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There is no way you can frame it. Ideias de Teatro e Cinema a partir de Michael Fried
Francisco Frazão

Centro de Estudos Comparatistas | Universidade de Lisboa

 

O que é uma ideia de cinema? A expressão pode parecer demasiado imprecisa ou abstrata, mas há um sentido forte que permite aplicá-la quer a filmes concretos, quer a alguns textos de antes (argumentos) e de depois (críticas, ensaios). Quando Deleuze se coloca a pergunta numa conferência à FEMIS, não vê a ideia como operação segunda (a reflexão antes ou depois da prática) nem coutada da filosofia; ela pertence desde logo ao cinema: “On n’a pas une idée en général. Une idée [...] est déjà vouée à tel ou tel domaine. [...] Les idées, il faut les traiter comme des potentiels déjà engagés dans tel ou tel mode d’expression et inséparables du mode d’expression” (1987: 134). Ou tome-se esta conversa radiofónica entre os críticos Serge Daney e Jean-Claude Biette:

SD – C’est quoi, une idée du cinéma?
J-CB - C’est quelque chose qui permettrait, dans une sorte de même mouvement, de digérer quelque chose de la réalité et de trouver le moyen de le redonner à la fois à travers une idée d’ensemble du film, une idée globale du film, une idée prospective du film, qu’on peut avoir quand on imagine un film, et dans le détail d’une séquence.
SD - Alors ça serait à la fois voir quelque chose, montrer ce qu’on a vu et faire en sorte que ce qui est montré, est montré dans le tableau et dans le détail.
J-CB - Oui, c’est ça, c’est à dire, c’est une manière de digérer la réalité déjà d’une manière cinématographique. C’est une drôle d’opération…
SD - On pourrait dire aussi voir dans la réalité ce qui dans la réalité est du cinéma. (Daney, 1989)

A primeira intervenção de Biette junta num “mesmo movimento” sinedóquico o detalhe de uma sequência em concreto e o quadro global, quando se imagina um filme. Quanto ao gesto de apropriação, de digestão do real que o cinema empreende, a última frase de Daney mostra que é também um gesto autorreflexivo (ver o cinema que já existe na realidade). Uma ideia de cinema é, assim, imaginação e atualização, particular e englobante, olhar sobre o real e arte poética.

Acreditar que estas ideias podiam produzir-se não só nos filmes como logo na escrita sobre cinema foi uma das ousadias, e não a menor, do grupo de críticos dos Cahiers du Cinéma (Godard, Truffaut, Rivette, Rohmer, Chabrol) que mais tarde formariam a Nouvelle Vague. Numa entrevista-balanço, Godard diz: “Écrire c’était faire des films” (1985: 10). É assim que, num trânsito bidirecional, um texto pode conter uma ideia de cinema, e um filme pode ser a crítica de outro filme.

Pegue-se então em “Art and Objecthood”, artigo célebre publicado por Michael Fried em 1967. Nele só em dois momentos se fala de cinema, um no corpo do texto e outro em nota. Mas fala-se bastante de teatro, um teatro deslocado e estranho, visto que é usado por um crítico de arte para descrever, pejorativamente e em nome do modernismo, o minimalismo que então se afirmava. Este é um texto de combate, rigoroso e apaixonado, usando uma linguagem de antagonismo que parte dedos e arranca dentes. Para Fried, “there is a war going on between theater and modernist painting” (1967: 160). O teatro corrompe, perverte, infecta (161); e para sobreviver, as artes (e não só a pintura e a escultura modernistas) têm de derrotá-lo (163). Georges Didi-Huberman vê aqui

quelque chose comme une réminiscence involontaire des grands moralismes antiques, violents et excessifs, ces moralismes d’anathèmes essentiellement religieux et renversants – je veux dire renverseurs d’idoles, mais aussi victimes de leur propre système de violence, et à ce titre toujours renversés par eux-mêmes, contradictoires et paradoxaux –, dans le style d’un Tertulien, par exemple. (1992: 46)

Será talvez mais prudente abandonar o qualificador “involuntária” – a epígrafe do ensaio de Fried, que propõe como prova da existência de Deus a renovação permanente das coisas do mundo, é uma reflexão do teólogo puritano Jonathan Edwards –, e não é portanto abusivo aproximar o texto de Fried desta corrente do pensamento cristão que terraplanou teatros e abomina o espetáculo.

Mas que “teatro” é este, que só por provocação parece poder caracterizar os sólidos depurados de Donald Judd e Robert Morris (nos antípodas do que o senso-comum entende por teatro), e cuja definição, por outro lado, nem sequer pode com segurança aplicar-se à prática teatral contemporânea [1 ]? Tomando como lema a epígrafe de Rancière, procuremos delimitar o espaço de pensamento que esta homonímia sugere. Há verosimilmente duas hipóteses: ou Fried procede por analogia, encontrando semelhanças entre as obras dos minimalistas e aquilo que é socialmente aceite como teatro; ou constrói uma definição de teatro suficientemente abrangente (ou essencial) para poder abarcar as ditas obras. Veremos que a solução tem um pouco de cada alternativa.

