Um Trágico Final Feliz |
A diferença entre tragédia e melodrama tem sido proclamada sempre que está em causa uma tentativa de salvaguardar a tragédia de qualquer promiscuidade entre os dois géneros, porque a tragédia é monumental, universal, heróica e é também trágica, isto é, acaba mal. O melodrama é mundano, trata de amor e paixonetas, mas não da ilustre condição humana, é demasiado sensacionista e acaba sempre bem. Reabrindo uma discussão sobre a tragédia grega, espero assinalar que também podemos encontrar no melodrama elementos fundamentais da tragédia e que é difícil ver no melodrama uma versão popular de baixa cultura da tragédia, uma vez que esta já encerrava os princípios da ficção popular. É certo que alguns elementos inesperados separam inegavelmente a tragédia do que entendemos por melodrama, como por exemplo o irracional aristotélico, mas interessa que essa diferença não assenta no final feliz, como se entende na grande parte da bibliografia dedicada a este assunto.
Esta discussão tem como base a Poética de Aristóteles, mais especificamente a contradição entre os capítulos 13 e 14. No capítulo 13 Aristóteles prescreve o final infeliz, ou a mudança da história para distuquia ou infelicidade, enquanto no capítulo 14 parece advogar uma preferência pela mudança para eutuquia ou final feliz, dando como exemplo a estrutura do reconhecimento na peça Ifigénia em Tauris de Eurípides. Nesta peça não há catástrofe, ou não chega a acontecer, o que, para muitos autores, se traduz numa anulação do trágico e numa incompreensível viragem de Aristóteles para os caminhos do melodrama e da arte vulgar.
Diz Aristóteles no capítulo 13:
É, pois, forçoso que um enredo, para ser bem elaborado, seja simples de preferência a duplo, como pretendem alguns, e que a mudança se verifique, não da infelicidade para a ventura, mas, pelo contrário, da prosperidade para a desgraça, e não por efeito da perversidade, mas de um erro grave, cometido por alguém dotado das características que defini, ou de outras melhores, de preferência a piores. Os factos demonstram-no: primeiramente, os poetas aproveitavam qualquer história ao acaso, e agora, as mais belas tragédias são compostas sobre um número reduzido de famílias, como, por exemplo, sobre Alcméon, Édipo, Orestes, Melagro, Tiestes, Télefo e quantos outros a quem aconteceu sofrer ou causar desgraças terríveis. Do ponto de vista da arte poética, esta é, por conseguinte, a estrutura da tragédia mais perfeita. Portanto estão igualmente errados aqueles que censuram Eurípides por fazer isto nas suas tragédias, muitas das quais terminam na infelicidade. Isto é, como se disse, correcto. A melhor prova disso é que, nos concursos dramáticos, as tragédias deste género, se forem bem feitas, revelam-se as mais trágicas e Eurípides, se é certo que não estrutura bem outros aspectos, mostra ser, no entanto, o mais trágico dos poetas.
Em segundo lugar, vem a estrutura considerada por alguns a melhor, isto é, a que é dupla como a da Odisseia e que termina de maneira oposta para os bons e para os maus. Parece ser a mais bela devido à tibieza do auditório: os poetas orientam-se pelos espectadores e compõem de acordo com as suas preferências: este prazer não é próprio da tragédia e sim essencialmente da comédia: aqui os que na história tradicional são ferozes inimigos, como Orestes e Egisto, saem, no fim, amigos, e ninguém mata ninguém. (1453a, 10-35).
E depois, no capítulo 14, Aristóteles prescreve um reconhecimento antes da catástrofe, ou pré-crime, coisa que não permite a tal mudança final para infelicidade, descrevendo ainda as circunstâncias possíveis para cometer o erro ou crime descrito em 13 – erro este que é sempre uma forma de ignorância e que se comete antes ou depois do Reconhecimento, anagnorisis:
E dentro deste campo não há outras possibilidades: as personagens, necessariamente praticam a acção ou não, com conhecimento ou sem conhecimento. Destes casos o pior é estar a ponto de, conscientemente, praticar a acção, e não a praticar: isto é repugnante e não é trágico, pois não se consuma o acto destruidor. Por isso ninguém procede assim (…) Em segundo lugar, o caso em que a acção é executada. Melhor é quando se age na ignorância e se descobre a relação de parentesco depois de o facto se ter consumado: isso não se nos afigura repugnante e o reconhecimento produz o assombro. O melhor caso é o último, ou seja, do género do Cresfontes, em que Mérope está a ponto de matar o filho e não o mata mas o reconhece; ou na Ifigénia, em que a irmã reconhece o irmão; ou ainda na Hele, em que o filho reconhece a mãe quando estava prestes a entregá-la.
Por isso, como anteriormente se disse, as tragédias não são sobre um grande número de famílias. Na verdade os poetas foram procurando e encontraram, não por arte, mas por acaso, o efeito a alcançar nos seus enredos. Tiveram então de se voltar para estas famílias, no seio das quais ocorreram sofrimentos desse género. (1453b, 35; 1454a,1-10)
Na situação de reconhecimento pós-crime, perante o ato consumado, Aristóteles diz que “o reconhecimento produz o assombro”; no caso do reconhecimento pré-crime, há alguém que vai para fazer uma coisa e acaba fazendo o contrário: “e não o mata mas o reconhece”. Trata-se, a meu ver e pela sintaxe escolhida, de uma ênfase no reconhecimento para o primeiro caso e de uma ênfase na peripécia para o segundo caso, posto que fazer uma coisa e ter o resultado contrário remete para a própria definição de peripécia no capítulo 11, “a mudança dos acontecimentos para o seu reverso”. Qualquer deles é bom, mas segundo Aristóteles talvez o segundo seja melhor, ou seja, a ênfase na peripécia, no twist, que não deve ser interpretada apenas como uma preferência pelo final feliz.
