As Superfícies Raras da Escrita de Ruy Duarte de Carvalho |
1. Introdução
Que a obra de Ruy Duarte de Carvalho se caraterize pela mistura de registos discursivos, géneros literários e campos do saber é algo que a crítica tem sempre sublinhado, ao chamar a atenção para a multiplicidade de práticas artísticas e discursivas que o autor mobiliza nos seus trabalhos [1 ]. Poesia, ficção, ensaio, cinema, desenho, fotografia. Antropologia, história, geografia, geologia. Se enumerar géneros e discursos é teoricamente possível, mais difícil e porém mais interessante é tentar perceber de que forma eles se entrelaçam nesta obra multiforme e o que traz isso, tanto em termos de resultados artísticos como de reflexão teórica, a uma literatura que resiste aos rótulos de género. Neste artigo, focar-me-ei nas relações entre cinema e escrita, mais precisamente, na questão da escrita cinematográfica, que tem uma presença significativa na obra deste autor e que é necessário explorar, uma vez que as relações entre cinema e literatura podem ser assumidas como modelo, entre outros possíveis, dos cruzamentos discursivos que perpassam, estruturando-a, toda a obra deste autor. Ou seja, a presença do cinema na escrita de Ruy Duarte é muito mais do que um tópico interessante para os críticos: ela constitui a concretização de problemáticas que atravessam toda a sua obra e que convidam o leitor que dela se queira aproximar a adotar uma abordagem intermedial e transdisciplinar.
2. Sinais de cinema
Em 1980, Ruy Duarte publicou o seu quarto livro de poesia, intitulado sinais misteriosos… já se vê… O livro, conforme a indicação que encontramos na folha de rosto, é composto de sete textos e dez desenhos de referências mumuíla [2 ]. Os desenhos foram feitos a partir de fotografias do próprio autor, de Ruth Magalhães e de João Silva. Devido a esta significativa componente gráfica, realçada já no desenho da capa, que representa uma mão no ato de traçar com lápis os traços finais de uma figura feminina, bem como ao formato das folhas, largas e compridas, o livro assemelha-se justamente a um álbum de desenho.
Porém, a presença da visualidade no livro não se limita a este aspeto, como percebemos ao ler a segunda epígrafe, logo a seguir à folha de rosto, que nos reporta para as conhecidas palavras de Herberto Helder do texto de Photomaton & Vox intitulado «(memória, montagem)»: “Depois fundou o modelo: os poetas futuros com máquinas de filmar nas mãos”. Esta epígrafe, remetendo para o pensamento de um poeta que, um ano antes da publicação de sinais, publicara um livro em que defendia a possibilidade e até mesmo a necessidade de aproximar o cinema da poesia, e de fazer poesia com as imagens, denuncia desde logo a natureza das problemáticas que investem o projeto poético de Ruy Duarte de Carvalho. Com efeito, não só o primeiro texto do livro, que não tem título, se apresenta como uma declaração de poética que expõe a posição do autor em relação a distintas possibilidades do olhar, como também a quarta secção intitula-se precisamente «cinemas».
Os poemas de sinais foram compostos entre 1977 e 1979, anos em que Ruy Duarte estava empenhado nas filmagens dos documentários da série Presente Angolano, Tempo Mumuíla, produzidos para a televisão angolana com o intuito de dar a conhecer aspetos da realidade vivida pela população Mumuíla, numa época em que a construção de uma nova nação tornava imprescindível o conhecimento mútuo por parte dos povos e das comunidades que compunham o país. No seguimento desse projeto surgiria também um filme de ficção, Nelisita, cuja narrativa se baseia em dois contos de expressão oral nyaneka, incluídos no livro Cinquenta contos bantos do sudoeste de Angola, de autoria do Pe. Carlos Estermann. Um destes contos, narrado por António Constantino Tyikwa, fornece também a base para um poema de sinais, incluído na secção “estórias”.
A poesia de sinais é por isso marcada pelo trabalho no cinema que Ruy Duarte ia desenvolvendo naqueles anos, e a sua especificidade dá conta precisamente do tipo de cinema por ele praticado. O recurso ao testemunho, que atribui a palavra ao observado, constituía uma novidade para uma época em que o cinema dito etnográfico – com o qual, importa sublinhar, Ruy Duarte nunca se identificou, muito embora advogasse para o cinema africano alguma familiaridade com a antropologia (e vice-versa) – sofria as críticas dos cineastas africanos precisamente porque, na visão deles, reproduzia as dinâmicas da opressão colonial, produzindo um discurso sobre os africanos que nunca contemplava a opinião deles. Nos filmes de Ruy Duarte, pelo contrário, os sujeitos envolvidos no filme são encarados justamente enquanto sujeitos, e não apenas enquanto objetos de observação: “Não eram apenas os corpos e os objectos que nos interessavam. Logo de início foi dado grande destaque à palavra e ao testemunho” (Carvalho, 2008: 439).
Esta caraterística do cinema de Ruy Duarte ajuda a perceber o alcance destes procedimentos quando utilizados na poesia daqueles anos, nomeadamente na de sinais, que se torna especialmente interessante se confrontada com afirmações deste tipo: “Assim é que, quanto ao cinema, me parece tratar-se de uma via conotada […] com a expressão dramática. Da mesma forma que a pintura, aliás. O desenho, por outro lado, e a poesia, parecem-me estar fundamentalmente do lado da expressão lírica” (Carvalho, 2008: 344). A natureza das dinâmicas ativadas pelo encontro entre a dimensão dramática do cinema e a dimensão lírica dos desenhos e dos poemas é, portanto, uma das questões levantadas por «cinemas» que importa desenvolver. Mas, primeiro que tudo, importa saber de que cinema fala Ruy Duarte de Carvalho.
