Quem as Não Tem? (Como Escrever Cartas Faz de Nós Pessoas Melhores) |
Em 1761, publicou-se em Amesterdão aquele que viria a ser um dos livros mais bem sucedidos do século XVIII. À luz dos critérios da época, com efeito, Julie, ou La Nouvelle Heloïse, de Jean-Jacques Rousseau, tornou-se num dos fenómenos de popularidade literária mais evidentes dentro da história das publicações – e isto apesar da censura que lhe foi imputada depois da sua inclusão no tristemente célebre Index Librorum Prohibitorium. Alguns anos mais tarde, em 1774, Goethe publica o não menos famoso Die Leiden des Jungen Werthers, outro best-seller setecentista de tremendo impacto por toda a Europa. O tópico comum a estes dois romances, que aparece sob a forma de um leitmotiv medieval, no primeiro caso, e romântico no segundo, é o do amor impossível (ou apenas parcialmente possível), impelido pela distância, pela proibição, pela moral ou por constrangimentos sociais. O facto é que ambas as obras tiveram um sucesso estrondoso, medido algumas vezes, na época, pela quantidade e o aspecto das reacções físicas e emocionais que provocavam nos seus leitores – um critério que, seguramente, terá acrescido à popularidade estritamente “literária” dos dois textos. O impacto dos efeitos de Julie e de Werther num público decididamente ávido e sensível foi, empiricamente, demonstrado por reacções de leitores particulares, que relataram chorar, ter espasmos e sentir dores reais aquando ou depois da leitura (a isto se acrescenta, claro, a dose maciça de suicídios que, aparentemente, foram provocados pelas angústias do jovem Werther).
Estas considerações particulares consentiriam um longo e talvez ocioso exercício teórico acerca dos efeitos da literatura e da ficção, mas não é realmente disso que aqui se trata. O que me preocupa neste ponto é chamar a atenção para o facto de ambos os romances se terem escrito por recurso à epistolografia. Isto levanta, provavelmente, o problema de se saber se o “romance epistolar” é o meio mais adequado para se transmitirem determinadas emoções ou se, cepticamente, devemos aceitar o facto de tanto La Nouvelle Heloïse como Die Leiden des Jungen Werthers serem uma narrativa por carta (e terem provocado certos efeitos e não outros) não passa de uma coincidência: uma vez que podemos intuir que nem todos os epistolários provocam emoções análogas às que foram relatadas a propósito daqueles dois e que, do mesmo modo, existem outros géneros literários que, eventualmente, as podem provocar, seremos talvez forçados a admitir que, em relação a este corpus particular, as generalizações nem sempre são adequadas. O que faltará fazer depois desta constatação é, talvez, tentar perceber o modo como as cartas se relacionam com a vida e, por extensão, com a literatura. Embora tal empreendimento teórico já tenha sido tentado, com diferentes graus de sucesso, noutros sítios, o que se proporá aqui será um contributo para tentar determinar os termos daquelas relações ou, na pior das hipóteses, esboçar – ainda que indicativamente – o modo como a carta funciona, enquanto meio de transmissão e de reprodução que impende decisivamente sobre a construção dos indivíduos e das sociedades. Para além disso, importa compreender até que ponto a sua natureza de texto em trânsito contribui, igualmente, para a sua histórica constituição como uma das ferramentas epistemológicas mais auto-evidentes e um dos artefactos mais intencionais de entre o escopo daquilo que poderíamos descrever como o conjunto das construções culturais da Humanidade.