No capítulo 13, o trecho termina com o exemplo de Orestes e Egisto, inimigos mortais, exemplo que, quanto a mim, serve para sublinhar o elemento surpresa. É de facto surpreendente que inimigos mortais não se matem. Nesta passagem não me parece que Aristóteles esteja a falar contra um final feliz, mas antes contra uma má surpresa. Neste caso o que o poeta fez foi surpreender o público de uma maneira errada, contra os universais, a verosimilhança e a coerência do ethos. Porém, retirar a violência do argumento, quer acabe bem ou mal, é anular a possibilidade trágica numa situação tão cómica quanto Deus e o diabo a jogar às cartas, ou Zeus e Prometeu juntos num churrasco: o exemplo de Orestes e Egisto é, pois, apático. Pathos, reconhecimento e peripécia constituem a soma das partes que compõem o mythos complexo, por oposição ao mythos simples que tem apenas pathos. Claramente Aristóteles descreve a receita hollywoodiana mais velha de sempre: give the public what they want, but not the way they want it. A construção da surpresa não pode ser feita de qualquer modo, todavia ela não depende da felicidade ou infelicidade do final. Eurípides, por exemplo, vem anunciando n’As Bacantes um banho de sangue, através da história de Actéon evocada por Cadmo. Em certo ponto da peça o público já está à espera de grande violência, seria um erro não lha dar. Penteu, como Édipo, está iludido quanto ao seu próprio poder e informação, neste caso é o reconhecimento que produz o assombro, não há peripécia surpreendente. Por outro lado, Orestes e Egisto não fazem uma boa tragédia porque são inimigos e a tragédia trata aqueles que são amigos ou parentes, philoi, mais precisamente – é certo que também se pode conseguir efeito trágico com inimigos, uma solução menos comum; nesse caso tem de haver benefício entre inimigos e não prejuízo entre amigos. Esta outra stock action é muito utilizada no cinema atual: teríamos por exemplo Egisto comendo e dançando com Orestes sem saber que se trata de Orestes, nesse caso o assombro e o temor advêm da situação perigosa de “dormir com o inimigo”.
Quando, no capítulo 13, Aristóteles diz que a história deve impreterivelmente passar à infelicidade, ou terminar em infelicidade – em aparente contradição não só com o capítulo 14 mas com outros pontos da Poética em que ele sublinha a flexibilidade do final em felicidade ou infelicidade, como que salvaguardando a surpresa –, e que essa é a maneira correta de fazer tragédia, está na verdade a dar-nos o molde de qualquer história: nenhuma narrativa será capaz de suscitar temor e piedade sem o sofrimento e a possibilidade de sofrimento, ainda que acabe em felicidade. Nenhuma história relata algo que corre bem e que depois corre ainda melhor, toda a ficção descreve um problema, um perigo, um segredo, um imbróglio, um impasse, uma perversão, um erro, um azar ou uma perda. Como é que alguém pode “cometer um erro grave” e passar por ele à felicidade? Não pode; ainda que lhe esteja reservado um final feliz, como sempre esteve na larga maioria das tragédias. Quer nas tragédias de parte independente, quer nas tragédias de três partes, cuja felicidade fica reservada para a terceira (v. Wise, 2008), a história de alguém que se safou de um perigo é, ainda assim, a história de um perigo. Deste modo, a passagem à infelicidade do capítulo 13 é uma inferência do molde aí apresentado:
homem como nós> erro> catástrofe.
O final feliz de Ifigénia é apenas mais um ato num exemplo de virtuose narrativa:
…catástrofe> salvação.
Ao dizer que as tragédias de Eurípides terminam mal, Aristóteles está na verdade a dizer que as tragédias de Eurípides seguem a metabasis desejada, a única que pode representar um homem normal cometendo um erro e não dois homens, um bom e um mau. A felicidade é obrigatória apenas nos casos do final duplo, em que tem de haver recompensa do bom e castigo do vilão.
Ao falar dos reconhecimentos, no capítulo 11, Aristóteles concentra-se novamente no exemplo de Ifigénia, e não só na peça de Eurípides mas também na de Poliido que propõe um reconhecimento por silogismo em que Orestes lamenta a ironia de ter o mesmo destino que a irmã e é justamente por esse lamento que ela o reconhece. É uma solução menos rebuscada que a de Eurípides mas pior, uma vez que a de Eurípides decorre do encadeamento dos factos (Ifigénia expõe a sua identidade numa carta que deseja que Orestes leve para Argos). Dois poetas constroem um enredo diferente, mantendo fidelidade ao mito, pois provavelmente a história rezava que Ifigénia foi feliz com Pilades e que Orestes governou a casa de Agamemnon logo, o crime nunca poderia acontecer, o reconhecimento tinha de dar-se antes do ato terrível. Tal como o reconhecimento de Édipo tinha de dar-se depois do ato terrível, já que esse ato decorreu na juventude e não na idade adulta, é “um crime antigo”. É certo que assim a história de Édipo parece acabar mal, mas os cidadãos de Tebas salvam-se e, de qualquer forma, a estirpe de Édipo era geneticamente inviável.