3. Os desafios da visão
O poema de abertura organiza-se à volta de quatro enunciações, que constituem uma espécie de declaração de poética, incidindo em objetos e motivos que remetem para o domínio do visual, como o espelho, a cópia e a lente. O conteúdo delas pode ser resumido a dois pontos centrais: em primeiro lugar, o espelho não é apenas cópia, evidentemente invertida, de algo, uma vez que possui “um degrau de invenção”, que leva o poeta a perguntar se “não será do espelho que o segredo vem”. De facto, as imagens devolvidas pelo espelho, “embora rigorosa a posição que ocupam, são outro clima, já” (Carvalho, 1980: 9). O espelho é assim contraposto à lente, que tem aqui, como veremos em seguida, uma conotação ambígua, se não mesmo negativa.
As duas últimas afirmações, que entram já com decisão no campo da reflexão sobre o olhar cinematográfico, merecem ser reproduzidas na íntegra:
– o que está por detrás é o que está à vista. a clareza advém da relação, da rapidez e da extensão da imagem. Jamais do esforço para ver mais a fundo. a lente aumenta, isola, destrói a conjunção entre o que visa e a cerca.
– contra o grande plano, pela profundidade de campo, de forma a conseguir o mesmo que Tati, «(...) car, si des films habituels, on imagine toujours les marges, l’immense étendue de ce que la camera ne montre pas, ̶̶ dans Playtime on ne sent riens déborder l’ecran; tout est lá, dans le fouillis savant de ces longs plans d’ensemble, (...)». (9)[3 ]
Neste texto introdutório, as referências a um certo tipo de visão e de opções cinematográficas servem, primeiro que tudo, a definir o ponto de vista do autor relativamente não só à poesia e ao cinema, mas, de uma maneira mais geral, a uma forma de habitar o mundo e de olhar para ele. Ora, o que está implícito na primeira afirmação é uma tomada de posição contra o exercício hermenêutico, que, numa lógica que privilegia o inteligível em detrimento do sensível, busca atingir uma presumível essência das coisas, desprezando as suas aparências. As ligações entre as coisas, atuando no exterior delas, também são desprezáveis. O que se defende aqui é exatamente o oposto: o pormenor, se isolado do seu contexto, se tomado em consideração fora das relações que estabelece com os objetos que o rodeiam, não tem qualquer sentido. Por isso, o poeta declara-se ainda a favor da profundidade de campo, que requer a procura da distância certa entre a câmara, o objeto enfocado e o que está por detrás deste, e que permite tomar planos diferentes na mesma cena, dando relevo à simultaneidade e à complexidade do real. Poeta de paisagens, Ruy Duarte de Carvalho mostra aqui a sua predileção pela visão global, que não exclui a atenção ao detalhe, mas busca integrá-lo num conjunto maior, que é justamente o da paisagem, para cuja perceção concorrem tanto o intelecto como a sensibilidade.
A profundidade de campo, técnica privilegiada por aqueles realizadores que, em linha com o pensamento de Bazin, defendiam, na época em que a questão surgiu com força, um cinema de mise-en-scène por contraposição ao cinema de montagem, permite não só ganhar a consciência das relações entre as coisas e as ações, como deixa também ao espectador a tarefa de construir os significados, num esforço de visão/leitura por vezes notório – pense-se no exemplo apontado por Ruy Duarte, o de Playtime, onde mesmo acompanhar os movimentos das personagens é por vezes difícil, além de cansativo –, que o leva a reconhecer no filme uma cópia do real, não por se tratar de um realismo mimético, mas porque da experiência da realidade este tipo de cinema partilha aquelas caraterísticas já indicadas: complexidade, profundidade espacial, simultaneidade, numa poética que privilegia o excesso (cf. Conclusão) em detrimento da simplificação operada por um cinema que, por assim dizer, leva o espectador pela mão, impondo-lhe o sentido.
Esta conceção da visão poderá talvez dar conta da preferência do poeta pelo espelho mais que pela lente, como lemos na segunda proposição do texto: “ ̶ um espelho é um portal de trans-fe/parências, as coisas invertidas, / entre si, embora rigorosa a posição que ocupam, são outro clima, já. / um degrau de invenção, que outros espelhos haveria ainda? usamos / lentes, sempre, para aferir sinais, mas não será do espelho que o segredo vem?” (Carvalho, 1980: 9). Se a lente altera a imagem deformando-a, a função do espelho é tornar a realidade numa cópia estranha a si mesma. Neste sentido, o espelho assemelha-se ao cinema, na medida em que ambos, ao refletirem a realidade, produzem imagens que se caraterizam justamente pela ausência do real nelas e pela distância que as separa dos objetos dos quais surgiram: “il cinema in sé non ha niente da dire sulla realtà se non che è impossibile una sua riproduzione, dal momento che proprio quando esso sembra aderirle perfettamente riproponendola apparentemente identica la nostra fruizione ci porta a leggerla in termini di ‘come se’” (La Polla, 2000: 264). Ao observar uma imagem no ecrã ou no espelho, a diferença entre real e virtual, ao invés de se esbanjar, radicaliza-se, pois a imagem apresenta-se enquanto duplo, cópia que dá testemunho, como lemos no primeiro enunciado do poema em questão, do “impalpável corpo da paisagem. / presente mas distante: inacessível” (Carvalho, 1980: 9). Por isso, o segredo que Ruy Duarte de Carvalho descortina no espelho deriva da sua capacidade de produzir uma imagem ao mesmo tempo idêntica e oposta ao original, e nisso assentará talvez a essência da imagem e da poesia que com esta se faz: uma cópia perturbante do real, simultaneamente familiar e estranha (unheimlich), que interpela o sujeito como um sinal à vista, porém misterioso.