Deste ponto de vista, a carta partilha com outros meios de transmissão (se tomarmos por certo que um número significativo de ocorrências do objecto “carta” se podem agrupar sob esta descrição) um conjunto numeroso de características, mas possui também – e de modo singularmente nítido –, traços distintivos que a auto-definem enquanto tal. Nesse sentido, todos fomos culturalmente habituados a imputar a qualquer carta conteúdos precisos, à primeira vista inequívocos, que parecem constituir o modo de existência de uma série alargada de ocorrências do objecto “carta”. Desde logo, uma carta é um objecto pessoal – no limite, pode inclusivamente sugerir-se que o sujeito constrói a carta na mesma exacta medida em que é construído por ela. Possui, além disso, um objectivo, o de transmitir qualquer coisa através de um discurso – embora, em teoria, esse discurso possa ser desadequado, propositadamente inepto, falsificável e, em última instância, incompreensível. O objectivo, por seu lado, também pode ser transformado num não-objectivo, ou num objectivo com vários graus de objectividade, mas neste ponto, como no que diz respeito ao discurso, as escolhas são prerrogativas dos sujeitos, sujeitos que são outros mas que podemos ser nós. A um objectivo posto em discurso segue-se um caminho, um trajecto, uma distância entre dois pontos (que são dois corpos) percorrida no interior de um invólucro, como um cortejo fúnebre sem público. No fim deste percurso, a carta encontra um destinatário real, fictício, imaginado, ou de qualquer outra natureza, alguém que viola o invólucro e se faz receptáculo do discurso que alguém-outro intencionou dirigir-lhe. Isto, parece-me, não é senão senso comum, estejamos a falar de pergaminhos ou de correio electrónico.
Mas existem outros aspectos, igualmente de senso comum e igualmente elencáveis, que contribuem exemplarmente para a sensualidade epistolar que, em grande medida, se insinua na relação que temos para com o objecto “carta”. Desde logo, uma carta parece consubstanciar um momento de suspensão da exterioridade, em que a solidão e o despojamento constituem uma parte do contexto (e daí uma famosa expressão de Lord Byron segundo a qual “escrever cartas é o único meio de combinar a solidão com a boa companhia”). Por outro lado, a carta (por ser um discurso, ter um destinatário e um invólucro que a protege de terceiros) torna-se num meio de transmissão de uma certa interioridade privada, íntima e deliberadamente ocultada do olhar público e da expressão social do sujeito. Num sentido importante, parece ter como objectivo central a partilha aritmética de conteúdos discursivos que, por algum motivo, são tipicamente ocultados de uma existência pública. Isto faz com que a epistolografia tenha sido usada, entre outras coisas mais nobres, para compreender a intimidade de pessoas famosas (políticos, escritores e desportistas, entre tantos outros), mas também, e por extensão, de pessoas comuns como nós. Este lado fortemente epistemológico é um dos aspectos mais evidentes quando falamos de cartas embora, no mesmo sentido, possamos comprar livros cujos títulos começam por Cartas a… ou Cartas de… apenas por um impulso carnal e sórdido de pura bisbilhotice. Seja como for, parece consensual que as cartas ajudam à compreensão de qualquer coisa – uma pessoa vulgar, uma figura pública, uma época, um modo de vida, ou o conjunto destas coisas todas e mais algumas que se podem facilmente acrescentar. Daí que, por exemplo, numa recente edição da correspondência entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz, Manuela Parreira da Silva escreva, na introdução ao volume, que [1 ]
A ideia comum de que estaríamos perante um namoro platónico, sem réstia de erotismo, desfaz-se por inteiro. O jogo amoroso é descodificado e percebe-se que Fernando não foi apenas o «amante visual» de uma qualquer personagem literária chamada Ofélia. Vemos, enfim, surgir um Pessoa diferente do outro lado do espelho. Um Pessoa não só sujeito e manipulador da escrita, mas um Pessoa indefeso, objecto do discurso e do afecto de outrem, personagem de uma história real. (Silva, 2012: 7- 8)
A assunção explícita que preenche este argumento é que parece ser possível a um maço de cartas corrigir retrospectivamente uma série de coisas, a começar pela história e pela biografia – coisas que, à partida, veríamos como resíduos imutáveis da estabilidade esfíngica do passado. Isto acontece porque, supostamente, uma carta é um sítio onde a verdade e a sinceridade se desamarram intencionalmente das limitações impostas pelo exercício de “papéis sociais”. Aliás, podemos presumir que muitas cartas foram escritas precisamente para destruir ou inutilizar certos constrangimentos que inevitavelmente seguem do exercício público da nossa vida. Deste modo, escrever uma carta não é apenas um facto, mas um acto disposto não só a contrariar o quotidiano social, mas igualmente a transformar em discurso algo que diz respeito a uma intimidade particular e que se destina à validação de um terceiro. E neste ponto preciso, pouco ou nada importa se estamos a ler cartas reais de pessoas reais ou romances epistolares entre sujeitos ficcionais, uma vez que o exercício de escrever cartas cria também, em si mesmo, um módico de ficcionalidade que não age sobre o objecto indivisível “carta” como um acrescento, mas antes como um dispositivo de operacionalidade. De acordo com Bernhard Seigert, “[a] carta eliminou as ocasiões do livro de regras de modo a gerá-las internamente como situações ficcionais” (Seigert, 1999: 34) [2 ].