Caldwell (1974: 30) diz-nos que o reconhecimento ifigénico, ou pós-crime, é a negação do trágico. Mas, noutra perspetiva, esse reconhecimento também assume a tragédia, ele acentua o momento em que haveria tragédia; o momento em que o murder among friends acontece, para citar Belfiore (2000). Porém o momento daquele reconhecimento fecha apenas um episódio na nota positiva e não necessariamente toda a história. Em Ifigénia os três gregos ainda têm de fugir de Tauris, iludir Thoas e escapar à fúria de Poseidon. O mal e o perigo estiveram sempre presentes, eles são a própria história. As emoções trágicas, por outro lado, duram exatamente o mesmo tempo que em Rei Édipo ou noutra peça qualquer, isto é, duram até ao momento da catástrofe. Depois da catástrofe ou do reconhecimento, o temor acaba, quer o mal aconteça quer não. Se não aconteceu torna-se alívio, se aconteceu torna-se lamento, mas já não é temor. Por isso, em absolutamente nada o temor e a compaixão ficam afetados. Ora, quando já não há temor e compaixão é que já não estamos perante uma tragédia, podemos estar perante um velório, mas este não é sinónimo de tragédia. Pior ainda: as emoções que perduram para lá do ato terrível são exatamente aquelas que Platão condena – choro, lamento, comiseração –, por isso convém, por exemplo, que o reconhecimento pós-crime se dê mesmo no final da peça, como no caso de Édipo, já que as emoções que se lhe seguem são de evitar. O temor é, como explica Aristóteles na Retórica, a antecipação de um mal terrível, pode ser entendido como suspense, e deixa de existir para lá da catástrofe, ponto a partir do qual já não se produz a emoção certa, por isso Eurípides tem de continuar a gerar obstáculos e perigos no caminho dos três gregos, para que a tragédia não acabe. Sendo, tal como o melodrama, puro entretenimento, vale na tragédia antes a viagem entre eutuquia e distuquia do que propriamente o valor do final. Nem nenhuma história acaba definitivamente, nem o lugar da felicidade tem de ser num trono, numa absolvição apoteótica, ou num banquete, mas naquele que salvou a vida por um fio. Aquilo que vicia neste tipo de ficção não é o alívio mas justamente a alternância entre sufoco e alívio. Este é o prazer de que fala Aristóteles na Retórica: “São ainda agradáveis as aventuras e o salvar-se por pouco dos perigos, pois todas estas coisas causam admiração” (1371b); quanto mais mudança de estado houver, mais o interesse do leitor está garantido, pois mais metabasis é mais esforço e técnica na construção do mythos. Isto é o mesmo que entender a tragédia como o movimento perpétuo e extenuante da vida, representado numa única revolução solar, o sempre num instante: “Un seul jour abat et relève les destinées humaines” (Ajax, 107149).
Moles (1979) não hesita em associar o reconhecimento ifigénico à surpresa e ao suspense: “In the fourth category, however, that of realization before action, the dramatic tension mainly springs from the fact that the dramatist could create tremendous suspense by posing the audience the question: will the pathos take place or not”. Mas, discordando, também é verdade que há um suspense tremendo nos casos de Édipo e de Penteu. O suspense é o mesmo, como mantenho, simplesmente no caso de Édipo não se contrariam as expectativas do público, apenas se contrariam as expectativas da personagem. Ainda que nunca deixemos de usufruir da surpresa das personagens, a surpresa do molde do capítulo 14, pré-crime, é uma surpresa que evita o lamento e o choro, emocionalmente mais eficaz, uma vez que é dirigida às expectativas da audiência e não da personagem. O problema consiste aqui, e relativamente a Moles e outros, em perceber que um incremento na surpresa ou no temor não é apenas um incremento do fator melodramático mas trágico também, pelo que a distinção entre os dois tipos de reconhecimento não é relevante para distinguir tragédia de melodrama.
Embora Moles não vá tão longe quanto Stinton ao dizer que Aristóteles propôs o melodrama e rejeitou a tragédia, Moles também conclui que Aristóteles não seguiu o caminho da tragédia elevada: “Stinton is therefore right to see a falling off from the profound insights of Ch. 13 (…) nevertheless the theory that Aristotle is thinking in terms of suspense and excitement in ch. 14 does at least provide a rational basis for his preference for the formula of realization before action.” (Moles, 1979: 92). Ora o problema, quanto a mim, não está em Aristóteles mas na tragédia grega em geral: entendê-la à luz dos coros grandiosos de Ésquilo é o mesmo que entender todo o cinema do século XX à luz dos épicos de D. W. Griffith. Stinton diz que a configuração apresentada no capítulo 14 é o
typical schema for melodrama rather than the best kind of tragedy, and it is disappointing to see the penetrating insight of ch. 13 replaced by such a facile formula. (…) In his moral philosophy his second thoughts would appear always to have been more subtle and profound, but in the Poetics this seems not to be so. (1975: 253)
Halliwell (1986: 225 e ss.), por outro lado, defende que Aristóteles não exclui um final feliz ou infeliz mas sim um final previsível e sem respeito pela inteligência do espectador. Se a diferença no valor dos finais não serve para distinguir tragédia de melodrama, o mesmo não se passa com a colocação do contraste de valor na mesma personagem e não em duas personagens, o bom e o vilão. Acrescente-se que, logo no capítulo 7, Aristóteles diz que a história pode mudar da infelicidade para a felicidade e que, no capítulo 11 diz que do reconhecimento e da peripécia depende o ser-se infeliz ou feliz. E, finalmente, no capítulo 18, temos: “Entendo por nó o que vai desde o princípio até ao momento imediatamente antes da mudança para a felicidade ou para a infelicidade.” (Po. 1455b, 25) São demasiadas referências a um final feliz para supor uma regra de final infeliz para a tragédia. Vale portanto agora apenas a regra do final duplo (que implica duas personagens, a boa e a má) para distinguir os géneros.