Fried começa por propor uma ideia de teatro que não precisa de nenhum salto metafórico para ser uma descrição válida do que se passa quando se está diante de um objecto minimalista (a que chama literalista):

Literalist sensibility is theatrical because, to begin with, it is concerned with the actual circumstances in which the beholder encounters literalist work. […] the experience of literalist art is of an object in a situation [2 ] – one that, virtually by definition, includes the beholder […]. (1967: 153)

A partilha de um mesmo espaço, a copresença da obra e do espectador, adquirem um significado na experiência que este tem daquela. Parece uma dado evidente sobre o que acontece quando se visita um museu ou uma galeria: para ver determinada pintura ou escultura, é preciso estar na sala em que ela se encontra. A diferença aqui é que a obra minimalista obriga o observador a tornar-se consciente desse facto, forçando-o a ter em conta as circunstâncias específicas dessa experiência (luz, campo de visão, aproximações e afastamentos). A obra impede a passagem do espectador, como uma pedra no meio do caminho. Esse obstáculo, para ser apreendido na sua unidade (enquanto gestalt que muitas vezes é), precisa de uma distância que é um efeito da escala: “the largeness of the piece [...] distances the beholder – not just physically but psychically. It is, one might say, precisely this distancing that makes the beholder a subject and the piece in question... an object” (Fried, 1967: 154). Os termos do título “Art and Objecthood” revelam-no então não como um problema, uma relação que é preciso definir, mas como uma oposição, uma dicotomia que explica o pendor agónico do texto. A pintura modernista obedece a um “self-imposed imperative that it defeat or suspend its own objecthood” (153), distinguindo a arte de um mundo onde “one is, after all, always surrounded by things” (154): “We are all literalists most or all of our lives” (168).

As características da noção de teatro até agora expostas cristalizam-se em torno da noção de presença. E esta é, para Fried, uma presença especificamente teatral, porque implica uma cumplicidade (1967: 155) entre quem vê e a peça que se faz visível. Num livro posterior, Absorption and Theatricality (de novo termos antagónicos), escrito já não como crítico mas como historiador de arte, Fried fala da insistência da pintura do tempo de Diderot na representação de situações onde as figuras estão de tal modo absortas na sua atividade que não podem dar-se conta de estarem a ser observadas. Esta defesa da absorção constrói-se contra a teatralidade de quadros cuja composição reconhece explicitamente a presença do espectador diante de si, por exemplo através do olhar frontal de uma das figuras.  

Mas as peças descritas em “Art and Objecthood” não parecem poder olhar-nos como os quadros do século XVIII. Ao falar de teatralidade neste caso, Fried desenvolve uma fenomenologia cujos termos são necessariamente mais abstractos, e por isso mais instigantes (e talvez problemáticos). Situação, obstáculo, distância, cumplicidade, presença: os termos são suficientemente precisos e abrangentes para poderem englobar quer a percepção dos objectos de que Fried se ocupa, quer uma célula mínima do ato teatral em sentido estrito tal como Peter Brook a definiria um ano mais tarde nas conhecidas frases iniciais de The Empty Space: “I can take any empty space and call it a bare stage. A man walks across this empty space whilst someone else is watching him, and this is all that is needed for an act of theatre to be engaged” (1968: 11). Em vez de cortinas vermelhas, projetores, decassílabos, riso e escuridão (termos que, como diz Brook logo a seguir, confusamente associamos ao teatro), aqui temos, como em Fried: a partilha de um mesmo espaço, vazio como o “cubo branco” de uma galeria costuma ser (embora uma galeria não seja um “espaço vazio qualquer”, e sim um espaço vazio por excelência) [3 ]; uma situação comum a quem vê e quem é visto (e que é aquela ali, um “aqui e agora” específico); e uma separação suficiente para distinguir os papéis de um e de outro. Brook parece não dizer nada sobre a “cumplicidade”, isto é, sobre o esforço do primeiro homem para atrair a atenção do segundo (esforço que pressupõe o conhecimento de que há um observador). Saberá ele? E quem vê sabe que ele sabe ou observa apenas um corpo de imperscrutáveis desígnios? A questão é indecidível, mas podemos arriscar que se o espaço está vazio, e mesmo que estivéssemos totalmente às escuras (mas não estamos, porque a “escuridão” faz parte da convenção do teatro e aqui estamos longe disso), a presença silenciosa e expectante de outro corpo não pode deixar de se fazer sentir; e o movimento do homem que anda não pode deixar de ser lido como chamada de atenção, gesto que obriga o olhar a segui-lo. Mesmo sem reconhecer abertamente a presença do outro, o primeiro homem sabe, e o segundo sabe que ele sabe.