A partir desta ideia do paralelo entre cópia e imagem cinematográfica, é possível ler a secção intitulada «cinemas», que se abre com quatro imagens emolduradas de um homem, às quais se substitui progressivamente o seu retrato: se no primeiro quadro temos apenas a imagem, no canto inferior direito da segunda começa já a aparecer um bloco de desenho, que na terceira ocupa metade do quadro e na quarta acaba por substituir-se inteiramente ao mesmo (Fig. 1). A progressiva substituição da imagem de partida pelo desenho, que dela não se diferencia a não ser pela moldura com as argolas típicas de um bloco, funciona como uma myse en abime dos procedimentos empregados pelo autor ao longo do livro (lembre-se que os desenhos são feitos a partir de fotografias) e, sobretudo, em «cinemas», onde a poesia pressupõe a imagem cinematográfica, tal como o desenho pressupõe a imagem fotográfica.
Nas páginas seguintes, outra imagem do mesmo sujeito é recortada e sucessivamente (re)composta numa imagem final, acompanhada pela didascália: “falou!” (Fig. 2), o que sugere que essa personagem coincida com a voz narrativa (porque de uma narração se trata) do único poema desta secção [4 ], que começa com uma indicação explicitamente cinematográfica: “grande plano, boca a dizer, síncrono” (Carvalho, 1980: 45). O grande plano, criticado no poema introdutório, serve aqui para focar o sujeito, que narra acontecimentos do passado, relativos ao inexplicável aparecimento de mulheres que surgiam ao lado de termiteiras e com elas se confundiam. A ausência das imagens, relegadas a um tempo passado, é compensada pela presença do sujeito que narra a história delas, da qual foi testemunha, sugerindo que a sua precariedade era resultado da precariedade do olhar: “durou enquanto dura uma visão. depois de cada vez que o olhar se interrompia, normal pestanejar de olhos atentos, no lugar de uma mulher ficava um morro, de salalé igual aos outros todos, e assim no sucessivo” (45).
A segunda parte do poema abre-se com um plano diferente: “plano geral, morros de salalé, voz off”. O discurso é feito agora no tempo presente, e é por isso que a câmara foca os objetos, ou seja, os morros de salalé. Do sujeito da narração ouvimos, ou melhor, lemos apenas a voz, que nos revela que “no campo agora há muitas termiteiras que antigamente não se viam lá. mas delas ninguém sabe as que a visão deixou” (45). A visão contribui, aqui, para a criação do mito, da lenda, das estórias que estruturam as vidas das pessoas, condicionando o seu olhar e modelando as paisagens. Assim, a paisagem desértica, com os seus morros de pedra e de salalé, adquire novas leituras em virtude da visão e das narrativas que brotam dela: “mas surgiram depois estas mulheres e as termiteiras foram abaladas na sua paz de coisa sem leitura. e quando se dizia – uma mulher, ali – era impossível não olhar também para a termiteira que lhe estava ao lado” (45). Porém repare-se que é a palavra que torna possível este novo olhar: as termiteiras não mereciam ser lidas, isto é, observadas e interpretadas, por serem algo comum e, enquanto tal, insignificante no dia-a-dia dos habitantes daquelas zonas, até que alguém (“de repente um de nós disse – uma mulher, ali”) viu, pela primeira vez, numa espécie de alucinação, as mulheres-morro. A partir daí, uma nova visão – aquela a partir da qual se formam as paisagens, enquanto territórios onde a natureza é trabalhada, física e simbolicamente pelos homens que as habitam – vai ganhando forma e vai alterar para sempre a perceção desse espaço.
O poema conclui-se com um “plano geral, morros de pedra, silêncio”. Os eternos morros de pedra substituem-se aos fugazes morros de salalé, sujeitos a serem destruídos pela chuva e pela ação do tempo, que, como lemos na conclusão do plano anterior, “passa, afinal, e passará quem guarda esta memória” (45) [5 ]. Os planos gerais não indicam ao leitor/espectador o caminho para a interpretação, tal como acontece aos homens que observam as mulheres-morro sem poder deixar de olhar para as termiteiras ao lado delas e acabando por confundir umas com as outras – as cópias com o original, a visão com a realidade. É o falhanço do exercício hermenêutico – falham as interpretações, ficam as imagens e as histórias, ou as histórias de imagens que já não existem ou que deixarão de existir assim que não houver ninguém capaz de rememorá-las. E fica a narrativa dessas visões, num texto que surge na encruzilhada das linguagens, onde o mistério que envolve o aparecimento das mulheres-morro não é sujeito a especulações, mas sim preservado na sua impenetrabilidade. Assim, o que a poesia aprende de e propõe nesta experiência visiva e visionária é a força da imagem naquilo que ela tem de incompreensível.
O poema surge, portanto, na articulação do tempo e do movimento cinematográficos com o terreno mítico da poesia. Retomando na escrita o método de recolha de testemunhos orais que andava a fazer naquela época, o poeta cria um mito – que, no pensamento dele, coincide com a poesia –, ou seja, cria poesia própria da mesma forma que, no seu trabalho como cineasta, recolhia a dos outros. Assim, cinema, poesia e antropologia, para lá das respetivas especificidades, encontram-se e cooperam num terreno e num exercício comum, pois é precisamente nas fontes da tradição oral que Ruy Duarte encontrara e voltaria a encontrar nos anos seguintes material e sugestões para a sua própria produção poética [6 ].