Gallagher (1965) e outros definem o melodrama como “black and white drama”, ou orientação para o moralismo do final duplo, cuja invalidade Aristóteles reitera ao assinalar que a simpatia, ou philantropia, (Po. 1453a, 3) não é uma emoção trágica, sendo suscitada pelos enredos em que um homem muito mau cai em desgraça ou, por inferência, em que um homem muito bom sobe à felicidade. De facto, ao longo da Poética, Aristóteles parece evitar conscientemente os caminhos do melodrama, nomeadamente na que para mim é uma das mais importantes passagens da Poética:
Não deve julgar-se se alguém diz ou faz alguma coisa bem ou mal unicamente pelo que é feito ou dito, examinando se é bom ou mau, mas considerando também quem faz ou diz, para quem ou quando ou a quem ou por que motivo: se, por exemplo, é para conseguir um bem maior ou para evitar um mal menor. (1461a, 5-10)
Com este parágrafo está posto de parte o moralismo asténico, conforme à “tibieza do auditório”, ou a escolha óbvia entre bem e mal, e está instaurado o dilema trágico. O drama de Aristóteles não é melodrama, é a zona cinzenta, a zona de Sófocles, mais ainda que a de Eurípides, cujos maus são redondamente maus “como Menelau no Orestes” (Po. 1461b, 20). Dizermos, como Gallagher e outros (ex. Thompson, 1928), que a estrutura trágica representa o dilema moral e não o moralismo, é simplesmente dizer que a estrutura trágica não é a do final duplo.
Gallagher (1965), ao contrário de Neale (1986), apresenta como principal característica do melodrama, na linha de Stinton e Else, o facto de a acção deste colocar “a removeable threat” e segue explicando que este mecanismo permite pôr em perigo a pessoa virtuosa, epieikeis andras, que é depois salva no último minuto. Todavia, os mesmos autores que assinalam a incompatibilidade do molde trágico com um final feliz não consideram nessa discussão a recusa de carácteres “inteiramente bons”, ou seja, que não cometem erros, como pedra basilar da tragédia. Lembremos novamente que a Ifigénia e o Orestes salvos no último minuto – ela de cometer um crime de sangue e ele de morrer assassinado – não são completamente virtuosos: Ifigénia tem sede de sangue e vingança e Orestes sofre a mácula psicótica do crime matricida. Quando Gallagher afirma que “melodrama divides men into two distinct moral classes: good and bad” (Gallagher, 1965: 2), temos de notar que estas são justamente as duas classes de homens que Aristóteles rejeita no início do capítulo 13, quando ainda nem se refere explicitamente ao final duplo.
Moles (1979) menciona um aspeto importante para esclarecer a posição de Aristóteles, notando que o crime que não chega a acontecer pode ser encenado em palco, isto é, o encenador não é obrigado a fazer viver esse momento crítico fora do palco, nem a utilizar tinta vermelha no palco: “the dramatist could exploit the emotions of His audience in a more direct way than was possible by relating the details of the killing in a speech or choral ode” (85). O comentário de Moles está de acordo com a minha tese (Melo, 2011), reafirmando que a estrutura narrativa proposta por Aristóteles é concebida pelo molde audiovisual e não literário – entre todos os elementos explicativos desenvolvidos em Melo (2011), saliento que só a própria comparação de Aristóteles entre tragédia e épica aponta para um modelo audiovisual da primeira, assente na sua unidade de ação e ausência inevitável de ação-paralela, ou de vários focos de ação, que o modelo escrito permite. Tenho ainda como evidência de um molde audiovisual a atenção de Aristóteles ao que é proposto estar fora e dentro de cena.
Por outro lado, acrescenta Moles, há ainda a questão de Aristóteles ter o cuidado de defender a tragédia dos ataques de Platão, como que fazendo da tragédia algo mais digno e menos lamentoso, impedindo os golpes de violência. Se é certo que Aristóteles é pró-trágico, relativamente a Platão, não me parece que o seja pelos mesmos motivos que Moles designa. Para Moles, Aristóteles defenderá a tragédia menorizando a violência, mas, quanto a mim, essa defesa já está garantida nos dois tipos de emoção que Aristóteles permite: o temor e a compaixão, tais como descritos na Retórica, altamente socializantes, racionalizantes e distintos do terror, já que este, sim, tolda o pensamento e constitui uma espécie de degeneração daquelas duas emoções que desfaz o equilíbrio mimético entre distanciamento e aproximação do mal. Assim inclino-me apenas para a hipótese de a preferência pelo reconhecimento pré-crime ser mais surpreendente e mais eficaz no suporte audiovisual. Por outro lado, Moles também insiste em que os limites do terror podem ser facilmente ultrapassados se o crime não vai acontecer, mas isto não só implica estabelecer limites para o ato terrível, coisa que parece não existir para o grego – nada parece ser terrível de mais para uma tragédia: os músculos de Hércules derretem, os olhos de Édipo são espicaçados, o cérebro da noiva de Jasão explode, o mal tem de ser uma coisa terrível, e uma coisa terrível é o estropiamento, a perda e a dor física –, como também implica que as peças de reconhecimento pré-crime tenham mais suspense que as de reconhecimento pós-crime, o que não é verdade, pois Rei Édipo e As Bacantes são imbatíveis em thrill. Em Antígona um reconhecimento pré-crime poderia constituir o tal ato adicional: se Creonte chegasse mesmo a tempo de apanhar o corpo de Antígona antes de cair da forca, seria talvez excitante, mas perder-se-ia aquele tropos de levar Creonte até ao fim da linha – “j’était mort et tu me tues” (Ant. 1284-1316) –, até às últimas consequências da desgraça. Creonte deve sofrer pela sua intransigência, salvar Antígona no último minuto seria também salvar Creonte. Neste caso o reconhecimento deu-se tarde de mais, o que, para alguns autores que citarei adiante, é, afinal, a solução mais melodramática de todas.