Depois destas conjecturas quase policiais, começa a ser difícil ignorar que só por analogia podemos aproximar a presença do homem que anda da presença de uma peça como Die, o cubo negro de Tony Smith. De facto, para poder falar de cumplicidade, Fried está já a falar de uma característica fundamental das obras literalistas – o seu antropomorfismo:

being distanced by such objects is not, I suggest, entirely unlike being distanced, or crowded, by the silent presence of another person; the experience of coming upon literalist objects unexpectedly – for example, in somewhat darkened rooms – can be strongly, if momentarily, disquieting in just this way. (1967: 155)

Fried sugere um clima, pinteriano ou de film noir, que Brook tinha recusado: mantém-se o encontro, mas é agora inquietante por se dar numa sala obscurecida. E a definição de teatro proposta por Fried começa a deslizar para a metáfora. Não só as peças minimalistas são antropomórficas (um efeito da sua escala, que é próxima da do corpo humano, do seu carácter unitário e do facto de parecerem ocas, guardando dentro um mistério que sugere “an inner, even secret, life” [1967: 156]), mas esse antropomorfismo é deliberadamente escondido – e é esse o seu problema (uma escultura do modernista Anthony Caro pode ser antropomórfica, sugerindo por exemplo uma sintaxe de gestos, mas não o esconde). Fried fala de latência, ocultação e chega a empregar o verbo “mascarar”: trata-se então de um jogo, uma ilusão, e é aqui que Fried converge com a descrição convencional do teatro enquanto terreno do falso e do postiço. Como atores, as obras literalistas mentem: fingem.

Didi-Huberman, seguindo Fried quando qualifica a empresa minimalista como ideológica, considera esta “une affaire de mots” (1992: 44), notando como o termo “literalista” (para além de se referir ao “literal space” avançado por Donald Judd) sugere um debate feito rente ao texto, tomando as palavras à letra, e reduz a oposição modernismo/minimalismo a uma “querelle de mots” (45). Falando da palavra “teatro” tal como Fried a emprega, vê apenas o seu valor depreciativo, arma de arremesso retórica, e denuncia-a como “mot peu clair en tant que concept (imposé dans le texte plutôt que posé)” (46). Mas se é verdade que ao falar de um antropomorfismo teatralmente mentiroso Fried anda perto do lugar-comum, se esta é uma “questão de palavras” não será especialmente apropriada uma palavra “imposta” em vez de “postulada” para descrever obras tão obviamente impositivas? A palavra “teatro” molda o texto à sua volta como o cubo de Smith faz ao espaço. E Fried (como nós, como Didi-Huberman) projeta nela, como um espectador diante do cubo negro, as suas associações.

Falta falar de uma dimensão deste teatro minimalista, a que Hal Foster considera central:

Fried terms this minimalist literalism ‘theatrical’ because it involves mundane time, a property that he deems improper to visual art. Thus, even if the institutional autonomy of art is not threatened by minimalism, the old Enlightenment order of the arts (the temporal versus the spatial arts) is endangered. (1996: 52)

A dimensão temporal é realçada no ato de percepção destas obras, que assim se transforma numa experiência da duração – precisamente porque não é possível saturar o contributo que as “circunstâncias” do espectador trazem para a leitura da obra. Na pintura e escultura modernistas, pelo contrário, “at every moment the work itself is wholly manifest”, numa “continuous and entire presentness” (Fried, 1967: 167) que recorda a renovação permanente do mundo citada na epígrafe do ensaio. Assim, “presence” opõe-se a “presentness”, e o teatro corrompe a “instantaneousness” que é condição da pintura e da escultura, indiferenciando as artes no sentido de um hibridismo degradado: “What lies between the arts is theater” (164). Fried chega a sugerir, num movimento paradoxal que uniformiza as artes pelo outro polo, que a poesia e a música, enquanto artes modernistas, devem aspirar à mesma condição de um presente contínuo e perpétuo da pintura e da escultura (167).

A importância do tempo e da duração surge de forma evidente na citação integral – passo obrigatório quando se fala de “Art and Objecthood” – que Fried faz de uma epifania de Tony Smith, e que vale a pena retomar também aqui:

When I was teaching at Cooper Union in the first year or two of the fifties, someone told me how I could get onto the unfinished New Jersey Turnpike. I took three students and drove from somewhere in the Meadows to New Brunswick. It was a dark night and there were no lights or shoulder markers, lines, railings, or anything at all except the dark pavement moving through the landscape of the flats, rimmed by hills in the distance, but punctuated by stacks, towers, fumes, and colored lights. This drive was a revealing experience. The road and much of the landscape was artificial, and yet it couldn’t be called a work of art. On the other hand, it did something for me that art had never done. At first I didn’t know what it was, but its effect was to liberate me from many of the views I had had about art. It seemed that there had been a reality there that had not had any expression in art.
The experience on the road was something mapped out but not socially recognized. I thought to myself, it ought to be clear that’s the end of art. Most painting looks pretty pictorial after that. There is no way you can frame it, you just have to experience it. Later I discovered some abandoned airstrips in Europe – abandoned works, Surrealist landscapes, something that had nothing to do with any function, created worlds without tradition. Artificial landscape without cultural precedent began to dawn on me. There is a drill ground in Nuremberg large enough to accommodate two million men. The entire field is enclosed with high embankments and towers. The concrete approach is three sixteen-inch steps, one above the other, stretching for a mile or so. (cit. em Fried, 1967: 157-8)