Para concluir, vejamos rapidamente de que forma se concretizam as premissas que encontrámos no poema inicial. O “impalpável corpo da paisagem. / presente mas distante: inacessível” (Carvalho, 1980: 9) é aqui representado pelos morros, intocáveis – os de salalé – e impenetráveis – os de pedra. Ao plano geral, enquanto visão de conjunto que exclui a atenção ao detalhe, corresponde, na arquitetura do poema, a opção por uma narração despojada de conotações subjetivas, pois a voz narrativa fala em nome de uma coletividade (“um de nós disse”) e foca-se na paisagem. E encontramos, por fim, a questão da cópia e do espelho, e do segredo que provém deste, que, apesar de indesvendável, fica na superfície, pois “o que está por detrás é o que está à vista” (9) e é por isso que “ninguém se atreve a destruir alguma [termiteira] para ver de que são feitas lá por dentro” (Carvalho, 1980: 45).
4. O filme d’Os papéis do Inglês
Os papéis do Inglês, de 2000, inaugura o projeto romanesco de Ruy Duarte de Carvalho, que se concretizará numa trilogia intitulada Os filhos de Próspero e composta por As paisagens propícias (2005) e A terceira metade (2009). O romance relata a procura, por parte do narrador protagonista, de uma mala com papéis que teriam pertencido a um inglês que se suicidou nos anos 20 em Angola. O narrador vai tecendo a história do inglês com base nos documentos que consegue reunir, mas também e em boa medida construindo a sua versão pessoal com a ajuda de sugestões que lhe vêm de leituras (Céline, Michaux, Conrad, entre outros) e dos acontecimentos que marcam a viagem que faz de pano de fundo à narrativa.
O romance compõe-se de dois Livros, separados por uma secção intitulada Intermezzo, que se destaca do resto do texto por apresentar um ponto de vista e uma forma de organizar a narração muito diferentes daqueles que orientam a narrativa principal. Para começar, o subtítulo é “Como num filme”, designação que denuncia desde a sua abertura a tripla encruzilhada de linguagens à volta da qual esta breve secção – apenas treze páginas – se estrutura, pois, se a palavra intermezzo indica uma peça musical, o subtítulo remete para o registo cinematográfico, de forma que o texto escrito se converte num suporte a partir do qual a proliferação de imagens e de sons se torna possível.
O Intermezzo abre-se no momento em que o Inglês (a quem o narrador atribui o nome de Archibald Perkings) toca o violino no acampamento. A cena é descrita no tempo presente e é justamente esta marca temporal que assinala a peculiaridade desta secção em relação à narrativa dos Livros. Com efeito, se neles os episódios da vida de Archibald Perkings são narrados predominantemente no tempo passado, o tempo dominante do Intermezzo é o tempo presente, que é também, notoriamente, o tempo do cinema.
A imagem é aqui associada à visão (na sua dupla aceção de ato de ver e de alucinação), produzindo-se uma contaminação da imagem real pela imagem mental. A forma como isto acontece torna-se evidente nesta passagem:
[Archibald] está imobilizado com as mãos sob a nuca e olha o tecto da tenda. Recebe na face e no peito a agitação fluida que os dois fogos projectam por toda a parte e as superfícies devolvem umas às outras. Arde sem dúvida na febre que lhe invadiu as horas. Tem uma arma ao seu lado, com um projéctil na câmara, e essa é a única referência precisa que lhe ocorre, a par da obsessiva imagem da ruiva americana tal como se deu a ver ao longo de todo o dia. (Carvalho, 2000: 83)
O estado febril da personagem e a persistência obsessiva, na sua cabeça, da imagem da mulher são condições propícias para o aparecimento da mesma:
A Americana surge enquadrada no triângulo da entrada da tenda que dá para o terreiro. […] ela está ali de pé, a fazer parte do quadro, integrada no resto pela ebulição dos efeitos da sombra e da luz. A face anterior do corpo, a própria face, está aureolada pelo brilho da retaguarda, a massa dos cabelos é uma sarça ardente e dir-se-ia ser ela mesma a fonte da luz que intermitentemente lhe ilumina a depressão das pálpebras […]. A força da imagem resulta da alternância irregular entre o breve desenho dos contornos e a sua dissolução numa penumbra que apenas os sugere […]. (83)
A personagem da ruiva americana parece surgir aqui como a concretização da imagem produzida pela mente delirante de Archibald, numa espécie de sobreposição entre essa imagem e a personagem em carne e ossos, cujo aparecimento é descrito como se de uma imagem cinematográfica se tratasse – pelo jogo de sombras e de luzes, bem como pela referência ao enquadramento, sugerindo que o olhar de Archibald seja filtrado pela lente de uma câmara de filmar. Apesar de o leitor poder, num primeiro momento, desconfiar de que se trate de uma projeção da cabeça de Archibald, esta suspeita é imediatamente posta de lado pela descrição, de uma carnalidade inequívoca, da relação sexual entre as duas personagens. A cena é descrita em poucas linhas e mostra a passividade da personagem masculina, vítima de um desejo avassalador (o seu e o da mulher), que não consegue dominar – nem física nem mentalmente –, como se estivesse a assistir a um filme protagonizado, à sua revelia, por ele próprio:
[O] Inglês vê-se sem defesa imerso num interior primordial que se acende vivo e autónomo na sua própria combustão de mucosa e magmas. Estremece num soluço que lhe dilata o peito, fecha os olhos com força e dá-se vazio à torrente de odores que o vem sufocar.