Se a maior parte dos autores lamenta a cedência de Aristóteles ao final feliz, Wise (2008) lamenta a cedência ao final infeliz, assinalando que a preferência de Aristóteles “gives birth to his famous theory of of tragedy, a theory founded on what can only be described as an unsupported prejudice in favour of unhappy endings” (2008: 383). Wise prossegue o artigo provando não só que a maior parte das tragédias tinha de facto um final feliz, como também que Aristóteles não tinha meios para conhecer as tragédias na íntegra, dado que em voga no século IV estavam apenas reposições incompletas, ou récitas, em que os actores mais famosos escolhiam as partes de maior dramatismo e intensidade a fim de receber o prémio de melhor actor, razão pela qual “we have little choice but to realize that Aristotle probably never saw a complete fifth-century tragedy – nor how it ended“ (400). Tal parece-me pouco provável, primeiro porque, pelo menos quanto à peça que é exemplo de base da Poética, Rei Édipo, Aristóteles está ciente de todo o enredo, daquilo que está dentro da cena e fora da cena; segundo, pela insistência de Aristóteles na coesão da história como todo com princípio, meio e fim – de qualquer modo é evidente que Aristóteles não tinha à mão um DVD para retificar a informação que nos dá. Wise conclui que se a estratégia de final infeliz de Eurípides é a “mais trágica”, se ele não tinha sucesso com a crítica e se não ganhava os concursos, é porque a regra seria o final feliz. Todavia, tragédia é tragédia, como vimos. É claro que Wise nem refere As Bacantes, talvez uma das poucas peças de Eurípides a ganhar o primeiro prémio, uma das mais violentas de sempre, com uma crua moral e um terrível final. Por este motivo, mesmo deixando de parte a Poética, procuro nunca me desviar da ideia de que a tragédia era entretenimento popular à maneira do cinema actual e que o grego, tal como nós, se interessa especialmente por pornos e pathos. Não obstante, concordo com Wise na medida em que a maior parte das tragédias veicula uma moral positiva, quer contra a luta fratricida, quer a favor da justiça e da democracia (nas piores tragédias de Eurípides os “maus” são sempre pessoas que não ouvem, que não dialogam e que fogem do escrutínio democrático ou plural), quer ainda a favor da glória e perfeição de Atenas. Mesmo em Rei Édipo posso identificar a moral dos perigos de uma condenação precipitada e sem provas e da justa troca de um por todos: Édipo pelos cidadãos de Tebas. Aristóteles parece saber que as pessoas não compram o bilhete para ver o que corre bem mas o que corre mal, ou o que podia ter corrido mal.
Por mim, e ao contrário de outros autores que vêem na experiência trágica algo de profundamente catártico, ou místico ou fraturante, subscrevo a ideia de que a experiência dos concursos era essencialmente positiva, de grande prazer e diversão, terminando na salutar ironia que ri do problema humano, não fosse a peça satírica apresentada no final de Rei Édipo intitulada Esfinge. O problema de Wise passa por associar final infeliz com depressão profunda, mas ninguém sai deprimido dos banhos de sangue de Tarantino. Wise chega mesmo a relembrar o caso de Frínico, julgado e condenado por relembrar os atenienses do saque de Mileto numa peça teatral, para reiterar a regra do final feliz. Pace Wise, parece-me que este poeta foi condenado por ser anti-patriótico e não por ser deprimente. Imaginem na Alemanha de 40 um filme chamado “Dia D”. Embora Wise conclua: “Because he ignores such matters. Aristotle ends up with a much more lugubrious theory of the genre than is warranted” (395), foi justamente ao ler a Poética e a Retórica que me apercebi de que a tragédia é um espetáculo de entretenimento e prazer (vd. Melo, 2011). Ainda que, como explica Wise, os atores escolham os excertos mais dramáticos de Eurípides e Sófocles por permitirem melhor demonstração da arte de representar, não é provável que Aristóteles confunda o todo com a parte e que por isso corrobore o final infeliz, para além de que a questão deve ser vista nos termos da audiência, colocando a hipótese de os atores escolherem esses trechos justamente por serem os mais apreciados pelo público, sedento de pathos. Por outro lado, se houve alguma preferência dos atores por Eurípides, isso pode estar relacionado com o facto de só as personagens de Eurípides permitirem tudo o que o ator antigo e moderno anseia: subtexto. Para além disso, Aristóteles parecia ciente da diferença entre poetas do século V e IV, já que nos diz que os primeiros falavam como políticos e os segundos como retores (Po 1450b, 5). Porém o artigo de Wise tem o mérito de finalmente propor a dissociação entre final infeliz e tragédia, o que acarreta consequências interessantes para a visão steineriana da tragédia. “Na verdade os melhores filmes de Hollywood não têm um final feliz no sentido fabuloso ou ‘feliz para sempre’, acontece sim o herói escapar com vida ou conseguir o que quer, mas fica sempre no ar o preço que pagou por isso. Nos grandes filmes, nos bons filmes, como na tragédia, o triunfo final não pertence ao herói mas à Verdade (ou a Apolo, se quisermos), o que para mim corresponde a um final feliz” (Melo, 2011: 159); apesar do Óscar para melhor filme, alguns clássicos como All About Eve, Mutiny on the Bounty, Rebecca, Casablanca, Gentlemen’s Agreement, The Deer Hunter, One Flew Over the Cuckoo’s Nest, Kramer vs. Kramer e American Beauty, não têm propriamente um final feliz.