Ora, se parece ser possível ficcionalizar uma carta (num sentido peculiar de ficcionalizar), isto quer dizer que entre os romances epistolares de Rousseau e Goethe, como tantos outros, e as cartas de amor de Fernando Pessoa, talvez não exista uma diferença de espécie, mas apenas de grau. A acreditarmos neste argumento, então, personagens ficcionais e personagens reais envolvem-se, no exercício epistolar, num processo de criação que é em tudo análogo e cujos resultados, podemos supô-lo, são também parecidos. Segundo Roger Chartier, isto acontece porque “[d]e uma forma rudimentar, o manual epistolar reencontra os elementos constitutivos da ficção: o desenvolvimento de uma intriga, a instauração de uma durabilidade, o esboço de personagens” (Chartier, 1991b: 195). Ou, de acordo com Seigert, e de modo mais pormenorizado,
A substituição das referências externas da tabela de ocasiões através do processo de imaginar a ocasião dentro da carta produziu uma ficcionalidade essencial. A transformação da carta em literatura deveu-se a uma outra substituição: o “fantasma”, como figura retórica representando os ausentes ou os mortos, foi substituído pelo “poder da imaginação” como capacidade da alma. A criação da literatura como processo de imaginar referências externas que anteriormente eram distintas e separadas numa carta coincidiu com a intimidade da carta, com a preservação da sua confidencialidade. O sentido e o propósito dessa confidencialidade eram o de produzir imediatamente a possibilidade de uma traição à verdade, cuja produção era em si mesma um efeito dessa confidencialidade: a verdade simulada do Indivíduo. (Seigert, 1999: 37; itálicos meus)
Este argumento excede e, no limite, contraria, o argumento de senso comum (aludido acima), segundo o qual o acto de escrever uma carta consubstanciaria uma suspensão deliberada da exterioridade. Pelo contrário, ele demonstra amplamente que a transformação de uma situação real num objecto epistolar, mediante um processo particular de atribuição ficcional, concorre não para erigir barreiras ao quotidiano, mas para modelar esse mesmo quotidiano a uma relação discursiva privada, íntima e confidencial. Para além disso, levanta questões de verdade e de identidade, questões que muitas vezes são debatidas num contexto estritamente literário. O que Siegert parece querer dizer é que as possibilidades de veracidade, verosimilhança e falsificabilidade que são geralmente atribuídas aos escritores de ficção são postas em prática, de modo muito parecido, por pessoas que escrevem cartas. A diferença parece ser apenas de proporção, de uma carta de três páginas para um romance de trezentas. O argumento geral de Seigert consiste, de forma particularmente ambiciosa, em fazer equivaler a verdade ficcional da literatura com a verdade epistolar – por outras palavras, a transformar o sujeito epistolar em escritor. Chartier e Hébrard, no entanto, colocam um pauzinho nesta engrenagem teórica, quando afirmam que
É noutras formas de troca epistolar que se aninham as confissões da intimidade. A carta é então o sustentáculo de uma outra intimidade: a do segredo que a afinidade electiva que une dois corações permite partilhar. Neste caso, tudo se inverte: a correspondência deixa de ser um instrumento de manutenção da coesão de um parentesco; ela torna-se, mesmo quando dirigida a alguém próximo, num refúgio contra os constrangimentos e ditames da família. Não é mais o lugar de uma escrita convencional, mas a expressão singular de uma subjectividade que se confia ao outro. O que a habita não é o quotidiano das existências, mas a paixão, a tristeza ou o sonho. (Chartier e Hébrard, 1991: 452)