Please beat me, oh! please beat me, you bloody dog, oh! Please beat me! O Inglês acorda ao sobressalto de um eco da memória para constatar que segura firme, com ambas as mãos e de encontro a si, as ancas esmagadas de uma mulher vergada. (84)
A voz da mulher, que até então se tinha mantido silenciosa, desperta a personagem do seu sonho, trazendo-lhe a lembrança de um passado doloroso, que será revelado poucas páginas depois. Repare-se na relevância da luz na descrição da imagem da mulher, de quem o narrador ressalta, entre outros detalhes, “a brancura da camisa à contra-luz” e “os pés nus […] tão fina e nitidamente definidos cada vez que se iluminam” (84). É a imagem que seduz o Inglês, como se vê pela passagem abrupta da contemplação da mulher para o ato sexual, que é mostrado[7 ] apenas desde a perspetiva do Inglês. Partilhando do seu ponto de vista alucinado, o leitor é assim apanhado pela mesma surpresa que apanha a personagem ao “constata[r] que segura firme […] as ancas esmagadas de uma mulher vergada”. Surpresa devida à descrição precedente, em que as referências à alternância de dissolução (na penumbra) e definição (pela luz da fogueira) dos contornos do corpo da mulher contribuem para formar uma imagem rarefacta, cuja presença se configura como uma ilusão, um fantasma – tal como as figuras que animam o ecrã cinematográfico. Sensação reforçada pelo uso da metáfora: “aí se ilumina o fulvo sinal que coroa as linhas que cerram as coxas, totais e insuportavelmente redondas, presentes e impalpáveis como o vapor rasteiro e denso das manhãs de março que o sol nascente levanta para depois extinguir” (84).
As implicações da imagem da Americana tornam-se legíveis só nas páginas seguintes, onde a ação recua até à infância de Archibald e até às palavras que despoletaram a sua reação. Essas palavras, aliás as únicas pronunciadas no Intermezzo, quebram o encanto da imagem e despertam a personagem do seu sonho provocando um déjà vu que dá origem a um longo flash-back. O leitor descobre assim que a Americana fora uma amiga da mãe de Archibald, e a descrição dela, filtrada pela paixão adolescente de Archibald, recupera alguns dos pormenores que encontrámos na primeira: “Veste […] uma camisa imaculadamente branca aberta no peito […].O seu cabelo é ruivo, abundante e frisado” (87). Uma vez Archibald testemunhou uma relação sexual entre ela e o pai, ouvindo aquelas mesmas palavras que, anos depois, a Americana lhe teria repetido e que permitem que ele a reconheça. O filme encenado por Archibald e pela antiga amante do pai constitui, portanto, a reprodução do filme a que o jovem Archibald assistira num ato involuntariamente voyeurístico: a memória recalcada dessas imagens a um tempo perturbadoras e inesquecíveis é um fantasma que, ao ganhar nova vida, provoca a eclosão das barreiras entre passado e presente, realidade e simulacro, original e cópia. Na história de Archibald encena-se, desta forma, a eterna problemática que acompanha o cinema, suspenso entre ilusão de presença e reprodutibilidade infinita. A escrita, por outro lado, sendo notoriamente o espaço da ausência e do passado, acaba por se tornar o terreno ideal para a reflexão e a experimentação acerca da ligação entre palavras e imagens, entre narração e descrição/mostração. A palavra vem aqui, de facto, acelerar o tempo narrativo, que a descrição abrandara (cf. Bal, 2006), ao mesmo tempo que traz o passado para o presente, mobilizando filmes e visões antigas. Da mesma forma que a narração permite recuperar as visões que produziram as mulheres-morro do poema. O que estes textos ajudam a perceber é que, seja de tensão ou de colaboração, a relação entre palavra e imagem implica sempre um certo desfasamento.
Assim, a escrita fílmica do Intermezzo, encenando a tensão entre tempo da escrita e tempo do cinema, entre o desejo de presença que transparece pelo recurso ao elemento visual e a ausência que carateriza o espaço textual, é uma escrita que vive no intervalo, num espaço que Jean Cléder define entre-deux, chamando a atenção para a natureza híbrida do território onde linguagem literária e linguagem cinematográfica se cruzam, produzindo uma linguagem nova, que escapa aos critérios de leitura próprios de cada uma, pedindo, portanto, uma abordagem necessariamente interdisciplinar:
Des cinématographies de l’écriture au cinéma des écrivains: ce qui est important, c’est évidemment le déplacement lui-même, qui commande acculturation, métissage, hybridations. On pourrait montrer en effet que certains écrivains, au passage vers le cinéma, transportent avec eux des outils (instruments de figuration) dont le détournement contribue à la mise au point d’une sorte de langage hybride, et dont la propriété première est peut-être qu’il tend à se détacher de la tutelle du langage originaire sans adopter tous les schemes du langage second. (Cléder, 2012: 168)
Esta forma de interpretar as interações entre cinema e literatura tem sido defendida por cada vez mais estudiosos que, nos últimos anos, se têm confrontado com a necessidade de examinar estas problemáticas a partir de uma perspetiva que ultrapassasse as abordagens habituais, geralmente limitadas à questão da adaptação. Estes estudos têm posto o acento na noção de intervalo, de intermedialidade e de espaço híbrido [8 ], evitando falar em tradução ou em transposição do filme para o texto literário e vice-versa, e preferindo justamente debruçar-se sobre a convergência para as mesmas problemáticas de registos expressivos heterogéneos. Em suma, não se trata tanto de examinar a forma como um meio influencia o outro, quanto de delinear espaços de interferência, de contágio ou de interseção entre cinema e literatura, empenhados numa indagação comum sobre a linguagem e sobre os limites e as possibilidades da representação. Segundo Adalberto Müller, “as relações entre cinema e literatura, tomadas do ponto de vista da intermedialidade, podem constituir-se como um paradigma para se pensar, a partir da literatura comparada, a complexidade das relações entre arte, cultura, mídias e tecnologia” (Müller, 2013: 17). Ganhar consciência desta complexidade implica, continua Müller, “pensar uma arqueologia (FOUCAULT, 1969) em que diferentes disciplinas e discursos convergem em alguns pontos de intersecção, o que permitiria […] entender fenómenos que não se deixam abarcar inteiramente por nenhuma área ou teoria específica, embora não prescinda, de todo, delas” (17). Este ponto de vista parece-me o mais adequado para ler a obra de Ruy Duarte de Carvalho no seu conjunto, sendo que, como acenei na introdução, a convergência entre discursos não constitui uma exceção, mas sim o princípio estruturante do seu trabalho.