Steve Neale (1986) dá-nos uma definição de melodrama baseada na análise fílmica e não literária, sem qualquer relação com a tragédia grega, e no entanto parece aplicar-se-lhe com justeza:
melodramas are marked by chance happenings, coincidences, missed meetings, sudden conversions, last-minute rescues and revelations, deus ex-machina endings. Melodramatic narration involves continual surprises, sensational developments, constant violations in the established direction of events, breathtaking peripety. (6)
Ora o ponto que quero sublinhar nesta pequena descrição é o irrealismo do melodrama e as soluções ex-machina, contra as quais Aristóteles é determinado e inflexível. A universalidade da ação, que entendo por realismo, é preceituada várias vezes ao longo da Poética, os finais ex-machina são considerados a forma errada de produzir surpresa, peripécia e dramatismo; entendido como excesso dramático, o ex-machina entra na categoria do melodrama: “an excess of effect over cause, of the extraordinary over the ordinary. Hence the emergence of terms like Fate, Chance and Destiny. They mark a narrative logic irreducible to the conventional forms of social and psychological” (7). Ao desenvolver o seu pensamento nas áreas do cinema popular e da televisão, Neale fornece-nos pistas importantes para a compreensão da Poética, permitindo-me avançar a ideia de que ao erradicar a dimensão divina do seu modelo trágico – facto tido como principal lacuna no modelo de Aristóteles, e como incompreensível insensibilidade artística e filosófica ao fenómeno religioso, tido como essencial na experiência trágica (vd. Hall, in Rorty, 1992) –, Aristóteles, que já havia promovido a elevação da tragédia acima do melodrama com a recusa do final duplo, muito mais o faz agora com a recusa do alogon, ou irracional. Ao colocar a ação no foro do humano e do universal, sem qualquer referência relevante aos deuses, Aristóteles está talvez considerando aquilo que para nós é essência da tragédia – a voz dos deuses – como essência do melodrama, provavelmente assumindo uma postura filosófica contra a superstição popular, mas sobretudo contra o drama de má qualidade.
Ainda que Aristóteles pareça corroborar o melodrama ao dizer que o bom poeta dissimula o absurdo e que “escrever coisas impossíveis é errar; mas está correto se o objetivo próprio da arte (objetivo esse já mencionado) for alcançado, se dessa forma se conseguir que uma ou outra parte se torne mais impressionante” (1460b, 20-30), é necessário ter em conta que Aristóteles não confunde verdade com verosimilhança (que também interpreto como realismo) e que esta última nunca está em causa, não só porque dela depende o “impressionante”, mas também porque a Poética não é a Política, esta sim colocada no âmbito da verdade (Po. 1460b, 10). Thompson (1928) remata a difícil caraterização entre melodrama e tragédia, dizendo que, apesar de tudo, a “illogicality” não serve de denominador comum ao melodrama porque “It is, on the contrary, in great tragedy if anywhere that we shall find a serious imitation of the operation of chance in life”, uma ideia já avançada por Aristóteles, que Thompson nunca cita, dizendo que a tragédia imita a vida mas que, por vezes, o acaso também faz parte da vida: “Com efeito, é verosímil que possa acontecer alguma coisa contra a verosimilhança” (1461b, 15), ou seja, o azar também pode vir do nada.
Neale descreve depois o melodrama como uma estrutura específica de conhecimento e desconhecimento, em que o leitor sabe mais do que a personagem – curiosamente esta é a definição hollywoodiana para ironia dramática, por oposição a mistério, e a mais próxima da tragédia grega –, sendo levado a desejar ardentemente, de preferência chorando, que a personagem saiba o mesmo do que ele, leitor. Tão simples quanto isto. O pico emocional dá-se quando o seu ponto de vista convergir com o da personagem, sempre tarde de mais. Assim, choramos quando Rosita finalmente percebe quem é o amor da sua vida, quando Édipo finalmente percebe quem é, quando Creusa percebe quem é o filho, quando Ajax percebe que os bois não são homens, etc. Ora, esta formulação indica que, ao contrário do que se tem escrito, é justamente a solução do capítulo 14 que é a menos melodramática. Neste encontro e desencontro de perspectivas, o fator temporal assume uma importância extrema. A sensação de que o tempo escasseia e de que o reconhecimento se dará tarde de mais é essencial no melodrama, escorrem sempre mais lágrimas caso o reconhecimento venha tarde de mais, de novo fica proposta a ideia contrária à de Stinton e Moles. De facto, se o tear jerking é a pedra de toque do melodrama, Rei Édipo e congéneres serão muito mais melodramáticas que outras peças dadas como melodramáticas. Um exemplo típico é o do momento em que o pai morre e o filho, que nunca se conciliou com ele, percebe, tarde de mais, que o amava, exigindo então os momentos de lamento e choro depois da catástrofe que Platão criticou. Neale prossegue, explicando que a um problema temporal o realizador pode substituir ou adicionar um problema espacial, por exemplo: quando vemos duas pessoas à procura uma da outra numa multidão, chegando quase a tocar-se mas sem se verem. Aqui “the poignancy stems from the discrepancies between them, are articulated in terms of optical point of view.” (Neale, 1986: 9). É o caso quando Electra chora e lamenta a morte do irmão mesmo diante de Orestes. Neale prossegue assinalando exemplos em que o melodrama ocorre melhor nos reconhecimentos tarde de mais, como Imitation of Life de Douglas Sirk (1958) e Some Came Running de Vincente Minelli (1958). Estas são histórias que incitam o desejo de “se ao menos”, se ao menos ele tivesse chegado mais cedo, se ao menos… (Neale, 1986: 12). É esta falha na convergência das perspetivas do leitor e da personagem que nos faz desejar em Letter From an Unknown Woman, de Max Ophüls, que Stefan veja em Lisa a dedicação de uma vida, três vezes dele, e não apenas uma paixão fátua; ou em Wuthering Heights, de Wyler, que se Heathcliff tivesse ao menos ouvido a parte certa do desabafo de Cathy ninguém teria sofrido.