Obviamente, seria fácil encontrar uma série de contra-exemplos para este argumento. Não é certamente apenas no contexto de desavenças familiares ou de restrições sociais fortes que construções como “intimidade”, “segredo” e “subjectividade” são operacionalizadas de modo a alavancar o discurso epistolar. É natural que Chartier, que escreve acerca da correspondência tal como ela foi entendida no século XIX, atribua mais importância a tópicos recorrentes nesse contexto – e este era, seguramente, um deles. No entanto, não é apenas quando se fala de constrangimentos familiares e sociais que segredos íntimos de sujeitos são transformados em discursos íntimos dirigidos a terceiros. Aliás, se exceptuarmos a correspondência formal, as cartas de negócios e algumas (não todas) das cartas que não são escritas sobre uma base pessoal de relacionamento, todo o exercício epistolar arrasta consigo fatalmente um resíduo, ainda que diminuto, de intimidade [3 ]. E nem todas destas cartas, decerto, encerrarão paixões não correspondidas ou desilusões: muitas delas, aliás, servirão para fazer declarações, exprimir desejos ou experimentar utopias bem mais alegres. A diferença entre Seigert e Chartier parece situar-se no modo como ambos gerem a natureza da escrita epistolar. Enquanto o primeiro defende que o quotidiano é transposto para o interior da carta mediante uma osmose ficcional revertida, transformando o escritor de cartas em romancista, o segundo argumenta que a sordidez do quotidiano é transformada, por meio da carta, numa explosão sentimental da interioridade íntima e secreta. Ambos estão, pelo menos, parcialmente certos.
E parecem estar também certos quando, de vários modos e em vários sítios, definem a escrita epistolar como uma instância particularmente iluminadora de auto-identificação dos sujeitos. Esta construção é descrita por Derrida nos seguintes termos:
A carta tem um lugar de emissão e de destino. Não é um sujeito mas um vazio, a ausência a partir da qual se constrói o sujeito. O contorno desse vazio é determinável, e mima todo o trajecto do desvio que conduz o vazio ao vazio, o vazio a ele mesmo, e que portanto tem uma forma circular. Trata-se claramente de uma circulação regulada que orienta um regresso do desvio na direcção do vazio. A reapropriação e a readequação transcendentais levam a cabo um autêntico contrato. (Derrida, 1980: 465; itálicos no original)
A injunção deste argumento é que (de modo particularmente gritante) características familiares que atribuímos à carta, ao sujeito da carta e ao movimento da carta, não são, afinal de contas, completamente transparentes como o senso comum parece acreditar. A relação aritmética de que se falou acima (um sujeito, um destinatário), pontuada por um caminho em linha recta ou, na pior das hipóteses, ziguezagueante, em que a ausência é preenchida pelo acto de escrever, é radicalmente refeita por Derrida. Para ele, o sujeito constitui-se através da sua opacidade, que por sua vez é cumprida num impulso retrocedente entre um vazio 1 e um vazio 2, sendo que a combinação desses vazios mais os desvios que eles incitam é que conferem ao sujeito o pleno exercício da sua subjectividade. A distância, no argumento de Derrida, mede-se não entre dois pontos fixos para os quais se pode apontar (uma perspectiva cartográfica), mas antes entre vazios em permanente retorno ao útero criador – uma perspectiva, talvez, antropológica. De todo o modo, esta reversão derridiana do percurso das cartas introduz um segundo nível de dispersão da sua existência real, que acresce decisivamente ao modo como habitualmente se constitui o sujeito epistolar.