Este é o momento mais arriscado da argumentação de Michael Fried: depois do salto na abstração que consiste em ver teatro na relação entre um espectador e um objecto, aqui o próprio objecto desaparece, substituído na autoestrada em construção pelo “constant onrush of the road, the simultaneous recession of new reaches of dark pavement illumined by the onrushing headlights, the sense of the turnpike itself as something enormous, abandoned, derelict, existing for Smith alone and for those in the car with him” (1967: 159). Fried resume esta substituição do objecto através dos substantivos “endlessness” e “objectlessness” (159), recorrendo ao duplo sentido do segundo enquanto ausência de objecto e de objectivo. A estrada, inacabada, é interminável [4 ]. A experiência é impossível de interromper e delimitar (“there is no way you can frame it”), e esta interminabilidade coloca-a naturalmente nos antípodas da instantaneidade modernista. Para Fried é esta “endlessness” que cumpre a função que era a do objecto de distanciar o observador, e se temos uma situação, trata-se de uma situação “empty, or ‘abandoned’”, vazia como o espaço de Peter Brook. Se Brook deixou ficar apenas o corpo do ator, Fried substitui-o primeiro por um objecto inquietante para depois dar ainda mais um passo no sentido de destilar apenas uma “objecthood” que funciona mesmo na sua ausência.

Recuando um pouco: sem recusar a sofisticada argumentação de Fried que vê aqui teatro, a verdade é que uma leitura ingénua da descrição de Smith não pode deixar de perceber nela uma experiência eminentemente cinematográfica: pelos seus poderes hipotipóticos de nos fazer ver como se estivéssemos lá (incrementados pelo próprio Fried, que imagina a progressão da estrada e dos faróis para lá do que diz Smith e parece sentar-se ao lado do condutor, relegando os três alunos para o banco de trás) e pelo movimento que a constitui, sendo que uma estrada percorrida à noite é, de Aldrich a Lynch, um motivo hipnótico a que o cinema recorreu com frequência.

Mas o que tem afinal Fried a dizer sobre o cinema? Coloca-o, por defeito, numa posição que o torna imune à doença do teatro:

There is, however, one art that, by its very nature, escapes theatre entirely – the movies. This helps explain why movies in general, including frankly appalling ones, are acceptable to modernist sensibility whereas all but the most successful painting, sculpture, music and poetry is not. Because cinema escapes theater – automatically, as it were – it provides a welcome and absorbing refuge to sensibilities at war with theater and theatricality. At the same time, the automatic, guaranteed character of the refuge – more accurately, the fact that what is provided is a refuge from theater and not a triumph over it, absorption not conviction – means that the cinema, even at its most experimental, is not a modernist art. (Fried, 1967: 164)

É automaticamente que o cinema escapa ao teatro, mas é essa condição que o impede de aceder ao panteão modernista. Temos assim uma tripartição das artes: as (potencialmente) modernistas, caracterizadas pela convicção que têm de gerar (“the conviction that a particular painting or sculpture or poem or piece of music can or cannot support comparison with past work within that art whose quality is not in doubt” [Fried, 1967: 165]); o cinema, que é o lugar não da convicção mas da absorção; e o teatro, que é o que existe entre as artes, e que pode apenas produzir um “interesse” insaturável (“A work needs only to be interesting”, diz Judd, e Fried [1967: 165] cita-o depreciativamente) [5 ].

Para a questão do automatismo, Fried aponta-lhe brevemente um caminho de investigação em nota:

Exactly how the movies escape theater is a difficult question, and there is no doubt but that a phenomenology of the cinema that concentrated on the similarities and differences between it and stage drama – e.g., that in the movies the actors are not physically present, the film itself is projected away from us, and the screen is not experienced as a kind of object existing in a specific physical relation to us – would be rewarding. (1967: 171)

Que “the film is projected away from us” não pode deixar de lembrar a descrição de Fried (e não de Smith) dos faróis do carro que, projetando a luz à medida que avançam, vão descobrindo novas secções do alcatrão infindável, sempre “away” por mais perto que esteja; e é também possível arriscar que aquilo que o cinema faz “automaticamente” é precisamente substituir o objecto por uma “objecthood”, que se não é presença pelo menos indicia-a...