À luz disso tudo, a escolha do título desta secção d’Os papéis do Inglês, que ocorre justamente a meio do romance (a narração desenrola-se ao longo de dez dias e o Intermezzo corresponde ao sexto), revela-se especialmente feliz, pois o intermezzo é justamente um intervalo, com todas as conotações que esta palavra acarreta. Ora, o que interessa, deste intervalo, é que, ao contrário do que acontecia com os intermezzos dos séculos XVIII e XIX, que constituíam pequenas obras independentes da peça que interrompiam, o Intermezzo d’Os papéis do Inglês não só está efetivamente integrado na narrativa, como começa, na realidade, nas duas últimas páginas do Livro primeiro, de maneira que a continuidade entre este e aquele não se manifesta apenas no plano temático, mas mesmo no que diz respeito à construção do texto.
Nas últimas páginas do Livro primeiro, o narrador, cada vez mais obcecado com o desejo de encontrar uma solução para o mistério que envolve a história do Inglês, dedica-se à elaboração de um enredo que vê a entrada em cena de várias personagens, entre as quais a Americana que já encontrámos. O último, longo parágrafo abre-se com estas palavras: “Ocorre-me com uma precisão cinematográfica a cena que vai seguir-se” (Carvalho, 2000: 74). A cena em questão consiste na descrição do acampamento, que se prepara para assistir a mais uma performance musical de Archibald Perkings, em cuja expetativa o Livro termina, anunciando apenas que “[v]ai começar, o concerto”(76). Concerto que continuará justamente na abertura do Intermezzo, sem solução de continuidade entre este e a narrativa principal: “Toca violino. O Inglês toca violino, de tempos a tempos e ao cair da tarde” (79).
Disto decorre que o intermezzo desempenha, aqui, um papel muito diferente daquele que tradicionalmente se atribuía ao género, na medida em que não se apresenta como momento de pura interrupção, pelo contrário contaminando e deixando-se contaminar pela narrativa que o precede. Intermezzo inscreve-se, assim, naquela noção de intervalo de que falei há pouco, enquanto espaço aberto aos cruzamentos e às interferências, que foge às delimitações de campo – no que diz respeito à construção da obra de arte, bem como aos pressupostos teóricos e aos instrumentos de avaliação crítica da mesma. Só a partir desta compreensão é possível ler um texto como este, não por querer “negar a especificidade, ou a necessidade de que se pense de maneira específica, mas [por] mover-se num terreno em que a especificidade nada tem a dizer” (Müller, 2013: 20). Através desta estratégia, produzindo um desfasamento entre o momento em que o “filme” efetivamente começa e a sua delimitação na secção que lhe é especificamente dedicada, o autor esvazia de sentido a tentativa de traçar uma linha de demarcação entre filme e texto, de maneira que a dimensão intervalar e multiforme de Intermezzo acaba por se estender ao resto da narrativa.
Sendo assim, convém perguntar o que se passa na transição de uma secção para a outra: quem é o narrador de Intermezzo e porquê recorre ele ao cinema para avançar na (re)construção da história do Inglês?
A elaboração do enredo é feita em boa medida no Livro primeiro, a partir de dois textos que narravam sucintamente os acontecimentos – únicos testemunhos dos mesmos – e, sobretudo, a partir de livros de ficção que fornecem ao narrador personagens, cenários e situações. Em todos os casos, o narrador, por um lado, faz questão de imprimir a sua própria marca à narrativa – por exemplo, tornando o Inglês num antropólogo, tal como ele. Por outro lado, impede a narrativa de se autonomizar, isto é, não conta a história do Inglês de uma vez, mas vai construindo-a de forma que o leitor assista ao processo de elaboração, desvelando-lhe, em suma, os bastidores do seu trabalho. Um exemplo desta forma de proceder é o uso do intertexto conradiano:
Alan Harvey, na novela do Conrad (The Return) onde te estou a situar o meu Archibald Perkings, […] não vai primeiro à ponte de Waterloo nenhuma, segue directamente para casa […]. Quando o que te tenho vindo a contar se insinuou na minha divagação daquele ano, a figura do Inglês e as interrogações sucessivas sobre o que poderia tê-lo levado ao Kwando e ao fim a que se iria destinar ali, foi no décor e nas situações dessa estória que passei a colocá-las. Via-o sem esforço, numa tarde londrina […]. É aí que o situo ainda, não para caracterizá-lo, mas para o enquadrar na acção. (Carvalho, 2000: 55).