Acontece que, como Seigert e Chartier, Derrida está apenas parcialmente certo. Se é verdade que a escrita de uma carta possui sempre um resíduo de incerteza e imprevisibilidade que assentam numa espécie de vacuidade constitutiva (do acto e do actor), não é menos verdade que muitas vezes esta cadeia de relações é bem menos problemática. Se a filosofia nos ajuda, por vezes, a circundar o senso comum de modo a que consigamos apontar para coisas que, em princípio e à superfície, não são tão visíveis como outras, ocasiões haverá em que o senso comum, de tão comum, aponta para coisas que por vezes nos habituamos a negligenciar, esquecer ou tomar por certas de modo auto-suficiente. Assim, e de acordo com Chartier, na introdução (“Avant-Propos”) ao seu volume,
É sobre este vínculo fundamental estabelecido entre a geografia dos assuntos e a geografia do correio, desenvolvimento e correspondência, que se inscreve uma terceira trajectória: a que assiste à afirmação de uma esfera da individualidade e do privado. Sem pôr em causa as sociabilidades epistolares – tanto na escrita como na leitura das cartas, que exigiu muitas vezes, e por muito tempo, actos colectivos –, a constituição de uma existência privada, à distância do espaço público, investe todas as práticas de escrita comum com os valores da intimidade – daí a correspondência. (Chartier, 1991a: 12)
A trajectória descrita neste argumento parece, numa primeira inspecção, bastante diferente da trajectória apontada por Derrida. Isto acontece, aparentemente, pela desproporção que existe entre os termos envolvidos. No caso de Derrida, a trajectória é circular, entre vazios dispostos a desviar-se uns dos outros e a regressar ao vazio primordial – ainda que, no caso, isto tenha implicações importantes para a constituição do sujeito epistolar. Para além disso, o argumento de Derrida assenta numa consideração material da carta que, não sendo despicienda, se torna incomensurável, até certo ponto, com o argumento de Chartier – cujo percurso tem a ver com intenções e resultados de intenções (algo para o qual o trajecto derridiano parece não ter uma quilometragem minimamente aplicável). No entanto, ambos os argumentos partem de um princípio importante, o de que a epistolografia envolve sempre uma geografia.
No caso de Derrida, essa geografia tem muito a ver com a natureza material que ele atribui à escrita epistolar. Mais do que medir intenções humanas (algo que não se pode, em rigor, medir, a não ser talvez através de uma narrativa romantizada – como faz Chartier), interessa-lhe medir a palpabilidade oscilante das cartas, e o que isso pode ter ou não a ver com a constituição do processo epistolar. O sujeito, sempre no centro desta construção, é afectado pelos aspectos materiais da carta num vaivém entre a refracção que impregna o discurso e o carácter uno do suporte que o transporta. Ou seja, a fissão prospectiva tem, em si mesma e por uma carta ser – materialmente – aquilo que é, a possibilidade de fazer reverter para o sujeito uma unidade primordial. Segundo Derrida, num passo que vale a pena citar (quase) na íntegra,
Esta determinação do próprio, da lei do próprio, da economia, reconduz então à castração como verdade, à figura da mulher como figura da castração e da verdade. Da castração como verdade. O que não quer de todo dizer, como poderíamos tender a acreditar, à verdade como desmembramento essencial e fragmentação irredutível. (…) Neste sentido, a castração-verdade é o inverso do desmembramento, o seu próprio antídoto: o que aí [na carta] falta no seu lugar, no seu lugar fixo, central, imune a qualquer tipo de substituição. Há qualquer coisa que falta no seu lugar, mas essa ausência nunca deixa de estar. O falo, graças à castração, encontra-se sempre no seu lugar, na topologia transcendental de que já falámos. Aí [na carta] ele é indivisível, e como tal indestrutível, como a carta onde tem lugar. E foi por isto que a suposição empenhada, jamais demonstrada, da materialidade da carta como indivisibilidade era indispensável a esta economia restrita, a esta circulação do próprio. (Derrida, 1980: 469; itálicos no original)
Existe, aparentemente, pelo menos uma situação epistolar em que a integridade física e corpórea de uma carta possui um correlato preciso como lugar mimético de um corpo, também este indivisível. No argumento de Derrida, é a incorruptibilidade material da carta que assegura, através de uma ausência transcendental cujo suporte não é passível de ser violado, a não fragmentação do corpo – e, por extensão, do sujeito.