Mas sigamos o conselho de Fried e pensemos, fenomenologicamente, no espectador diante do ecrã. Não um espectador qualquer, mas o cinéfilo tal como o descreve Louis Skorecki no artigo “Contra la nouvelle cinéphilie”:

[L]es trois ou cinq premiers rangs de la salle sont les nôtres, ceux d’où nous voyons les films, ceux où nous sommes en terrain de connaissance, où nous nous reconnaissons pour ce que nous sommes: des cinéphiles avancés.
Quand on se trouve si près de l’écran (et la place ne variera pas avec la taille de l’écran, c’est une place rituelle et symbolique aussi), il y a quelque chose qu’on ne voit pas, qu’on ne peut (ni ne veut) voir: c’est le cadre. Sans recul, on entre, on essaie d’entrer dans le film. On s’y oublie, on s’y noie, on s’y vautre, pour oublier ce cadre essentiel, pour devenir aveugles [...]. (1978: 135)

Os cinéfilos reúnem-se nas primeiras filas da sala, espectadores privilegiados como Smith e os seus três alunos (cinéfilos avançados que avançam), numa tentativa de imersão no filme que resulta na impossibilidade de ver o enquadramento: “there is no way you can frame it, you just have to experience it”.

Num texto-manifesto em que Skorecki abertamente se apoia, o polémico “Sur un art ignoré” publicado por Michel Mourlet nos Cahiers du Cinéma em 1959, dando o mote à tendência dos “mac-mahonianos”, dá-se um nome – ou melhor, dois – a este “movimento imperceptível em direção ao ecrã”:

Le rideau s’ouvre. La nuit se fait dans la salle. Un rectangle de lumière vibre à présent devant nous, bientôt envahit de gestes et de sons. Nous voici absorbés par cet espace et ce temps irréels. (42)
Il y faut évidemment la substitution la plus totale possible de l’imaginaire au réel présent, une absorption de la conscience par le spectacle, une proximité au bord de l’identique [...]. (43)
L’absorption de la conscience par le spectacle se nomme fascination: impossibilité de s’arracher aux images, mouvement imperceptible vers l’écran de tout être tendu, abolition de soi dans les merveilles d’un univers où mourir même se situe à l’extrême du désir. Provoquer cette tension vers l’écran apparaît comme le projet fondamental du cinéaste. (47)

Como Fried, Mourlet chama “absorção” à experiência cinematográfica (substituindo depois o termo pelo mais problemático “fascinação”). No entanto, vemos como “absorção” parece ser um bom nome para a experiência de Smith, aquela a que Fried chamou teatro [6 ] antes de postular a incompatibilidade entre esta noção e o cinema... Abrem-se duas possibilidades: ou o cinema não escapa, afinal, automaticamente ao teatro; ou, apesar da proximidade entre as “fenomenologias” de Mourlet/Skorecki com a viagem noturna de Smith (movimento para a frente, impossibilidade de enquadrar, etc.), errámos ao estabelecer apressadamente uma identidade entre acepções talvez distintas do termo “absorção”.

De facto, se a produção do próprio Fried nos pode orientar na fixação de um significado, talvez o melhor seja recorrer ao acima referido Absorption and Theatricality (com a cautela aconselhada por Fried [1998: 48-52] em distinguir a sua obra crítica da produzida no contexto da história de arte). A noção de absorção aí proposta opõe-se a teatralidade, tal como no texto anterior o cinema (caracterizado, e é a única vez que a palavra aí ocorre, pela absorção) escapa ao teatro, e a arte luta contra a “objecthood”. E, com efeito, a absorção que Fried deteta como qualidade a que segundo Diderot os quadros devem aspirar parece ter pouco a ver com o movimento descrito por Mourlet e Skorecki: “for French painters of the early and mid-1750s the persuasive representation of absorption entailed evoking the perfect obliviousness of a figure or group of figures to everything but the objects of their absorption” (1980: 66). Trata-se de assegurar que estas figuras “seem oblivious to the beholder’s presence” (66), concentradas que estão na sua atividade. A absorção é então uma característica das personagens do quadro e não do espectador, uma característica que serve precisamente de meio para ignorar a presença deste. Mais tarde será preciso, mais do que ignorá-lo, negar-lhe a presença: “Diderot’s conception of painting rested ultimately upon the supreme fiction that the beholder did not exist, that he was not really there, standing before the canvas” (103). Isto como estratégia num combate contra um estado de coisas em que o acesso à verdade é comprometido por uma relação entre observador e objecto que surge descrita como teatral. É preciso então “de-theatricalize beholding” (104).

Esta estratégia é, afinal, perfeitamente compatível com a intervenção de Diderot no campo do teatro, nas Entretiens sur le fils naturel, onde propõe que o ator represente ignorando a presença do público como se houvesse uma “quarta parede” entre o palco e a plateia. Resumindo uma história complexa, esta tomada de posição dá origem não só ao naturalismo no teatro como às convenções do cinema clássico que proíbem o olhar para a câmara e impõem uma “montagem transparente”. Parece então ser neste sentido que Fried usa a palavra “absorção” para se referir ao cinema, o que talvez fosse pouco problemático se se estivesse a referir apenas a um cinema de fatura clássica (mas não está, já que inclui na sua caracterização o cinema experimental).

