MatLit_REC

Para Além da Parergónia: A Leitura da Remoção
Tiago Schwäbl
CLP | Universidade de Coimbra

 

O vazio. Sob uma perspetiva de legibilidade, o reflexo das obras aqui analisadas seria de um mutismo apreensivo ou de uma brancura implacável. Mas o autor pôs-se a raspar esse vazio e trouxe à tona outras camadas (de vazio) num trabalho de extrema atenção e sensibilidade. Poder-se-ia pois dizer que este é um livro amplificado.

Craig Dworkin segue notoriamente (e cava mais fundo) o trilho aberto no seu Reading the Illegible (2003), que tinha como mote (seguindo Gertrude Stein) “o ilegível pode de facto ser lido” e onde analisou “nos seus próprios termos, sem forçar uma direção de tese” obras com elevado grau de resistência à leitura – e eventualmente desconhecidas – numa leitura ‘paragra-mática’, ou seja, desafiando a gramática normativa de um texto através da formação de “redes de significação não acessíveis por hábitos de leitura convencionais” (Leon Roudiez) [a tradução de todas as citações é da minha responsabilidade]. Em No Medium (2012), Dworkin estende a sua acuidade a todos os sentidos, registando inscrições (ou ausências) em diversos espaços – da poesia à música, passando pelo filme, a fotografia e a pintura, entre notas de rodapé, molduras, traduções e outras marginálias. “Na ausência da inscrição, o substrato pode ser visto não como um significante transparente, mas como objeto por direito próprio, repleto nas suas propriedades materiais, histórias e potencial de significado” (9), como no caso da resma de papel de Aram Saroyan publicada em 1968 (New York: Kulchur Press) ou da folha de Tom Friedman 1000 Hours of Staring (1992-97).

“As rasuras obliteram, mas também desvendam” e Craig Dworkin empreende a leitura do nada, do silêncio e do ilegível, captando a tensão entre a força (e desequilíbrio) do corpo ausente e a súbita presença daquilo que é fronteira, vértice, exclusão, margem – “a rasura é ela mesma um tipo de desenho” (a propósito de Robert Rauschenberg) e Dworkin vem escrever as páginas deixadas em branco.

O autor incide a análise em “algo que à primeira vista parece ser um suplemento exterior à obra, mas que de facto participa como parte necessária e essencial da própria obra” (23), o que Jacques Derrida designou como ‘parergon’. No entanto, obras como Reading the Remove of Literature (2006) de Nick Thorston (sobre L’espace Littéraire (1955) de Maurice Blanchot) vão mais longe: o texto principal desaparece, restando as notas (de rodapé) – aquilo que seria suplemento é forçado (o suplemento da ausência) a assumir o papel central, remetendo (em topografia deslocada, protética) para a imaginação do leitor a sugestão de uma ulterior gama de referentes – “a essência de um depende do desaparecimento do outro” (48). Ou, mais extremo ainda, a tela Erased de Kooning Drawing (1953) de Robert Rauschenberg; “tal movimento, neutral, recursivo e paradoxal define os funcionamentos da linguagem em geral” (49). “Para Blanchot, a leitura é de facto a remoção da literatura” (46).

As fotografias de Vladimir Zidlicky, por sua vez, servem de base a uma reflexão em torno da ‘face’ e seus derivados etimológicos, numa pluralidade de inter-faces, desde a superfície (en face) à intervenção (facere), às suas cartografias (le Visage de Gilles Delleuze e Félix Guattari), à alteridade (le Visage d’Autrui de Emmanuel Levinas) e ao anonimato (facelessness), sendo que, "da perspetiva dos media, as superfícies não são coberturas mas somente limiares às quais a substância se confina.” (104). “O argumento da supressão, aqui, é o princípio do recontro. Responsabilizar-se, prestar contas – ou seja, re-conhecer” (110).

Dworkin aflora ainda a questão da tradução, revertendo a frustração da perda (“lost in translation” de Robert Frost) num ponto fronteiriço (“tangencial”, segundo Walter Benjamin) onde linguagens se podem abrir e expandir e/ou onde – tomando como exemplo as White Paintings (1951) de Robert Rauschenberg e a sequente Music for Piano (1951) de John Cage – as remanescências de uma se tornam as marcas iniciais de outra.

No Medium. Numa época em que o medium é tudo, o título não deixa de ser provocativo. Marshall McLuhan escrevia em 1964 no seu ultra-citado Understanding Media – The Extensions of Man “o meio é a mensagem” e “o conteúdo de qualquer meio é sempre outro meio”, sendo que a “«mensagem» de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de escala, ou de ritmo, ou de estrutura que ela introduz nos assuntos humanos (McLuhan, 2008: 22)”, acrescentando ainda que “o meio é a mensagem porque sem o meio ela não poderia existir”. McLuhan dá o exemplo de um meio sem mensagem: a eletricidade (informação pura).

Mas aqui, se não existe medium, o que acontece? O que resta? Ou, se este é isolado, o que representa? Numa equação, quando se ‘corta’ um dos lados o outro tem igualmente de ser removido; ou então um dos membros passa para o lado oposto com sinal contrário e o resultado da equação será zero (0). Craig Dworkin demonstra que nunca nada é simplesmente zero, ou melhor: que ‘nada’ é maior que zero e que esse ‘nada’ pode, sem dúvida, ser objeto de leitura. Aprendemos a não ignorar a ausência de inscrição, a rasura, a remoção, e a interpretá-las como signos válidos. Ou, quando a mensagem é ínfima (o inframince de Marcel Duchamp), a amplificá-la e raspá-la até chegar ao cerne desse suporte, desse medium que já não é medium mas algo mais. A provocação reside na habitual associação de medium à inscrição de uma mensagem – não existindo inscrição, o substrato apresenta-se ‘vazio’ e, num dado contexto, tem agora a possibilidade de significar.