Uma carta é, então, não só um meio de transmissão de discurso entre dois sujeitos mas, e na mesma medida, uma transposição do corpo para um objecto material e, por inerência, uma mediação entre dois corpos ausentes um do outro. Há, naturalmente, uma intenção de comunicação que preside à escrita, ou à transformação de uma intenção num discurso que deve, idealmente, cumprir-se, chegar, fazer-se ouvir. Mas esta intenção cumpre-se verdadeiramente, no argumento de Derrida, num objecto cuja natureza excede em muito a sua componente discursiva – um objecto cuja integridade granítica é, mutatis mutandis, em tudo correspondente à consistência sexual e física do corpo ausente que, deliberadamente, o constitui como artefacto. Isto autoriza a que a carta-corpo transcenda a tinta no papel e se transforme, não num ícone simbólico, mas na quintessência da corporeidade mimética. Apesar disto, porém, a carta qua carta pode representar um segundo nível de despojamento, que acontece quando o corpo que a escreve se desfaz numa nudez peculiar. Da mesma forma que o íntegro epistolar o é na exacta medida em que o corpo-sujeito o é também, algo parece acontecer quando o primeiro se transforma, pelo acto simples de tirar a roupa, como na carta de Derrida de 6 de Junho de 1977, em que se escreve,
Tenho tanto a dizer-te, e tudo isto deverá realizar-se através de clichés de cartas postais – e aí se dividir no mesmo instante. Cartas em pequenos pedaços, despedaçados antecipadamente, cortados, recortados. Tanto a dizer-te, mas tudo e nada, mais que tudo, menos que nada – dizer-to é tudo, e uma carta postal é o meio ideal, ela não deve ser senão este suporte despido, dizer-te tudo, sozinha, nua. (Derrida, 1980: 26)
A relação interposta pela carta parece ser, afinal de contas, uma relação firmemente antropológica, mediada não só pelo discurso e pela materialidade, mas igualmente por um notável processo de tradução: de palavras em corpos, de intenções em sujeitos, de coisas não quantificáveis em coisas que se concretizam. Ou, como resume Seigert,
Enquanto as cartas e o correio continuaram a mapear a distância em relação a um sítio onde símbolos podiam ser traduzidos em corpos, aquilo que era escrito era, necessariamente, interminável. Porque a relação entre corpos nunca deixa de ser não escrita, as cartas não param de ser escritas. A escrita, que não pode eliminar-se a si mesma por nada mais do que manipulações da escrita – como emendas e acrescentos – nunca acabaria, a não ser que fosse contingente. (…) A escrita e os corpos nunca se juntam “a tempo”. Tudo se desenvolve em redor deste “a tempo”, e não só a perfeição do sistema postal. (Seigert, 1999: 24)
A questão não resolvida da categorização do objecto “carta” parece, de facto, ser irrespondível, pelo menos se pretendermos uma resposta clara e inequívoca. O ponto de vista parece ser determinante para esta consideração, e aplicar o senso comum, a filosofia, a antropologia, a aritmética ou a cartografia na resolução deste dilema tem, seguramente, consequências diferentes – embora, naturalmente, complementares. Por outro lado, localizar a carta como um objecto, uma intenção, um vazio ou um meio de transmissão também faz dela uma coisa bastante retráctil, evasiva e porosa. No entanto, a complementaridade que este exercício (o de descrever a natureza de uma coisa a que chamamos “correspondência”) implica, faz-nos pensar que, em última instância, as relações instauradas por um objecto “carta” são mais complexas e heteróclitas do que à primeira vista poderíamos supor. Muitos dos argumentos de que aqui se fez eco são parcelares e idiossincráticos – alguns até unilaterais –, como se um ataque retórico a suposições familiares fizesse parte da própria natureza desses mesmos argumentos. A experiência de escrever uma carta (ou várias cartas, se for esse o caso) ensina-nos, presumivelmente, que uma ou mais das consequências de que falam Chartier, Seigert ou Derrida, são possíveis no mundo possível postal. E que, sendo possíveis nesse mundo, se qualificam automaticamente como ferramentas epistemológicas, objectos únicos que, postos em conjunto e em perspectiva, nos ajudam realmente a compreender coisas. Que coisas são essas é um assunto que, seguramente, não caberia no âmbito restrito deste texto. No entanto, a mera intuição de que essas coisas existem e estão epistemologicamente disponíveis para a análise, convoca imediatamente responsabilidades racionais e teóricas que se dirigem a objectos particulares e delimitáveis: as cartas. E pouco importa, no fim de contas, se essas cartas são escritas por e para pessoas de carne e osso ou por um criador de personagens epistolares.