Só que Fried, mais à frente no seu livro, confessa ter apresentado até aí apenas uma versão incompleta das ideias de Diderot sobre a pintura: “there coexist [...] not one but two conceptions of the art of painting” (1980: 131), que divergem consoante o género do quadro. Há então, para lá da concepção dramática que faz uso de figuras absortas nas suas ações ou pensamentos, uma concepção pastoral que pede a ficção “of the beholder’s physical presence within the painting” (132). Fried reúne as duas concepções sob o mesmo signo desteatralizante, já que em ambas “the beholder is removed from in front of the painting” (131), num caso como se não existisse, noutro entrando no quadro. Veja-se como exemplo desta última situação a admoestação que Diderot faz a Hubert Robert a propósito da sua pintura, entretanto perdida, Grande Galerie éclairée du fond:

[E]t puisque vous vous êtes voué à la peinture des ruines, sachez que ce genre a sa poétique; vous l’ignorez absolument, cherchez-la. Ne sentez vous qu’il y a trop de figures ici, qu’il en faut effacer les trois quarts? Il n’en faut réserver que celles qui ajouteront à la solitude et au silence. Un seul homme, qui aurait erré dans ces ténèbres, les bras croisés sur la poitrine et la tête penchée, m’aurait affectée d’avantage; l’obscurité seule, la majesté de l’édifice, la grandeur de la fabrique, l’étendue, la tranquillité, le retentissement sourd de l’espace m’aurait fait frémir; je n’aurait jamais pu me défendre d’aller rêver sous cette voûte, de m’asseoir entre ces colonnes, d’entrer dans votre tableau. Mais il y a trop d’importuns; je m’arrête, je regarde, j’admire et je passe. (cit. em Fried, 1980: 128)

Como não ver as semelhanças entre a obscuridade desta ruína majestosa que Diderot se imagina a visitar quase sem companhia e a caracterização que Fried faz do “turnpike itself as something enormous, abandoned, derelict, existing for Smith alone and for those in the car with him” (entre os quais, pela vividez da descrição e como já vimos, parece estar o próprio Fried)?

Podemos então tomar a absorção nos seus dois sentidos: enquanto concentração fechada sobre si das figuras pintadas; e enquanto movimento de incorporação do observador no quadro. O cinema responde bem a qualquer uma das acepções, quer enquanto mundo que se finge independente do olhar do espectador, quer enquanto experiência cinéfila fascinada que procura na tela a perda de si [7 ].

Este abandono, a diluição da figura no espaço do ecrã, é referido por Pascal Bonitzer num texto sobre Antonioni. Servindo-se também do verbo “absorver”, está no entanto a falar das personagens e não dos espectadores, na descrição de um novo género de espaço. O cinema de Antonioni demonstra

un intêret positif pour ces déserts d’un nouveau genre, ces espaces amorphes, déconnectés, vidés, ce tissu dédifférencié de la mutation urbaine. Les personnages d’Antonioni sont à la limite attirés par le vide, par le froid, les espaces abstraits qui absorbent et engloutissent la figure humaine. (Bonitzer, 1987: 98)

Os espaços que atraem a personagem antonioniana são do mesmo tipo dos que Tony Smith refere: o New Jersey Turnpike inacabado, aeródromos abandonados e o gigantesco campo de manobras de Nuremberga. Todos “paisagens artificiais”, mas desconectados da sua função passada ou futura, ruínas que descendem das de Hubert Robert. Em L’Image-mouvement Deleuze parafraseia precisamente este passo de Bonitzer para definir os “espaces quelconques” enquanto espaços desconectados ou esvaziados. Apesar da semelhança no vocabulário, a sintaxe obriga a distinguir o “espaço vazio qualquer” de Peter Brook do “espaço qualquer esvaziado” de Deleuze. Para este último, espaços assim surgem no cinema por via da conjugação de duas rupturas: uma mudança histórica ligada ao pós-guerra (período em que não custa inserir a viagem de Tony Smith), que produziu os novos espaços por que Antonioni, e outros antes dele, se interessou; outra interior ao cinema, com a crise da imagem-ação que passou a colocar as personagens “dans un état de promenade, de balade ou d’errance qui définissait des situations optiques et sonores pures” (Deleuze, 1983: 169). É talvez uma transição aparentada a esta que é revelada a Smith naquela noite em New Jersey: noite de errância que tem começo (“someone told me how I could get onto [it]”, algures entre os Meadows e New Brunswick), mas não tem, como notou Fried, fim à vista, atravessando um território não-marcado no limite da visibilidade, ainda sem as luzes e os traços no chão que as estradas costumam ter, mas apesar de tudo estruturado entre o perto (o alcatrão) e o longínquo  (a orla de colinas ao longe) e pontuado por torres e chaminés, fumos e luzes coloridas, numa diluição que o aproxima da abstração e de uma “situação óptica pura” [8 ].