Mas então o que fica do medium? O que é um medium? “…esses objetos a que nos referimos como ‘media’, por conseguinte, há talvez que considerá-los antes como nós de articulação ao longo de uma cadeia de significação: os pontos nos quais um tipo de análise deve parar e outro pode começar; a fronteira entre linguagens; as iluminuras da perceção” (32).

Na maior parte dos casos aqui analisados, a ‘mensagem’ é removida e o que seria considerado tradicionalmente o suporte apresenta-se nu (tabula rasa); em vez de construir concetualmente a receção, Dworkin vai percorrer essa nudez naquilo em que a presença da matéria se dá a conhecer ao outro, elaborando a perceção a partir da materialidade desse substrato, encarando-o não como mero significante mas novamente como signo. (Paradoxalmente, quanto mais o objeto artístico se pretende concetual, mais a materialidade pulsa e a nudez de uma tela ou fotografia branca e plana se releva…“O significado está ausente porque a inscrição está ausente – de resto, está la tudo” [Herman de Vries]).

No Medium pode ser considerado uma chamada de atenção em que nos é barrada uma leitura imediata (as próprias obras servem de travão) e nos é exigida uma atenção, reflexão e procura para as quais o autor paciente e perseverantemente nos encaminha.

No Medium é também um oxímoro, uma vez que todo o livro descreve processos de inter-face e articulação dos media. Além disso, toda a comunicação flui no meio pelo qual é comunicada ou comunicável; só que – na sua instanciação – esse medium impregna a mensagem de tal modo que esta não é mais distinguível do meio que a propagou. Tal torna-se manifesto na (pretensa) ausência da inscrição: o meio não desaparece, algo fica, e é este resto que adquire agora significado próprio e de novo inicia o circuito interpretativo ativado pela leitura e interrogação do leitor.

‘No Message’ estaria eventualmente mais de acordo com a ‘realidade’ das obras referenciadas em No Medium, uma vez que não há aí uma inscrição clara e a linguagem é reprimida… Mas, repetindo Maurice Blanchot, a leitura é a remoção da literatura – oblitera-se uma para chegar a outra, passando de uma sucessão positiva de relações (um meio que representa outro) para uma análise dos negativos – a cratera.

No Medium poderá ainda figurar como ‘no entry’: aqui não há lugar para o medium, este não é aqui analisado, mas antes o conteúdo. A ênfase é colocada na fase final de uma cadeia de criação artística onde, devido a um ‘erro’ de sinal (provocado), a inscrição ficou alterada ou perdida, ponto a partir do qual é possível iniciar novo enquadramento e leitura, atendendo a que a matéria só passa a fazer sentido em determinadas circunstâncias. Seguindo Michel Foucault (“le discours”), Jerome McGann (“a set of events”) ou Matthew Kirschenbaum (“dynamic procedures”), Dworkin argumenta que os media – processos dinâmicos – se aninham em estruturas recursivas e se evidenciam em contextos sociais.

“No seu conjunto, os capítulos aqui recolhidos argumentam que, contrariamente ao nosso uso habitual do termo, o medium não existe. Nenhum medium [meio] pode ser captado isoladamente. Além disso, estes capítulos defendem coletivamente que os media (sempre e necessariamente múltiplos) só se tornam legíveis num contexto social, uma vez que estes não são coisas mas antes atividades: comerciais, comunicativas e sempre interpretativas” (28).

O medium não existe isolado mas em face, em contacto, alojado numa prática (recursiva). Por outro lado, se vários contextos proporcionam diferentes leituras, então tudo é medium. “Não se consegue nunca encontrar uma visão sobre uma mensagem livre do meio da sua comunicação, porque no processo de transmissão da mensagem a rede dos mecanismos de registo e reprodução também gera sempre uma narrativa da sua instanciação” (34).

Craig Dworkin leva a cabo (re)leituras que propiciam um novo estado da arte (ou a sua recuperação), descrevendo com extremo cuidado e concentração obras tendencialmente marginais, expandindo e articulando a reflexão com inúmeras e pertinentes referências (não apenas bibliográficas), permitindo assim uma rede de impulsos e descobertas que nos fazem ansiar por mais. Por um lado, é quase lamentável que o texto não se faça acompanhar por algumas ilustrações; por outro, há que reconhecer que em muitos objetos a experiência não é exclusivamente visual – atente-se por exemplo ao impressionante capítulo Further Listening, que é muito mais que uma mera lista de faixas inaudíveis – a distinção crucial está na atitude (contagiante) do autor: Craig Dworkin prestou-se de facto à audição atenta dessas obras, da qual nos deixou então as suas refrescantes reflexões e comentários. O seu estilo é sempre cuidadoso e minucioso, os conceitos são etimologicamente repensados e a aposição de filosofias contrárias contribui para argumentações multifacetadas que estimulam o leitor para uma posição de igual atenção crítica.

O layout de No Medium é inspirador – veja-se o índice e a força da forma negra que preenche o que seria normalmente espaço vazio e ignorado, irrelevante. Tal como no título: No define-se pela ausência (só é legível pela presença negra da forma envolvente), enquanto que Medium é delimitado no seu retângulo por uma fina linha de contorno que o equilibra perante No. Se este se releva pela ausência (a ausência da negação), como enquadrar agora a presença de Medium?

A própria capa – o quadro dentro de um quadro, a incisão separadora (é de facto um corte e não a esperada ilusão de ótica) que realça o quadro oblíquo e impertinentemente fora de esquadria, o ‘vazio’ a cor de sépia ou de pergaminho, pronto a ser lido (à flor da pele ou através da pele, em palimpsesto) – serve de metáfora a este exigente e poético exercício de leitura.