Naturalmente, as cartas de hoje são uma extensão (apesar de certas diferenças materiais) das cartas de outros tempos, mas um conjunto de inúmeras diferenças de grau, de meio e de proporção podem ser encontrados entre a época áurea do papel manuscrito e o tempo (igualmente áureo) do correio electrónico. No entanto, a resistência que o intercâmbio postal parece oferecer a alterações substanciais nos seus modos de expressão é, no fundo, uma característica intrínseca do tráfego postal: numa palavra, e apesar de o papel sofrer hoje uma concorrência forte do e-mail, o acto e o modo de colocar discursos em invólucros dirigindo-os a um terceiro parece, na essência, ter mudado muito pouco. E daí, talvez, a conclusão de Chartier, segundo a qual
Os usos da escrita, nas suas variações, são decisivos para compreender como é que as comunidades ou os indivíduos constroem representações do mundo que é o seu, e investem de sentidos plurais, em contraste, as suas percepções e experiências. Numa história cultural redefinida como lugar onde se articulam práticas e representações, o gesto epistolar é um gesto privilegiado. Livre e codificada, íntima e pública, em tensão entre segredo e sociabilidade, a carta, melhor do que qualquer outra expressão, associa o laço social e a subjectividade. Cada grupo vive e formula à sua maneira esse problemático equilíbrio entre o eu íntimo e os outros. Reconhecer estes diferentes modos de gerir a aptidão para a correspondência é, sem dúvida, compreender melhor aquilo que faz com que uma comunidade, cimentada pela partilha dos mesmos usos, das mesmas normas e dos mesmos sonhos, exista. (Chartier, 1991a: 9-10)
Este argumento de Chartier tem a vantagem, para todos os efeitos, de cooptar uma série de dimensões do intercâmbio epistolar, sinalizando um conjunto de efeitos potenciais que ocorrem dentro de uma dinâmica histórica e sociológica. Se quisermos, a dimensão mais básica e primordial da intenção epistolar tem a ver, justamente, com os regimes da escrita, e com o modo como estes regimes dizem bastante daquilo que somos enquanto seres sociais e culturais. Para além disso, aponta inequivocamente para o módico tensional que envolve o acto de transmitir enquanto instância de comunicação. Uma carta passa a ser, então, o artefacto discernível através do qual um particular uso da escrita é levado a cabo com uma finalidade determinada: a de (re)estabelecer o vínculo entre indivíduos e sociedades ou, de outro modo, a de aproximar dois modos de existência singular que são, ontologicamente, de natureza diferente. Evidentemente, podemos supor que não é apenas o aparato postal que exerce este tipo de operações mas, por outro lado, teríamos seguramente dificuldade em discernir outra forma mais nítida, transparente e apelativa de o fazer.