Veja-se agora a sequência final de Vive l’amour (1994) de Tsai Ming-liang (para alguns um herdeiro de Antonioni). May Lin (Yang Kuei-Mei), uma dos três protagonistas, atravessa um parque de Taipé em obras e vai sentar-se num banco dum anfiteatro ao ar livre, onde chora longamente. Para o realizador, foi o décor que determinou o fim do filme:

When I originally wrote the script, I wanted a ray of hope at the end. And so the original ending of the film was, after walking and walking and walking in the park, the woman decides that yes, she would like to extend her hand and ask for love. So she goes back to the apartment and waits for the sleeping man. That was the original ending. Then I waited for the new park to open in Taipei. And when it opened, I saw that it was the same as a few days before, nothing had changed. It was in no shape to open, but it opened. And with that disappointment in my heart, there was no way I could shoot the original ending. And so this is how the ending came about. (Tsai, 1994)

O parque ainda em obras mas já inaugurado não oferece abrigo à personagem: é um espaço que não serve ("It was in no shape to open"), desconectado como o New Jersey Turnpike ou os desertos de Antonioni, que simultaneamente materializa a psicologia da personagem e tem por ela uma indiferença absoluta. A sequência reivindica a sua pertença ao cinema moderno não só pelo espaço escolhido mas também pela bravura deliberada da découpage: entre outros planos mais breves, ficam na memória o longo travelling que acompanha May Lin em plano americano através do parque, mostrando a terra revolta, as poucas árvores plantadas e as fitas coloridas impedindo a passagem; a lenta panorâmica (mais de 180º) que abandona May Lin em plano geral para, depois de mostrar uma avenida vizinha, recuperar por instantes a personagem mais à frente no seu percurso; e o plano fixo final, um grande-plano médio em que, durante mais de cinco minutos, May Lin chora, parece recompor-se, acende um cigarro e volta a soluçar, com o som a transitar para o negro do genérico. Travelling, panorâmica, plano fixo: um breve catálogo do cinema, numa sintaxe austera que, longe de ser transparente, sublinha auto-reflexivamente o gesto autoral — uma ideia de cinema.

O ensaio de Fried ilumina esta sequência, de onde nem sequer a interminabilidade está ausente. Como se escreveu no Village Voice: “The fade to black arrives just as you've convinced yourself she could go on weeping forever” (Lim, 2001), e isso mesmo é sinalizado pelo prolongamento do som quando a imagem já desapareceu. Mas teremos de abandonar ou rasurar a interpretação de Fried, dizendo afinal “cinema” onde se escrevia “teatro”? Ou será este, como diz Jacques Rivette na segunda epígrafe deste texto, também um “filme sobre o teatro”? Há algumas marcas de teatralidade na sequência de Vive l’amour: o movimento panorâmico que se torna independente da personagem, parecendo esquecê-la, recupera-a mais adiante (pequeno coup de théâtre) numa entrada em campo lateral que, por instantes, lembra uma entrada em cena; e o plano final tem lugar num anfiteatro (sem contracampo, isto é, sem palco), onde May Lin exibe o seu drama sem que ninguém dê por isso (a outra figura presente, um homem a ler o jornal, não dá quaisquer sinais de preocupação ou empatia, muito longe da cumplicidade postulada por Fried e adivinhada em Brook). Mas, a existir, esta seria apenas uma teatralidade prefabricada, feita dos despojos de um teatro moribundo e não propriamente cinematográfica.

A ousadia de Fried ao chamar teatro à revelação de Tony Smith pede antes que aí vejamos uma teorização possível, reduzida ao osso mas nem por isso menos operante, de uma teatralidade do cinema: algo que passa não pelos jogos da ilusão, do verdadeiro e do falso (com tudo o que isso implica de ideia convencional, preconceituosa e ideologicamente determinada sobre o teatro), mas que responde antes às ideias de “endlessness” e “objectlessness”, bem como à construção de uma situação que convoca o observador. Fried fala da “sheer persistence with which the experience presents itself” (1967: 159), e de facto o choro transbordante de May Lin é de tal forma impositivo que nos obriga, espectadores do filme, a tomar posição. Ao contrário do homem do jornal, temos de suportar ou reagir ao desconforto, recusarmos a emoção ou comovermo-nos também. Se o final é aberto, assim também o espaço que o filme escava para nós, como um parque por inaugurar.

Outro exemplo, contemporâneo do texto de Fried: em Bande à part (1964), de Godard, imediatamente antes da famosa cena de dança no café onde a voz off interrompe a música enquanto o som diegético das palmas e dos passos persiste, há um momento em que Franz (Sami Frey) sugere que os três protagonistas façam um minuto de silêncio. Odile (Anna Karina) conta até três e a banda sonora é cortada abruptamente. Poderia pensar-se que se trata de uma brincadeira (modernista) em que o cinema afirma a sua materialidade, substituindo o silêncio das personagens pela rasura de qualquer som, diegético ou outro; mas basta ter visto o filme em sala para perceber que esses segundos pertencem à plateia, cuja presença (tosses, movimentos, sacos de plástico, sussurros) subitamente se faz sentir. Tal como os 4’33’’ de John Cage (contra quem Fried também se insurge), esta é uma situação teatral, experiência insaturável que é responsabilidade do público preencher e ocupar. “Une vraie minute de silence, ça dure une éternité”, diz Franz.