Quanto ao prazer das lágrimas, e ao lugar do melodrama, Neale avança uma explicação psicanalítica: “The root of this wish [o de amar e ser amado] lies in a nostalgic fantasy of childhood characterized by union with the mother: a state of total love, satisfaction and dyadic fusion” (17). O exemplo é Intolerance de Griffith e os melodramas de Borzage e Minelli, em que “the characters are permanently and neurotically scared by a fundamental loss and separation from the mother, by the dissolution of a union they wish desperately to restore” (18). Nesta perspetiva, Rei Édipo torna-se mais do que melodrama, torna-se paramelodrama. A união com a mãe – ou com o pai, numa sociedade tão excessivamente patriarcal como a grega – é desconstruída, destruída e explorada visceralmente em Rei Édipo, Electra, Antígona, Íon, Oresteia, Medeia, As Bacantes, A Loucura de Hércules, As Troianas, Andrómaca, Hipólito, Ifigénia em Aulis, etc. O cerne do melodrama parece pois ter florescido na tragédia grega. As lágrimas, diz Neale, “arise in childhood as a consequence of loss, the loss, particularly of a sense of union with the mother” (21) como expressão de um desejo e de uma fantasia, a fantasia de que há alguma possibilidade de o desejo ser cumprido, um desejo de restauração e união. É neste limiar de esperança e adiamento que o melodrama e, quanto a mim a tragédia também, atua magistralmente. Em Otelo, Shakespeare diz isto mesmo: “When remedies are past, the griefs are ended”. O fim absoluto, como explica Neale, não faz chorar, mas a remota possibilidade de salvação ou união faz, e é este também o pensamento trágico descrito por Jarrett-Kerr (1965: 369). O mecanismo principal para esta transmissão consiste na exposição da inexorabilidade do tempo, choramos porque parece ser tarde de mais, choramos porque Marco perdeu a mamã na estação por um segundo, na verdade choramos porque somos mortais, ou temporais. A sensação melodramática é a de que tudo aconteceu tarde de mais e de que, no entanto, tudo podia ter sido possível, se Marco chegasse um pouco mais cedo, se Édipo chegasse à encruzilhada um pouco mais tarde. Ao ler o artigo de Neale somos levados à conclusão de que o melodrama pode ser tão universal e grandioso quanto a tragédia, tão concentrado na falha humana, também ele encontrando expressão no arquétipo junguiano da união com a mãe, veículo dos arquétipos do inconsciente coletivo, que Jung descreve como o repositório das reações ancestrais típicas do humano face a situações universais como a luta com o poder superior, o medo, a morte, o amor e o nascimento, ou a temporalidade. Afinal, qualquer forma bem-sucedida de entretenimento, elevado ou não, duplo ou simples, tem de incidir numa dimensão universal, no âmbito mais fixo daquilo que entendemos por natureza humana, um conceito a que os intelectuais do século XX, desde o existencialismo, procuram escapar como quem foge do lugar-comum.
Thompson (1928) avança uma hipótese que depois infelizmente descarta, mas que me parece absolutamente correta, que é a de a diferença entre os dois géneros, melodrama e tragédia, ser uma questão de receção, dependendo do leitor e não da obra. Se Rei Édipo hoje é para mim uma grande tragédia, nos meus tempos de adolescente foi apenas um melodrama exagerado e piegas. Otelo, o mais das vezes classificado como melodrama, é-o se for a história de um homem ciumento, mas é tragédia se for a história de um profundo complexo de inferioridade. Orestes tanto pode lutar para contrariar as forças do destino como simplesmente para governar a herança do pai, depende do olhar. Thompson resolve a questão dizendo que, no melodrama, o temor, fobos, se prende com alguma especificidade da acção, e que na tragédia se prende com o todo da ação e com a lição universal (Thompson, 1928: 828), o que, quanto a mim, não é válido como critério, porque a mesma ação tanto pode ser encarada na sua particularidade como na sua universalidade. Por esta razão Thompson remata dizendo que não há lágrimas na tragédia, porque o tipo de medo e piedade trágicos são diferentes dos seus correspondentes melodramáticos. Por isso não temos vontade de chorar ao ver um Otelo, Prometeu ou Orestes, “because in the grandeur of their being they are greater than we are. We do not weep at the death of Cordelia, because she has a power and a firmness in her nature which defy our analysis” (831). Ora, para mim esta não é a razão pela qual não choramos perante estas personagens e choramos perante Rei Leão ou Cinderela, mas tão-somente porque aqueles heróis são de certa maneira culpados do erro que cometeram, contribuíram com livre arbítrio, proairesis, para a catástrofe final ou preterida, enquanto o pequeno Simba e a doce Aurora são sempre absolutamente inocentes. Para além do mais “greatness e strength” mais não são de que condições indispensáveis para uma personagem ótima: um magnata poderoso tem muito mais potencial trágico e dramático do que um sem-abrigo.