O narrador, que, poucas páginas depois, declara não ser capaz “dos feitos de nenhum Conrad” (58), não podendo, por isso, alongar-se sobre o que terá passado pela cabeça do Inglês ao descobrir a traição e o abandono da mulher, inscreve-se dentro da história que vai narrando, enfatizando a sua presença e a sua ação dentro desta.
Ora, o que acontece no Intermezzo, como vimos, é exatamente o contrário: embora o narrador seja evidentemente o mesmo, nesta secção do romance a sua atitude muda completamente – em vez de salientar a sua ação manipuladora, ele procura, aqui, apagar as marcas da sua presença, imitando a postura do narrador cinematográfico, ou melhor, nas palavras de André Gaudreault, de um narrador “monstratively inclined”, que almeja tornar-se invisível, tentando “to make us believe that, like the monstrator’s camera, […] it is only a ‘powerless’ witness to the ‘drama’ that, ‘by chance’, is taking place before it” (Gaudreault, 2009: 96).
Gaudreault, no seu estudo dedicado à narrativa no cinema, distingue entre mostração e narração, sendo que esta estaria diretamente ligada à montagem e, por isso, à manipulação do tempo, enquanto a primeira remeteria para a atividade da câmara, que não tem plasticidade temporal – acontece sempre no presente. Esta subdivisão assume um caráter muito diferente num texto como o que estamos a analisar, onde a mostração, que normalmente é apanágio do teatro e do cinema, é absorvida pela narração, respondendo ao desejo do narrador de abandonar, nem que seja por breves instantes, o seu papel habitual, escondendo-se atrás da sua visão e das suas visões.
Porque de visões, afinal, se trata. A confirmá-lo, a abertura do Livro segundo: “Visões destas poderiam ter continuando a fluir (e a substituir-se às avalanches de sonhos que me acontecem quando ando a dormir no mato)” (Carvalho, 2000: 95-96). As visões são, neste contexto, imagens mentais, que têm uma relação com os sonhos, sem com eles coincidirem. Elas não são fruto incontrolado do inconsciente, mas antes projeções do imaginário do narrador, que se coloca na posição ambivalente de espectador e de produtor de imagens, num cinema mental que lembra o de poetas como o já citado Herberto Helder e Manuel Gusmão, em cuja obra, como observa Rosa Maria Martelo, “[a] experiência da imagem […] ultrapassa em muito a visão e se aproxima do visionarismo”, de maneira que “o espectador adquire a condição de um vidente, transformando-se numa espécie de produtor virtual de imagens” (Martelo, 2012: 169-170). É este tipo de visão que dá origem ao Intermezzo, e antes, como vimos, ao poema de sinais. Porém, importa lembrar que ambos os textos constroem-se não apenas a partir da dimensão visual e visionária, mas combinam-na com a sonora (lembre-se que o texto abre-se com um concerto) e a verbal, dando efetivamente origem a uma construção audiovisual pensada e experienciada através do texto escrito.
5. Conclusão
Nos textos que acabo de analisar, a imagem cinematográfica é associada à memória – a das mulheres-morro, por exemplo –, à alucinação, à imagem mental. É também, como vimos em sinais, uma estratégia para estabelecer uma relação com a paisagem. Estas formas de encarar a imagem e, de uma forma mais geral, de pensar e de recorrer ao cinema na escrita atravessam toda a obra de Ruy Duarte. N’A terceira metade, por exemplo, a certa altura o narrador declara-se incapaz de prosseguir a narração de outra forma que não a cinematográfica (aqui conotada por traços fortemente visionários), enquanto Desmedida é concebido, pelo recurso à repérage, como hipótese de um filme futuro, que se sabe desde o princípio ser irrealizável.
Nesses livros, tal como nos textos que foram objeto deste artigo, o cinema não surge como uma alternativa para a palavra escrita, mas antes como recurso que possibilita uma indagação profunda sobre esta, ao tentar dar voz ao excesso – de linguagem, de sentido, de experiência – a que urge dar expressão verbal:
………… o Trindade vai depois continuando a referir-se desta maneira ao que lhe terá acontecido então………. mas eu é que não consigo reproduzir-lhe assim……….. são coisas que me excedem e já passei um tempo demasiado, para o meu programa, à volta do que transcrevi na altura e das notas que elaborei entretanto para vir a enfrentar agora este impasse que já previa difícil…….. decido ceder e adotar o único jeito que neste momento me ocorre ao alcance………. (Carvalho, 2009: 354).