Neste sentido, cada ocorrência epistolar estabelece uma geografia própria, a determinação de um lugar a partir do qual a escrita – aqui entendida como alavanca simbólica e semiótica – é posta em acção, de um modo específico, interagindo com a realidade sob forma de uma hermenêutica própria. De acordo com Chartier,
A correspondência toma coisas emprestadas, então, de todos os outros géneros de escrita comum. Ela sugere que a variável pertinente para classificar e compreender os escritos do homem (…) não é a sua própria forma, mas o espaço no qual se situam quer a sua produção quer a sua recepção, suposta ou real. Uma vez que, diferentemente do diário ou do caderno íntimo, ela pressupõe um leitor que não a pessoa que escreve, uma vez que, contrariamente à palavra viva, ela não exige um face a face, a correspondência institui uma ordem paradoxal que é a construção de um vínculo social a partir de um gesto subjectivo e singular. (Chartier e Hébrard, 1991: 456)
Esta singularidade é que distingue a carta tal como a conhecemos, ou julgamos conhecer, e é justamente esta remissão para o indivíduo que a torna antropologicamente mais sedutora do que sinais de fumo ou telefones. Isto acontece, talvez, porque conseguimos realmente compreender uma pessoa através das cartas que escreve e, por extensão, conhecermo-nos a nós mesmos, ainda que apenas potencialmente. A carta é uma expressão humana, intencional e dirigida a terceiros, o que parece fazer dela um candidato ideal ao panteão limitado dos artefactos que nos constituem enquanto espécie. Neste sentido, revela uma intimidade partilhada, socialmente restrita e manifestamente individual. Assim,
Logo que um convite postal para todos os escritores de cartas dirigirem as suas confissões íntimas (…) apareceu como um facto positivo, tudo o que foi posto a caminho em forma de carta através do sistema postal se subordinou à educação formativa dos indivíduos. (Seigert, 1999: 68)
Uma afirmação que vale, creio, para Fernando Pessoa, para o angustiado jovem Werther, para Julie e Abelard, para Napoleão Bonaparte – que escrevia à sua “boa Luísa” que “as minhas coisas vão bem” depois de derrotas estrondosas no campo de batalha –, para as cartas que escrevíamos em crianças ao Pai Natal, ou para os milhões de e-mails que se trocam diariamente, lá fora, na “vida real”.
Referências
CHARTIER, Roger (ed.) (1991a). La Correspondance: les Usages de la Lettre au XIXe Siècle, Paris: Librairie Fayard.
CHARTIER, Roger (1991b). «Des “Secrétaires” pour le peuple?», in Roger Chartier (ed.), La Correspondance: les Usages de la Lettre au XIXe Siècle, Paris: Librairie Fayard, pp. 159-207.
CHARTIER, Roger e Jean Hébrard (1991). «Entre public et privé: la correspondance, une écriture ordinaire», in Roger Chartier (ed.), La Correspondance: les Usages de la Lettre au XIXe Siècle, Paris: Librairie Fayard, pp. 451-458.
DERRIDA, Jacques (1980). La Carte Postale: de Socrate à Freud et Au-Delà, Paris: Flammarion.
SEIGERT, Bernhard (1999). Relays: Literature as an Epoch of the Postal System (trad. Kevin Repp), Stanford, California: Stanford University Press [1993; Relais: Geschike der Literatur als Epoche der Post, 1715-1913].
SILVA, Manuela Parreira da (ed.) (2012). Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz, Lisboa: Assírio & Alvim.
Notas
[1 ] A citação é da nota introdutória ao volume (pp. 5 a 10).
[2 ] Seigert refere-se a um processo iniciado por Christian Geller (poeta, escritor e académico alemão) que, durante o seu consulado como professor de retórica na Universidade de Leipzig, a partir de 1745, dedicou parte das suas lições a um ataque denodado aos livros de regras epistolares em voga, à época, por quase toda a Europa (um exemplo são os Secrétaires franceses, cuja influência durou séculos, e nos quais se explicavam os modos de composição, os artifícios retóricos e expositivos, e as formas aceitáveis de apresentação, no que à escrita de cartas dizia respeito). De referir, como nota, que as traduções de textos noutras línguas que não o português são da responsabilidade do autor.
[3 ] De acordo com Chartier, Montaigne, por exemplo, distingue entre “cartas de cerimónia” e “cartas de sentimento” (Chartier, 1991b: 166).
© 2013 Ricardo Namora.