Mas ainda não está clara a razão pela qual há prazer no choro e na dor. Se para Aristóteles a resposta depende da mimese – na medida em que o cadáver representado nos dá prazer, mas o referente real não (Po. 1448b, 10) –, Neale acaba por nos conduzir a uma resposta semelhante: esse é um prazer que está relacionado com a fantasia da ficção, nenhum espectador quer que a história acabe. O final feliz significa também o fim absoluto da história, e se é certo que o final feliz nos dá o prazer de uma conclusão, Neale sublinha que, no melodrama, essa conclusão tem de ser inacreditável, quase impossível e fantástica, de modo a fechar aquela história no reino da ficção, um reino que fechou as portas por agora mas a que poderemos voltar no próximo filme, na próxima história. Penso que esta razão tanto dirige os finais incongruentes e ex-machina de Eurípides, como também o modo formal de ele terminar as suas tragédias, muitas vezes com este verso: “Assim vistes o drama terminar”. A falsidade do final feliz tem a vantagem de remeter o espectador para outra história, para desejar o próximo episódio. Todavia o final infeliz também remete para a próxima história: “an unhappy ending may function as a means of satisfying a wish to have the wish unfulfilled – in order that it can be preserved and re-stated rather than abandoned.” (21), ou, como diz um ditado chinês: “tudo o que acaba mal, é porque não acaba”. Basicamente o final infeliz incita o desejo de sequela e não é por acaso que a arte dramática grega é campeã de sequelas. Miller (1978), aponta a extrema dificuldade em definir finais na literatura, uma vez que qualquer história pode ser retomada, um final fechado pode ser aberto e vice-versa, enlace e desenlace são exatamente a mesma coisa, afinal.
Desconfiar da hipótese de Aristóteles não ter compreendido a grandiosidade da tragédia – uma arte que é vulgar e preterida em relação à epopeia dos “espectadores distintos”, como diz no capítulo 26 da Poética –, é desconfiar da própria grandiosidade da tragédia grega. Os autores que, como Thompson, propõem uma distinção entre estes dois géneros acabam por aceitar a mesma evidência de Steiner: há poucas tragédias que possam chamar-se tragédias puras, quase todas tocam o melodrama, incluindo as de Ésquilo. Talvez então a nossa idealização de tragédia esteja errada. Thompson conclui que talvez o poeta tenha de “utilize this cheaper material not by avoiding but by transcending it” (1928: 935), quando afinal o poeta tem apenas de fazer uma coisa: dizer a verdade, mudando para distuquia ou eutuquia. O fator emocional não é mais forte no melodrama, como o fator universal não é mais forte na tragédia, como ambos podem terminar bem ou mal. Podemos e devemos seguir o pensamento aristotélico nesta matéria, concluindo que o que define a arte vulgar é o final duplo, o irrealismo e a distinção clara entre o que é bom e mau, mais próprios da ficção juvenil.
Outros elementos há ainda por mencionar e que alertam para a recusa de uma ficção puramente sensacionista ou melodramática na Poética. Quando Aristóteles sublinha a irrelevância da composição musical, como que retira o termo melos de drama. Se o melodrama começou por se caraterizar pelo acompanhamento musical, será porque usa de todos os meios para a solicitação emotiva e é justamente contra esses meios adicionais que Aristóteles escreve; tanto contra o acompanhamento musical como contra o embelezamento do texto, como contra os efeitos cénicos surpreendentes, como ainda, e não menos importante, contra o excesso de representação dos atores que representam como “macacos” (1461b, 30-35). Gallagher (1965) avança que o melodrama é “sensacionalista”, ora também esta característica é prevista e recusada por Aristóteles: “E os que através do espetáculo não produzem temor, mas apenas terror, nada têm de comum com a tragédia: não se deve procurar na tragédia toda a espécie de prazer, mas a que lhe é peculiar” (1453b5-10). Isto é, não há um variado número de emoções que se possam chamar trágicas, nem tão pouco as devemos confundir com emoções tão fortes como o aterrador, to theratodes. Vimos ainda que a raiz do medo é a mesma no melodrama e na tragédia: ver um homem lutar contra as suas próprias paixões ou ver o herói lutar contra o vilão deriva do mesmo, mas a primeira hipótese é a que está garantida por Aristóteles, num tipo de ficção mais interessante e responsável.
Para Finkelberg (2003) Aristóteles acabou por lançar as bases da ficção popular, mas para mim a tragédia grega é que foi também essa ficção popular, tíbia, que desperta filantropia (amor pelos bons e ódio pelos maus), própria de um theatron asthenicon, e que Aristóteles procurou elevar. Esta orientação vem na linha de Else (1957) e outros para quem a Poética de Aristóteles falha:
It so happened that the knife-edge of his judgement hit square on one masterpiece, the Oedipus; but the other play it hit upon, the Iphigeneia, cannot honestly be called much more than a good melodrama (…) This is not the way one can arrive at an organic comprehension of the best of Greek drama. Tragedy in its greatest comported things that were not dreamt of in Aristotle’s formula. (446)
Para Else e outros, a qualidade do tratado é questionável e a da tragédia grega não, esta existiu em estado puro e Aristóteles conspurcou-a com as cores do melodrama e da ficção popular. Para mim desde cedo a tragédia mostrou as marcas do “melodrama” e é consistentemente assumida como arte vulgar ou do povo, ou de massas, tanto por Aristóteles como por Platão, devendo-se a Aristóteles a procura de alguma pureza. Para já, coube concluir que a diferença entre arte alta e baixa, não passa pelo final feliz, que para além do mais, como possibilidade legítima da tragédia, coloca em causa a visão da tragédia grega como expressão pessimista de rotura ou como amortização do impulso heróico do homem, que paga caro, se não pelos seus erros, pela sua excecionalidade. Mesmo demonstrando que a tragédia é a primeira arte comercial, isso não quer dizer que ela fosse uma arte vulgar ou de má qualidade, sujeita aos gostos mal alfabetizados da audiência, quer dizer, sim, que a tragédia arriscava isso, como o prova Aristóteles.
Um tempo houve em que a distinção entre blockbusters e filmes de qualidade não existia, Hollywood não produzia um cinema para os cultos e outro para o povo, e sim o mesmo para todos, situação que hoje em dia, infelizmente, já não ocorre.
Referências
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© 2013 Maria Joana Melo.