 2013, dedicada à obra musical e musicológica do artista, falecido a 9 de julho de 2011, pouco depois de ser convidado para participar do ciclo. Aguarda-se ainda a realização da exposição de Ana Hatherly, então prevista para encerrar o ciclo.
Texto e Fotos © 2013 Manaíra Aires Athayde.