Este trecho é seguido por um desenho que retrata Trindade – personagem d’A terceira metade que conta a história da sua vida ao narrador – no ato de caminhar e as curtas secções seguintes são apresentadas como planos cinematográficos em que descrições da paisagem e comentários em voz off se misturam na tentativa de dar corpo ao “delírio” (361) de imagens, sons e palavras que anima esta parte da narração, a qual surge não a partir do olhar, mas da escuta da narração de Trindade, ou melhor, da leitura da transcrição da mesma. Os sete planos desta secção não reproduzem, de facto, uma visão concreta, mas sim o cinema cerebral que se desenrola na cabeça do narrador ao ouvir as histórias narradas pelo seu interlocutor e a reler os seus apontamentos, num curioso trânsito da palavra oral para a escrita (pessoal e provisória), para a imagem mental, que conflui, finalmente e inevitavelmente, na escrita romanesca. Constatamos, portanto, que também aqui, como em sinais e no Intermezzo, o cinema vem problematizar, tornando-as mais complexas e profundas, as relações entre palavra oral, imagem (e imaginação) e palavra escrita, mostrando quão indizível seja o que se pode dizer (a narração de Trindade) e quão visível seja o que não se pode ver (as imagens produzidas pela cabeça do narrador). Os limites e os impasses de cada uma destas linguagens vêm à tona no momento em que estas são desterritorializadas, confrontando-se, para utilizar a linguagem de Marie-Claire Ropars-Wuilleumiers (cf. nota 8), com a exterioridade interna a elas. A ficção, a que Ruy Duarte se dedicou intensamente nos últimos dez anos da sua vida, permite-lhe, assim, explorar as possibilidades da escrita cinematográfica enquanto escrita que traz a desordem e a opacidade da imagem, da alucinação, da memória, das associações de ideias para dentro do texto literário, e que indaga justamente as possibilidades de uma narrativa que surja a partir destas premissas e que encare a heterogeneidade dos discursos como condição da sua existência.
Referências
BAL, Mieke (2006). “Over-writing as un-writing: descriptions, world-making, and novelistic time”, The novel, volume 2. Forms and themes. Ed. Franco Moretti, Princeton: Princeton University Press, pp. 571-608.
CARVALHO, Ruy Duarte de (1980). sinais misteriosos… já se vê…, Lisboa: Edições 70.
____________ (2000). Os papéis do Inglês, Lisboa: Cotovia.
____________ (2005). Lavra. Poesia reunida 1970/2000, Lisboa: Cotovia.
____________ (2008). A câmara, a escrita e a coisa dita. Fitas, textos e palestras, Lisboa: Cotovia.
____________ (2009). A terceira metade, Lisboa: Cotovia.
CLÉDER, Jean (2012). Entre littérature et cinéma. Les affinités électives. Paris: Armand Colin.
GAUDREAULT, André (2009). From Plato to Lumière: narration and monstration in literature and cinema, Toronto: University of Toronto Press.
LA POLLA, Franco (2000). “Il cinema nel romanzo”, Il cinema nella scrittura. Eds. Benvenuto Cuminetti e Stefano Ghislotti, Bergamo: Bergamo University Press, pp. 261-269.
MARTELO, Rosa Maria (2012). O cinema da poesia, Lisboa: Documenta.
MÜLLER, Adalberto (2013). “Orson Welles: arquive-se (uma arqueologia das relações entre Literatura, Cinema e Mídias)”, Muito além da adaptação. Literatura, cinema e outras artes. Orgs. Adalberto Müller e Julia Scamparini, Rio de Janeiro: 7 Letras, pp. 13-28.
ROPARS-WUILLEUMIER, Marie-Claire (1990). Ècraniques: le film du texte, Lille: Presses Universitaires de Lille.
Notas
[1 ] A expressão “superfícies raras” aparece no último verso do poema de encerramento de Hábito da Terra (1988), intitulado “Fecho”, do qual reporto a estrofe conclusiva: “A força mais guardada que há na luz / só se consente em superfícies raras” (Carvalho, 2005: 263).
[2 ] População nómade que habita a província do Lubango, em Angola.
[3 ] A citação é de Le cinéma, autrement de Dominique Noguez.
[4 ] Em Lavra, «cinemas» inclui um texto que, na edição original, pertence à secção «estórias». Para a publicação na colectânea, o livro sofreu várias alterações, principalmente em termos de reorganização das seções e do uso das imagens (as de «cinemas» foram retiradas). Também a epígrafe inicial de Photomaton & Vox foi suprimida.
[5 ] Esta conclusão remete para a questão da transposição para um texto escrito (a mesma coisa pode-se dizer do filme) de testemunhos orais. Neste caso específico, não se trata de um depoimento recolhido pelo autor, mas sim de um poema inspirado nesse tipo de narrações, e que levanta, por isso, os mesmos problemas discutidos pelo autor aquando do trabalho com narrativas orais tradicionais, como no caso de Nelisita. Num ensaio dedicado ao assunto, Ruy Duarte conclui que, para lá de todas as dificuldades e inevitáveis releituras que esse processo implica, e que fazem com que uma obra que surja de uma narrativa oral acabe por ser sempre e necessariamente uma versão pessoal, a vantagem evidente desse tipo de trabalho é a de preservar do esquecimento narrativas que, de outra forma, correriam o risco de morrer junto com os seus narradores (cf. Carvalho, 2008: 435-455).
[6 ] Num texto incluído no livro A câmara, a escrita e a coisa dita, Ruy Duarte expõe o seu entendimento da poesia, da cinema e da antropologia, explicando como eles se relacionam no seu trabalho (cf. Carvalho 2008, 343-349).
[7 ] Utilizo o verbo na aceção proposta por André Gaudreault, no seu livro From Plato to Lumière: narration and monstration in literature and cinema.
[8 ] Marie-Claire Ropars-Wuilleumiers considera que a atração pelo intervalo (écart) convoca dois termos – a palavra e a imagem cinematográfica – para recusar a interioridade de ambos. Segundo a autora, que trabalha tanto com filmes como com textos literários, produz-se um paradoxo de exterioridade que fica interna ao dispositivo, porquanto o cinema, ao entrar na literatura, impede ao signo fechar-se em si mesmo, lembrando-lhe a diferença (também no sentido de différance) que é interna ao mesmo: a escrita torna-se, assim, outra, e a noção de transparência da linguagem é recusada tout court (Ropars-Wuilleumiers, 1990: 17).
© 2013 Sonia Miceli.