Na entrevista de onde vem a epígrafe, Rivette propõe um cinema e um teatro onde o que conta é o “refus de l’idée du spectacle, et au contraire l’idée d’épreuve, sinon imposée, du moins proposé au spectateur” (1968: 311). A teatralidade de cinema que aqui se propõe é uma prova (ou provação) da duração e do tempo perceptivo que resiste, insiste ou persiste. A entrevista de Rivette chama-se “Le temps déborde”. Não há razão para parar.

 


Referências
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BROOK, Peter (1968). The Empty Space. Londres: Penguin Books, 1990. Impresso.
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FRIED, Michael (1998). “An Introduction to My Art Criticism.” Art and Objecthood: Essays and Reviews. Chicago: The University of Chicago Press. Impresso.
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LIM, Dennis (2001). “Tsai Ming-liang Opens the Floodgates.” The Village Voice, 26 de Junho de 2001. Web. 1 de Setembro de 2013. http://www.villagevoice.com/2001-06-26/film/tsai-ming-liang-opens-the-floodgates/
MOURLET, Michel (1959). “Sur un art ignoré.” Sur un art ignoré. La mise en scène comme langage. Ramsay, 2008. 33-56. Impresso.
RANCIÈRE, Jacques (2004). “Les écarts du cinéma.” Trafic nº 50, Verão 2004: 159-166. Impresso.
RIVETTE, Jacques (1968). “Le temps déborde.” Entrevista com Jacques Aumont, Jean-Louis Comolli, Jean Narboni e Sylvie Pierre. La Nouvelle Vague. Ed. Antoine de Baecque e Charles Tesson. Paris: Cahiers du Cinéma, 1999. 264-314. Impresso.
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Notas

[1 ] “[W]ithin theater itself, […] the need to defeat what I have been calling theater has chiefly made itself felt as the need to establish a drastically different relation to its audience. (The relevant texts are, of course, Brecht and Artaud.)” (Fried, 1967: 163).

[2 ] Itálicos sempre de Michael Fried (e assim também para os restantes autores citados).

[3 ] Tanto a empresa minimalista como o livro de Brook abrem caminho à crítica institucional e à procura de outros lugares para as artes plásticas e o teatro (site-specific é um termo comum a ambos os campos, e representa o abandono de um espaço privilegiado). Mas este não é ainda esse momento. Note-se ainda que o “espaço vazio” não corresponde à ideia de teatro de Brook (embora seja uma ideia de teatro): é antes a sua condição de possibilidade. Falando da pintura, Fried cita Clement Greenberg quando este escreve que “a stretched or tacked-up canvas already exists as a picture – though not necessarily a successful one” (cit. em Fried, 1967: 152), para depois desmontar em nota a leitura essencialista do modernismo segundo Greenberg: “flatness and the delimitation of flatness ought not to be thought of as the ‘irreducible essence of pictorial art,’ but rather as something like the minimal conditions for something’s being seen as a painting” (1967: 169).

[4 ] Já pronto, o New Jersey Turnpike tornou-se um ícone da experiência americana: basta referir as canções de Simon and Garfunkel (“America”), Chuck Berry (“You Can’t Catch Me”) e Bruce Springsteen (“State Trooper”). A primeira sugere uma série infinita (“Counting the cars on the New Jersey Turnpike”) e as viagens (noturnas como a de Smith) das outras duas confrontam-se com a possibilidade de serem interrompidas pela polícia (em Berry no modo do desafio do título, em Springsteen no da angústia – que é também angústia da influência, já que cita a canção de Berry).

[5 ] Hal Foster vê na transição do modernismo para o minimalismo uma rutura que transfere a tónica da ontologia da obra para a sua epistemologia: “it focuses on the perceptual conditions and conventional limits of art more than on its formal essence and categorical being.” (1996: 40)

[6 ] (“And what was Smith’s experience if not the experience of what I have been calling theater?” (Fried, 1967: 159)

[7 ] Mas, ao contrário da pintura do tempo de Diderot, onde os dois significados se distribuem consoante o género escolhido pelo artista, no cinema não há incompatibilidade entre os dois modos da absorção. Mourlet chega aliás a sugerir que o segundo só é possível por causa do primeiro, sendo qualquer efeito de distanciação (brechtiana, claro, enquanto gesto que denuncia o dispositivo) uma forma de destruir “le pouvoir du spectacle” (1959: 43).

[8 ] É importante distinguir aquilo que aproxima a descrição de Smith de uma experiência cinematográfica em sentido geral, isto é, o seu parentesco com a cinefilia de Mourlet e Skorecki (e com a atitude de Diderot diante dos mais conseguidos quadros do género pastoral); e, por outro lado, o que faz dela uma experiência de cinema moderno tal como Bonitzer e Deleuze o definem.


Financiamento

Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação “Falso Movimento - Estudos sobre Escrita e Cinema” (referência PTDC/CLE-LLI/120211/2010), Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, financiado pela FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia.