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O Que Nos Ensinam os Novos Meios Sobre o Livro no Livro do Desassossego
Osvaldo Manuel Silvestre
CLP | Universidade de Coimbra

 

I

Admitindo que o meu tópico – o livro e, mais historicamente, o livro no modernismo – é já arqueológico, poderíamos tentar uma arqueologia da questão. Invoco, pois, para começar, a carta extraordinária que Gustave Flaubert envia de Damasco, a 4 de Setembro de 1850, ao seu amigo Louis Bouilhet, na qual o agon anti-burguês vai das questões de gosto – “Il y a une chose que nous perd, vois-tu, une chose absurde qui nous entrave, c’est le goût, le bon goût.” (Flaubert, 1999: 676) – às de alcova – “L’amour est comme un besoin de pisser” (680) – e, para o que nos interessa, à forma orgânica da obra. Numa passagem famosa, Flaubert afirma:

Oui, la bêtise consiste à vouloir conclure. Nous sommes un fil et nous voulons savoir la trame. Cela revient à ces éternelles discussions sur la décadence de l’art. Maintenant on passe son temps à se dire: Nous sommes complètement finis, nous voilà arrivés au dernier terme, etc., etc. Quel est l’esprit un peu fort qui ait conclu, à commencer par Homère? Contentons-nous du tableau, c’est ainsi, bom. (ibid.)

Convém notar que Flaubert experimenta pela primeira vez esta formulação, na mesma carta, dois parágrafos antes, ao discutir uma obra de Comte, que lhe suscita uma rejeição radical – “c’est assommant de bétise” –, rejeição que, em boa verdade, visa as utopias sociais do século XIX. E, após apelar a uma sobriedade de objectivos, escreve assim a frase que logo após reescreverá:

L’ineptie consiste à vouloir conclure. Nous nous disons: Mais notre base n’est pas fixe; qui aura raison des deux? Je vois un passé en ruines et un avenir en germe, l’un est trop vieux, l’autre est trop jeune, tout est brouillé. (679)

Ou seja, a mesma (enfim: quase a mesma) expressão serve a Flaubert para diagnosticar o mal-estar social e político da França de 1850, em rigor uma França imediatamente pós-revolucionária, e para exprimir um desejo não moderado, mas antes radical, de abertura na obra de arte. A gradação, na passagem de inépcia a estupidez, exprime talvez o maior investimento passional que a literatura suscita, face à política; mas manifesta também a ambiguidade de uma valoração que se sente desconfortável, em sede política, com aquilo que reivindica, em sede artística. Como nota Christopher Prendergast, encontramos aqui aquele acento modernista numa noção de abertura não tanto liberal mas antes radical, “less a plea for tolerant hospitality to all-comers than a haunted sense of the frailty and provisionality of all our constructions and representations of the world” (11).

É este desejo de concluir que leva Sainte-Beuve a publicar, nesse mesmo ano de 1850, o seu ensaio “Qu’est-ce qu’un classique?”, ensaio que se insere na política cultural conservadora, ou melhor, reactiva, do autor, face às revoluções de 1848 e, antes e para lá delas, aos demónios do relativismo trazidos pela ênfase positivista na “erudição”, que o grande crítico julgava poder combater apelando ao juízo de gosto como fundamento do trabalho crítico. Um combate nobre mas condenado à derrota, como se percebe em Flaubert, que vai ao ponto de invocar Homero, figura também central no Templo do Gosto desenhado por Sainte-Beuve no ensaio sobre o clássico, mas para reivindicar nele o fundamento genealógico da sua recusa em praticar a estupidez, tipicamente burguesa e filistina, de concluir.

A questão que se coloca já com Flaubert, e mais exactamente com a sua grande obra tardia, Bouvard et Pécuchet, está próxima daquela que Burton Pike, especialista em Robert Musil, coloca para O Homem sem Qualidades: uma obra inacabada ou sem fim? (Pike, 2007) Como lembra Pike, o romance enquanto género produziu, desde o seu nascimento, um corpo de convenções, entre elas a da conclusão. Mas a questão de como colocar um ponto final na dinâmica vital activada pelo romance foi sempre um problema difícil, mais ainda para os escritores que não se confiavam à noção de intriga, como em boa parte dos modernistas. O que não significa porém que o problema pudesse ser liminarmente evitado. Lembremos o caso emblemático de Un chien andalou, de 1929, o filme com que Buñuel transporta a vanguarda surrealista para o cinema, sem cortar com uma definição deste enquanto “arte de massas”. Ou seja, o filme é ainda narrativo e, embora de forma metonímica mais do que linear, conta uma história (tanto assim que começa pelo intertítulo “Il était une fois”). Uma história de amor que termina em happy end numa praia: o casal beija-se e passeia de mão dada, como num convencional filme mudo de Hollywood. A diferença reside no último plano, em que nos é mostrado, na Primavera seguinte, o mesmo casal mas agora em reproduções em cartão, na areia, arruinadas pelo mar. O fim do filme cita parodicamente a convenção dominante da conclusão do romance oitocentista ­– casamento, reconciliação, morte – e, ao mesmo tempo que evidencia a dificuldade em concluir, pratica uma conclusão inconvincente, que contudo convence de que arte e vida são (pelo menos) descontínuas.

No seu ensaio, Burton Pike faz o elenco de algumas das grandes obras do modernismo que praticam finais abertos ou concluem abruptamente, com finais arbitrários que de facto não concluem aquilo que iniciaram: Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rilke, com o retorno de um filho pródigo não-reconciliado com o mundo; os romances de Kafka, que ou terminam por um coup de théâtre que nada explica, como no Processo ou no Castelo, sem que a personagem alguma vez entre no castelo; a Recherche de Proust, que acaba quando o narrador se está a preparar para começar a escrever o romance que o leitor acabou de ler; o Finnegans Wake, cuja última meia frase se completa na outra metade que inicia a obra; fiquemos por aqui.

O caso de Musil é particularmente complexo e radical, uma vez que é a própria natureza da obra, nos seus fundamentos filosóficos e científicos, mas sobretudo a sua contaminação pelo ensaio – recordemos o famoso capítulo 62: “A própria Terra, e Ulrich em particular, prestam homenagem à utopia do ensaio” –, que inviabilizam a possibilidade de uma conclusão do romance. Como é sabido, Musil editou dois tomos da obra, em 1930 e 1932, e a partir daí enredou-se numa produção de milhares de páginas, dezenas e dezenas de capítulos inacabados, que parecem movidos pela resistência, ou renúncia, à ideia de concluir o seu Opus. Permito-me transcrever a este respeito algumas palavras de Burton Pike que não deixam de ser pertinentes para o caso de Fernando Pessoa:

Musil had difficulty finishing all his works, and suffered from an often anguished writer’s block that seemed predicated on the notion that committing something to print was, in essence, to give something that was provisional a final form and thus close it off from the possibility of further change. (360)

Concluir o romance seria admitir que um conflito insolúvel, aquele que origina a obra, poderia sofrer a imposição de uma solução sentida como externa e não adequada à vida, a qual, para Musil, não se desenrola com a linearidade de uma intriga romanesca, mas pelo contrário consiste numa série de sensações e percepções discretas. Nos 20 anos posteriores à publicação do segundo volume de O Homem sem Qualidades, Musil produziu uma quantidade impressionante de textos que, como lembra Pike, não são esboços ou rascunhos, no sentido ordinário do termo; pelo contrário, na sua maioria são textos bastante polidos, unidades que poderiam encaixar em várias partes do romance (Musil elaborou, aliás, um sistema complexo de referências cruzadas para todos esses textos). Convém notar que o romance começa em data muito precisa – Agosto de 1913 – e dura um ano (o ano sabático de Ulrich), ano esse que contudo é alongado, alargado, suspenso, de modo a que a história não desemboque onde não poderia em boa lógica deixar de desembocar (o início da Primeira Grande Guerra), mas onde de facto não desemboca para que assim os eventos se não transformem em teleologia. Essas unidades textuais que Musil produziu ao longo de duas décadas destinam-se justamente a fazer com que a data final de 1914 nunca chegue – e em todo o caso Musil nunca se decidiu pelo local exacto do encaixe de todos os capítulos alternativos que produziu para suspender o desenlace do romance.

Como é fácil perceber, a edição desses materiais coloca um agudo problema filológico, já pela sua vastidão (mais de 2500 páginas de manuscritos e dactiloscritos, ou seja, sessenta a oitenta capítulos, todos inconclusos), já pelo facto de que a própria lógica do trabalho de Musil sabota a possibilidade de dispor esses capítulos em sequência. Tudo está ligado de algum modo, mas não existe uma disposição final reconhecível, tanto mais que nenhum plano definitivo existe no espólio. Como nota Walter Fanta, um dos grandes conhecedores e editores do espólio, a obra pressupõe uma Opusfantasie na qual o que está escrito suscita o sonho de uma obra ideal na sua substância, forma e efeito (382-3). O espólio (o Nachlass) de Musil é assim um problema em aberto, no que toca em particular a O Homem sem Qualidades. Walter Fanta faz o elenco de todas as variações sobre a obra alimentadas pelo Nachlass ao longo dos anos, desde o esforço para alcançar a “verdadeira conclusão” do romance (esforço que Fanta qualifica, retrospectivamente, como “neo-escolástico”) até à aceitação da natureza ensaística da narrativa de Musil, o que conduz a aceitar o seu final fragmentário como uma “circunstância natural contingente que não perturba” (384) já os leitores. A própria evolução editorial do romance implica sempre uma articulação profunda com o Nachlass. A primeira edição de Adolf Frisé, de 1952, dispunha os materiais do espólio em sucessão, usando de muita “energia criativa” (ibid.), nas palavras de Fanta, e criando, por meio de intervenção editorial, um “fim sintético” para a obra. O mesmo Frisé produziria uma nova edição em 1978 com uma orientação já muito diversa, renunciando à sequenciação narrativa dos materiais do Nachlass edispondo esses textos em ordem cronológica inversa, fazendo com que o romance termine com as primeiras versões, quando ainda se chamava “Der Spion”.

Em 1992 seria editado um CD-ROM que, no fundo, veio ratificar o desinvestimento crítico na questão do final do romance. Os editores do CD-ROM partem do princípio de que o Nachlass deve ser considerado “uma parte independente da obra, uma unidade completa por si e que tem de ser apresentada enquanto tal” (387). Por essa razão, o CD contém apenas a transcrição das pastas e cadernos do Nachlass. Convém citar neste ponto a descrição de Fanta:

This, the first digital edition, dispenses with the historical-critical apparatus of the reconstruction of the work, exposing the user to an incommensurable mass of manuscripts in an impenetrable arrangement, and in so doing predisposes to a form of usage that searches for particular collocations and quotations while disregarding their context, namely the time when they were written, their place in the novel, and the level or stage that the text had reached at the time of their conception. (ibid.)

Esta primeira edição digital dispensa o aparato histórico-crítico das reconstruções da obra, expondo o utilizador a uma incomensurável massa de manuscritos numa disposição impenetrável, e ao fazê-lo predispõe a um tipo de uso que procura citações e tópicos particulares ao mesmo tempo que desinveste no seu contexto, nomeadamente a data em que foram escritos, o seu lugar no romance, e o nível ou fase que o texto tinha atingido à data da sua concepção (ibid.).

Na nova edição electrónica de Musil, com data de 2009, a complexidade dos problemas da edição do espólio de O Homem sem Qualidades foi enfrentada recorrendo à hiperligação. Assim, a “continuação” do romance no Nachlass é oferecida de duas formas: por um lado, temos aquilo a que Fanta chama a sua forma “essencial” – a disposição dos manuscritos num arranjo narrativo coerente, que recupera onze sequências de esboços de capítulos; por outro, aquilo a que Fanta chama a forma “acidental” do romance, transcrita tal como foi deixada no espólio, isto é, no seu agrupamento em pastas e cadernos. Ponto decisivo: a forma essencial e a acidental estão conectadas por hiperligação. Nas palavras de Fanta, “in this way, the constitution of the reading texts becomes transparent” (390). Todos os textos são identificados quanto à sua cronologia, à sua localização num capítulo particular e ao seu lugar na sucessão de esboços. Quanto ao sistema de referências cruzadas de Musil, que se abeira das cem mil, a edição digital reprodu-las por meio de hiperligação. O usuário pode pois navegar para a frente e para trás ou na vertical, percorrendo assim todo o espólio do romance.

 

II

Suponho que o caso do Nachlass de O Homem sem Qualidades de Musil nos aproxima já muito do meu tema. Resumindo: o Nachlass é maior do que o texto editado em vida por Musil sob o título O Homem sem Qualidades; mas a sua própria natureza não permite que o disponhamos quer como continuum quer como continuação dos dois volumes publicados em 1930 e 1932. Aqui começam os problemas e começa também a felicidade dos filólogos, tópico a que regressarei inevitavelmente porque o Nachlass é parte indiscutível do romance; mas não parece haver um livro que possa acomodar esses milhares de páginas sem que a ideia de livro seja, ela mesma, posta em causa. Recordo, com Benjamin (e Abel Barros Baptista), que dizer aqui livro ou romance vai dar ao mesmo, já que o romance é aquele género não pensável historicamente fora da forma do livro (e do Print Capitalism, já agora). Esta dificuldade de acomodação parece conduzir, também inevitavelmente, ao digital, que resolveria aquilo para que o analógico não tem literalmente lugar. Se em 1992 o digital era um CD-ROM, hoje a sua forma preferencial será a internet, que em princípio resolve os problemas de falta de espaço que o CD-ROM comportava.

As questões que o Nachlass de O Homem sem Qualidades nos colocam podem talvez ser resumidas, mas de facto não esgotadas, na meta-questão “O que é um livro?” Neste caso, que nos interessa em particular para o Livro do Desassossego, a passagem ao digital ocorre para resolver os problemas que seriam os do livro. E este seria basicamente uma materialidade (o papel, o analógico) e uma ortopedia: aquela que na nossa cultura impõe a leitura da esquerda para a direita e a consequente progressão no objecto físico da primeira página até à última, também da esquerda para a direita. É esta progressão, ou o seu fundamento temporal e, em rigor, histórico, que Musil deseja bloquear, ramificando as possibilidades de saturação espacial da história até que ela entre numa histeria de hiperligação em loop [1] que faça com que a História (a que ocorreu em 1914) não tenha de facto lugar. Noutra perspectiva, o que Musil deseja fazer é substituir a história, o devir, pelo momento e por uma absolutização do presente, uma questão a que, na história dos novos meios, Lev Manovich se dedicou com particular empenho, estabelecendo uma correlação entre o triunfo do princípio da Base de Dados e a crise do futuro.

Quando Walter Fanta nos diz, sobre a mais-valia da nova edição electrónica, que “[t]he essential and the accidental forms are connected to each other via hyperlinks; in this way, the constitution of the reading texts becomes transparente” (390), a frase dá a ver toda a metafísica do digital em sede filológica. Convirá notar, desde logo, que a distinção entre forma essencial e forma acidental é, no mínimo, incidental, para não dizer contingente. Na verdade, o Nachlass é essencial porque acidental. Esclareço: todo o trabalho de Musil vai no sentido de multiplicar acidentes e incidentes que sabotem a “forma essencial” do romance, que, não por acaso, coincide com aquilo que dele foi já publicado. Musil deseja emaranhar a paisagem do ano de 1913, tal como ela aparece nos dois volumes do seu romance impossível (ou que o autor deseja tornar impossível); por isso, o Nachlass, como o próprio Fanta afirma, ainda sobre a primeira edição electrónica de 1992, em CD-ROM, é de uma radical opacidade compositiva. Na passagem à edição em DVD de 2009, a distinção entre forma essencial e forma acidental, mas sobretudo o mecanismo de hiperligação entre ambas – mecanismo ao qual está nitidamente cometido o propósito de tornar o contingente necessário –, consegue transformar essa opacidade constitutiva do Nachlass numa absoluta transparência. Para que tal se consiga, é necessário operar sobre a própria “constituição” dos textos, ou melhor, dos “reading texts”. Onde está “constituição” poderia ler-se natureza, génese, intenção, inscrição autoral, etc., ou seja, tudo aquilo que precede uma decisão sobre o lugar do texto na obra. Não sei se onde está “reading texts” se poderia ler simplesmente textos, pois parece evidente que aquilo que oferece a mais-valia da transparência é o texto formatado para a leitura em hiperligação: é quando isso ocorre, quando o usuário recorre ao link, que a opacidade se desvanece e o Nachlass se ilumina, oferecendo a verdade irrestrita do arquivo (ou, noutra versão, o arquivo como condição necessária da verdade).

Como é evidente, esta versão pós-histórica da constituição conflitual do Nachlass (porque este espólio é, em si mesmo, o gesto conflitual de quem deseja sabotar ou, no mínimo, bloquear a possibilidade da Obra) só ilusoriamente o torna transparente, ou não conflitual, já que nenhum sistema de links permite resolver a constituição (uso agora a expressão no sentido de “lei fundamental”) de uma obra. Na verdade, creio que o que Fanta nos quer dar, por outras vias, é ainda o livro como evidência constitutiva da obra. Ou seja, o livro como Ideia, o que mostra como fazer equivaler livro a materialidade ou a ortopedia é uma versão redutora daquele. O livro seria aqui (refiro-me à versão digital de que Fanta é um dos organizadores) a própria condição de possibilidade de ler um texto ilegível. Noutros termos, menos ontológicos, a legibilidade funcionaria como imperativo ético ante um espólio – e é difícil não aproximar este gesto daquela épica que acompanha a filologia pessoana, de cada vez que um editor nos descreve o seu minucioso e macerado triunfo sobre os gatafunhos de Pessoa. E isto porque cada pequenino triunfo de cada um dos grandes filólogos pessoanos relança, necessariamente, a questão do lugar que cada papelito ocupa no livro a que Pessoa supostamente o votaria (posição reforçada pelo lugar quase transcendental do livro na obra pessoana, como o demonstram as inúmeras listas de projectos de livro no espólio, ainda recentemente estudadas por Pedro Sepúlveda). Ou seja, em sede digital, cada decifração de uma irrelevância pessoana suscita um desejo de hiperligação que podemos descrever nos exactos termos de Fanta, mas agora fazendo dele um hiper-filólogo pessoano, talvez chamado Pedrito Ménard. Permitam-me pois que volte a citar Fanta, mas agora a propósito de Pessoa: “The essential and the accidental forms are connected to each other via hyperlinks; in this way, the constitution of the reading texts becomes transparent”. Funciona, não funciona?

Embora admita que possa não parecer, tenho estado já há algum tempo a tratar da situação específica do Livro do Desassossego, que tem muito a ver com a situação específica de O Homem sem Qualidades, já que em ambos os casos a obra é indissociável do Nachlass. A questão pode ser assim descrita: em Musil, o Nachlass acaba por assombrar o romance publicado em vida, fazendo daquele uma subdivisão, ou compartimento, de uma morada de muito mais assoalhadas (o romance publicado torna-se um pré-arquivo, ou pré-história do arquivo, e o verdadeiro arquivo, o Nachlass, ao impor os seus critérios, faz a obra retroactivamente sonhar uma infinitude atraiçoada pela publicação dos volumes de 1930 e 1932); em Bernardo Soares, a parte supostamente estável do arquivo – os Grandes Trechos, ou, se preferirmos, os textos editados no início do processo de elaboração do Livro do Desassossego – é de tal modo transbordada pela parte “submersa” que não lhe consegue impor nenhum critério de economia interna: a história do Livro é o gráfico da permanente produção editorial de um novo que não cessa de deslocar o arquivo primordial (os Grandes Trechos) para um espaço profano exterior ao arquivo verdadeiro, aquele que esse novo a todo o instante institui, fazendo dos Grandes Trechos, em rigor, arquivo morto [2].

Esta questão é central tanto em Musil como em Pessoa, e mais ainda neste do que naquele, já que existe em Pessoa um devir-arquivo que se reforçou espectacularmente com a mais recente geração de filólogos, que coincide aliás com o momento em que a arca se “desmaterializa”, ou rematerializa, na cópia digital. Podemos aliás dizer que no caso do Livro do Desassossego as duas edições de referência, as de Zenith e Pizarro, pressupõem um imaginário do arquivo, e mesmo, embora em regime diverso, do arquivo digital. É difícil pensar hoje Pessoa sem invocar a meta-pergunta de Boris Groys, em Sob Suspeita. Uma Fenomenologia dos Média (2008), sobre o suporte ontológico-mediático do arquivo enquanto garantia da sua duração e estabilidade:

De onde vem o tempo do arquivo? Como se abastece a economia cultural do tempo de que necessita para o seu funcionamento? A todas estas perguntas subjaz, na realidade, uma única: a pergunta pela estabilidade temporal do arquivo. (…) Porém, o arquivo encontra-se hoje sob uma radical suspeita de insegurança. E esta suspeita apenas se pode debilitar se se conseguir vislumbrar a condição do meio que suporta o arquivo. A pergunta pode formular-se pois do seguinte modo: o que sustém o arquivo e por quanto tempo? (20)

O que quero dizer, para começar, é que a evolução da recepção de Pessoa, ou seja, e para o que aqui nos interessa, a sua história editorial, que é também em boa parte a história dos estudos literários em Portugal no século XX e agora no XXI, se pode apresentar sob a seguinte fórmula:

Pessoa = Arca = Arquivo = Digital

O que a fórmula pretende narrar é, basicamente, o devir-arquivo de Pessoa nas suas fases históricas decisivas: na fase inicial, a da edição da obra de Pessoa na Ática, e sendo o editor principal quem era (João Gaspar Simões, isto é, alguém muito céptico em relação ao alcance da heteronímia), Pessoa era o nome ou metanome de Autor que, das capas dos livros ao critério filológico e editorial, regulava toda a edição. A partir de certa altura, que podemos situar na década de 80, Pessoa começa a ser não o metanome mas cada vez mais um deíctico para um espólio metonimicamente indexado a uma arca [3]. A transformação do espólio em arquivo, por meio dos trabalhos de instituições competentes para o efeito, ocupa as décadas posteriores, até à digitalização actual, que encerra um processo historicamente necessário, a partir do momento em que se lançam os trabalhos da edição crítica, mas não sem efeitos sobre a própria constituição daquilo que é hoje um Pessoa-Arquivo [4].

Esta sobredeterminação de Pessoa pelo Nachlass tem tido aliás consequências na natureza da tópica privilegiada em sede teórica. Lembro que naquela que foi talvez a primeira recensão publicada sobre a primeira edição do Livro do Desassossego, a de Arnaldo Saraiva na revista Persona, no nº 7, de Agosto de 1982, o recenseador faz o elenco dos problemas teórico-críticos que a obra coloca e que são quatro: 1) a questão da autoria; 2) a questão da transcrição dos textos (seguir ou não a ortografia pessoana, no caso); 3) a questão das atribuições dos fragmentos (já que muitos deles não trazem a indícula “L. do D.” que permite atribui-los mais tranquilamente ao Livro); 4) a questão da ordenação dos fragmentos no Livro. O elenco, já recenseável aliás em Jorge de Sena, é sagaz, assim como é reconhecível na primeira polémica suscitada pela edição do Livro, nos números 8 e 9 da mesma revista Persona, entre Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, responsável pela edição princeps. Em todo o caso, o devir-arquivo de Pessoa fez com que todas as quatro questões se fossem subsumindo na última [5], que por seu turno transformou as outras três em avatares de si mesma. Ou seja, uma questão tão relevante para pensar o Livro como a da autoria foi-se tornando aos poucos numa consequência do arquivo, pelo que a pergunta de Boris Groys – qual é o suporte submediático do arquivo? –, pergunta que não se confunde com a pergunta pela natureza do suporte do meio, já que é antes uma pergunta a um tempo kantiana (a pergunta pelo a priori do meio) e nietzschiana/foucaldiana (o que “esconde” o arquivo? o que é nele inacessível à experiência imediata?), é fundamental para pensarmos hoje a lógica arquivística que domina a nossa experiência da obra pessoana.

Convinha recordar, neste ponto, uma posição de Groys: os suportes de signos no arquivo não pertencem ao arquivo, pois permanecem ocultos sob a superfície mediática dos signos. Nas palavras de Groys, que transcrevo,

…o signo tapa a visão do suporte do meio que suporta. Por isso, a verdade mediática do signo apenas se mostra quando esse signo é eliminado e retirado, possibilitando assim a visão da forma do suporte. Alcançar a verdade mediática do signo significa suprimir esse signo, afastá-lo, apagá-lo – como se fosse sujidade – da superfície mediática.
[…] Dito de outra forma: enquanto espectadores da superfície mediática, esperamos que o meio se converta em mensagem, que o suporte se converta em signo. (29, tradução minha)

 

III

Qual é pois o suporte submediático do Nachlass–Pessoa? Tomemos o caso da edição Zenith do Livro do Desassossego, naquela proposta famosa da edição em kit:

Talvez estivesse certo assim: uma edição de peças soltas, arrumáveis ao bom prazer de cada leitor.
Uma edição de páginas soltas é pouco praticável, mas consegue-se uma certa aproximação a este ideal pelo facto de as sucessivas edições terem organizado os trechos de formas radicalmente diversas. Oferece-se, agora, mais uma arrumação possível, sem desassossego pelo que tem de arbitrário e com a esperança de que o leitor invente a sua própria. É que ‘arrumação possível’ não há, muito menos definitiva. Ler sempre fora da ordem: eis a ordem correcta para ler esta coisa parecida com um livro. (Zenith, apud Soares, 2011: 34)

Notemos que esta proposta surge após uma dupla argumentação: 1) a rejeição da ordem cronológica, “já que esta não é uma edição crítica” (anotemos, ad usum Pizarro) e porque o editor duvida de que uma tal edição fosse viável; 2) lendo as indicações de Pessoa para a organização do Livro, percebe-se que “nem ele sabia como ordenar os trechos” (33).

Vejamos então o que daqui resulta. A edição ideal, com tudo no sítio, não é possível. Logo, o ideal desloca-se para uma não-edição, ou melhor, para uma edição restringida à transcrição e atribuição de textos a colocar numa caixa [6] (estamos de novo na ontologia do Nachlass de Musil). A edição possível acaba por ser um curioso híbrido na qual

os textos datados da última fase servem de esqueleto … para articular o corpus. Entre estes trechos, mantidos em ordem cronológica, intercalam-se os outros, quer contemporâneos quer muito anteriores (e inclusive os pouquíssimos textos datados dos anos 10). Deste modo os mais antigos talvez possam, por uma espécie de osmose, adquirir algo da ‘vera psicologia’ de Bernardo Soares que Pessoa quis introduzir na revisão de texto que não chegou a fazer. O grande risco desta ordenação é que, ao leitor não atento, poderá parecer cronológica. (34)

Toda a primeira parte da edição de Zenith, que engloba na verdade os textos da segunda fase da redacção do Livro, fica sob o título “Autobiografia sem factos”, remetendo-se para uma segunda parte os textos da fase inicial, intitulados agora “Os grandes trechos”, que de facto funcionam na edição Zenith como um apêndice ou anexo a um livro que não apenas os dispensa como, em rigor, os rejeita para um lugar suplementar na sua economia. Veja-se o índice (Figura 1).

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Figura 1.

Gustavo Rubim fez a crítica demolidora, e a meu ver justa, do ideal do Livro como kit, chamando-lhe uma “ilusória e inútil liberdade” (218). O problema que agora desejo colocar é, porém, outro, e tem a ver mais uma vez com aquela auto-transparência que o digital, enquanto princípio filológico ordenador, traria à edição do LdoD. Não havendo ordem cronológica, não havendo uma decisão autoral, triunfaria o leitor – um leitor recodificado em usuário de um software que permitiria ver o Livro todo de uma vez e percorrê-lo sem constrições (para a lenda filológica do LdoD Jerónimo Pizarro realizaria este ideal em modo analógico, ao dispor todos os fragmentos em duas mesas na Biblioteca Nacional, de modo a conseguir ter uma visão de conjunto: abstenho-me de comentar por agora a dimensão teológica desta cena). O ideal de Zenith parece ser o de uma pura materialidade do livro reduzido a papéis, ou seja, o do Nachlass enquanto equivalente mediático-ontológico de Pessoa. O problema, contudo, persiste, pois não só Pessoa pensou e repensou obsessivamente a ordem de um livro chamado Livro (do Desassossego) como a versão final de Zenith é auto-refutante nos critérios que põe em cena, respondendo aos ideais de que abdica com um pragmatismo cujo momento extremo é talvez a sugestão de que o copy/paste possa trazer a Bernardo Soares os benefícios (por osmose, ou não estivéssemos perante a lógica metonímica do arquivo) de uma subjectivação de que não podia usufruir em data na qual, em boa verdade, não tinha ainda nascido…

Finalmente, a remissão dos “Grandes Trechos” para uma posição excedentária na lógica do livro faz deles o suplemento que a todo o instante reencena a questão e o problema do Livro como questão e problema intratáveis: em rigor, os “Grandes Trechos” estão duplamente fora do sítio, já que são cronologicamente o início, e – pior ainda – um início não problemático filologicamente. Digamos que Zenith decidiu autorar a sua edição transformando o início numa espécie de Post Scriptum, e optando pelo Pessoa modernista dos extraordinários fragmentos “blanchotianos” dos anos finais de 20 e de 30. É contudo muito difícil olhar para esta disposição, que entra pelos olhos dentro, sem comentar, com Derrida, que mais uma vez tudo começa no suplemento, que está ali, no limiar de uma exclusão, para nos recordar que este livro impossível teve um início assaz pacífico… A discrepância entre o ideal puramente material do kit e a realidade de uma edição muito autorada é demasiado grande para não percebermos que a proposta do kit é em Zenith de teor não tanto retórico como mediático: visa colocar em cena a equivalência entre Pessoa e o Nachlass, cuja forma ideal seria (será) o arquivo digital. Mas ao mesmo tempo evidencia, a contrario, a impossível redução do Livro a uma pura materialidade [7].

 

IV

Para abordar a mais recente edição crítica do Livro por Jerónimo Pizarro, melhor será remontar àquele momento em que Adolfo Casais Monteiro, em 1958, no “Prefácio” à 1ª edição de Estudos sobre a Poesia de Fernando Pessoa, afirma: “Mas continuamos à espera que O Livro do Desassossego venha finalmente a lume, se, como se diz, ele existe” (17, itálico meu).

Recordo que a introdução de Jacinto do Prado Coelho à edição princeps da obra, em 1982, se intitula “Fernando Pessoa sempre existiu”, título congruente com a defesa, pelo autor, de um princípio crítico de tipo dialéctico que faça subsumir a diversidade de Pessoa numa unidade inicialmente pressuposta como uma espécie de versão metodológica do círculo hermenêutico: “O que é preciso é não largar das mãos as pontas, um extremo e o seu contrário” (XXIII). Esta versão metodológica coincidiria porém com uma circularidade ontológica, exposta na conclusão do último parágrafo da Introdução:

Soares observou o momento crucial em que o auto-aniquilamento se torna uma espécie de plenitude. Descobriu-se justamente no acto de ocultar-se, quando se propunha a utopia da despersonalização total, quando pretendia definir-se pelo nada. (ibid.)

Notemos, por fim, ainda antes de entrar na edição Pizarro, que o volume de ensaios filológicos que este editou em 2012 se intitula Pessoa Existe? A pergunta não tem agora o alcance ontológico de Prado Coelho, já que parte de uma leitura do ensaio de Foucault “O que é um autor?” que se define por reduzir a questão foucaldiana a uma filologia histórica, que legitima, digamos, a redução, puramente filológica, do autor-Pessoa a uma função textual [8] .Uma função textual que, porque editorialmente deficitária – Pessoa escreve mas não reúne em livro, embora repetidamente declare a intenção de tudo reunir –, suscita ou exige a convocação de um omnipresente filólogo. E, na medida em que Pessoa é um super-autor (uma super-função-autor), ele exige um super-filólogo. O paradoxo, no que ao Livro do Desassossego concerne, reside em que Pizarro se esforça por nos esmagar com a sua competência propriamente ecdótica (e, mais propriamente ainda, codicológica) – competência em relação à qual não desejo colocar reservas – para em seguida abdicar espectacularmente de fazer livro. Creio que, a este respeito, podemos lançar às edições do Livro do Desassossego esta pergunta: a edição visa fazer livro ou não? Facilmente constatamos que as edições oscilam entre o extremo da edição Sobral Cunha, que ordena os fragmentos cronologicamente e os transcreve sem hesitar quanto à sua filiação editorial num autor (Vicente Guedes ou Bernardo Soares), e o da edição de Jerónimo Pizarro, que faz da datação dos fragmentos o seu grande sucesso para, por meio da eleição dessa datação como critério editorial, arruinar radicalmente a ideia, ou a possibilidade, de livro. Tanto a edição princeps, como a de Richard Zenith, ainda que de modo muito diverso, praticam uma versão moderada do desejo de livro, em Prado Coelho através do critério das “manchas temáticas”, em Zenith por meio do privilégio ostensivo da fase final da produção do Livro, relegando a fase inicial para uma problemática posição apendicular [9].

Vejamos apenas um exemplo dos danos causados ao livro pela adopção da datação como critério organizador. Refiro-me ao texto que Pessoa concebeu para Prefácio do Livro, que se inicia por “Há em Lisboa um pequeno número de restaurantes ou casas de pasto…” e no qual se ficciona o encontro de Pessoa com Bernardo Soares. O texto, dactilografado a tinta roxa (sigo as indicações de Pizarro no aparato genético) tem uma única indicação manuscrita, a vermelho. A inicial, que reproduzo: “L. do D (Prefacio)”. É, pois, claro que o texto se destinava a uma posição prefacial, sendo o mais convincente dos prefácios que Pessoa escreveu para o Livro. Pois bem, Pizarro atribui-lhe, por efeito da datação – que é indicada assim: [1917?] –, o número 136 entre os 586 da sua edição. O efeito prefacial pretendido pelo autor, e respeitado por Sobral Cunha e Zenith (e, razoavelmente, por Prado Coelho, em cuja edição o texto surge na p. 10, após uma série de textos com indicações de Pessoa sobre o Livro), é inteiramente arruinado por Pizarro [10].

Em nome de quê? Justamente, em nome do arquivo. Pizarro é, desse ponto de vista, a personagem que a fórmula que antes apresentei exige:

Pessoa = Arca = Arquivo = Digital

Isto é, uma personagem hegeliana cujo nome verdadeiro seria Arquivo e que, com ela, traria a sub-rogação do autor (Pessoa) pela base de dados ou, se se preferir, pelo meio em si. Recuperar a cronologia mas não recuperar a ordem; ou melhor, recuperar a cronologia para não recuperar a ordem, equivale a hipostasiar o arquivo como uma evidência pura. Retorno àquele momento- -fetiche no seu trabalho de edição do Livro do Desassossego em que Pizarro (estranhamente) dispõe os fragmentos todos em várias mesas. Dou a palavra ao filólogo:

A certa altura, depois de cruzar muitos dados e de esboçar uma primeira cronologia, também foi necessário conferir em conjunto todos os originais do Livro e não só – privilégio que agradeço à direcção da BNP, que me disponibilizou uma sala pequena, com várias mesas, para visualizar todos os documentos requisitados – de modo a obter uma visão de conjunto, para confirmar mais rapidamente algumas afinidades e para circunscrever melhor uma tipologia que, mais tarde, viria facilitar novas incursões no espólio pessoano à procura de certas raridades […] (Pizarro, 2010: 276)

Passagem deveras espantosa e reveladora de um estádio histórico do método filológico: um estádio, neste caso, em que reconhecemos a lógica recursiva dos média, na medida em que a cena nos dá a ver espacialmente o princípio da base de dados que, de acordo com Lev Manovich na sua obra de referência The Language of New Media, datada de 2001, seria o princípio estruturante dos novos meios digitais. Dispor todos os fragmentos do Livro em várias mesas corresponde de facto a fazer contaminar o analógico pelo digital e a tentar traduzir material e fisicamente um princípio de organização próprio da materialidade digital. Notemos que nada impediria, agora que o Livro se encontra inteiramente digitalizado, que a operação se processasse em ambiente digital, ou numa videowall, por exemplo. A “visão de conjunto”, esse privilégio histórico do editor Pizarro (inacessível, por exemplo, à historicidade do editor-falhado Jorge de Sena ou do editor não inteiramente réussi que foi Jacinto do Prado Coelho), não exige de facto mesas, podendo ser substituída com vantagem por outras técnicas de visualização. O mesmo para “afinidades” e “tipologias”, para as quais as ferramentas quantitativas produzidas pelas Humanidades Digitais são bem mais poderosas do que os recursos analógicos retro disponibilizados pela Biblioteca Nacional de Portugal: uma sala, mesas e fragmentos em papel.

A “visão de conjunto”, bem como a sua encenação institucional, ratificam, porém, o lugar daquele que vê o conjunto como o verdadeiro lugar da função-autoral que um Fernando Pessoa transformado em arquivo parece condenado a solicitar. Permitam-me citar a este respeito, de novo, Boris Groys:

Tudo o que se mostra se torna automaticamente suspeito: e a suspeita converte-se em suporte na medida em que permite suspeitar que por trás de todo o visível se esconde algo invisível que serve de meio ao visível. Deste modo, a suspeita não apenas arruína os velhos fundamentos como os substitui por outros novos. A suspeita transfere permanentemente velhos signos para novos meios: por isso ela é, se se quiser dizê-lo assim, o meio de todos os meios. (33, tradução minha)

A pergunta “Pessoa existe?” (uma pergunta típica da era da suspeita) faz pois sentido nesta fase do devir histórico pelo qual Pessoa deixou de ser um autor para ser uma arca, para ser um arquivo. Avanço uma evidência material da historicidade actual deste devir: as inúmeras reproduções de originais pessoanos que Pizarro integra nas suas edições e ensaios e que nos dão a ver o arquivo como evidência (ou mais-valia) (Figura 2).

 

Figura_02a

Figura_02b
Figura 2.

A resposta é razoavelmente fácil: não, Pessoa não existe, só existe o arquivo, logo, só existe o filólogo e a filologia como critério de atestação de existência. Abdicar de fazer livro, praticar convictamente uma filologia da abdicação, é aqui a contraface necessária de um devir que coloca o filólogo numa posição funcionalmente equipolente à do autor. Um devir, insista-se, tão hegeliano quanto teológico, como na cena, na Biblioteca Nacional de Portugal, em que o filólogo se apodera da visão de conjunto do arquivo, supostamente vendo-o a partir de lugar nenhum. Esse lugar que, como sabemos, não existe no século e, logo, não existe de todo na lógica e na simbólica das instituições [11].

 


Referências
Fanta, Walter (2007). “The ‘Finale’ of Der Mann ohne Eigenschaften: Competing Editions and the ‘Telos’ of the Narrative.” A Companion to the Works of Robert Musil. Eds Philip Payne, Graham Bartram, Galin Tihanov. Rochester. New York : Camden House. 371-393.
Flaubert, Gustave (1999). Correspondance I. Édition de Jean Bruneau. Paris: Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade.
Groys, Boris (2008). Bajo sospecha: Una fenomenología de los medios. Valencia: Pre-Textos.
Monteiro, Adolfo Casais (1985). A Poesia de Fernando Pessoa. Organização de José Blanco. Lisboa: IN-CM.
Pessoa, Fernando (1982). Livro do Desassossego, por Bernardo Soares. Recolha e transcrição dos textos por Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Introdução de Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Ática. Vol. I.
________ (2001). Livro do Desassossego, composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Edição de Richard Zenith. Lisboa: Assírio & Alvim. 3ª ed.
________ (2010). Livro do Desasocego. Edição de Jerónimo Pizarro. Lisboa: IN-CM. Tomo I.
Pike, Burton (2007). “Der Mann ohne Eigenschaften: Unfinished or without End?” A Companion to the Works of Robert Musil. Eds Philip Payne, Graham Bartram, Galin Tihanov. Rochester, NY: Camden House. 355-369.
Pizarro, Jerónimo (2010). Pessoa Existe? Lisboa: Ática.
Prendergast, Christopher (2007). The Classic: Sainte-Beuve and the Nineteenth-Century Culture Wars. Oxford: Oxford University Press.
Rubim, Gustavo (2000). “Livro: o Único, o Múltiplo e o Inexistente.” Colóquio/Letras  155/156:  216-219.
Saraiva, Arnaldo (1982). “A Edição do Livro do Desassossego.Persona 7: 58-60.
Tabucchi, Antonio (1984). “Uma Arca Cheia de Gente.” Pessoana Mínima. Lisboa: IN-CM. 9-33.

 


Notas

[1] Aquilo que Walter Fanta descreve como “the aesthetic of the unending loop of Musil’s production in the final years” (386).

[2] Quero com isto dizer que os textos da primeira fase do Livro não interferem em rigor na dinâmica editorial da obra, que vive do trabalho sobre inéditos ou textos incorrectamente atribuídos ou transcritos.

[3] Como marcador temporal do momento em que Pessoa se torna cada vez mais uma arca, sugiro um dos textos que o anuncia: o ensaio de Antonio Tabucchi “Uma Arca Cheia de Gente”, de 1979 no original italiano, e incluído no volume Pessoana Mínima em 1984, editado com o acompanhamento de um “Apêndice” – significativamente intitulado “Fichas para um primeiro recenseamento” – no qual se apresentam os heterónimos grandes e pequenos.

[4] Em estado editorial, aliás, bastante caótico, dada a lenta produção da edição crítica, mas em particular pela sobreposição de projectos de edição crítica, ou para-crítica, fora do nicho da equipa coordenada por Ivo Castro. Desse ponto de vista, a legibilidade da Obra Completa de Pessoa, do ponto de vista editorial, é, paradoxalmente, cada vez menor, e os editores de referência do espólio parecem comprazer-se em anunciar um estádio final de radical ilegibilidade, em função da edição contínua de textos sem uma preocupação de encaixe num plano editorial minimamente reconhecível. A debilidade do mundo editorial português não ajuda, já que vários dos projectos de edição de Pessoa não estabilizam nas casas editoriais em que se iniciam.

[5] Na sua recensão, a vários títulos modelar, Arnaldo Saraiva aborda o método seguido por Jacinto do Prado Coelho para ordenar os fragmentos do Livro – por “machas temáticas” –, elogiando-o e abrindo a certa altura a porta a muito do que se seguirá na edição da obra: “Em todo o caso, não sei se qualquer outro critério, inclusive o da ausência dele, não poderia provocar um idêntico efeito. Por exemplo, o cronológico; se e quando ele for possível. Ou até o, ‘aleatório’, da inventariação. Porque à falta de uma ordem proposta por Pessoa, qualquer leitor poderá fazer qualquer montagem, e ela em nenhum caso será ruim se se trata de uma obra estruturalmente fragmentária, sincopada, heteróclita e inconclusa.” (Saraiva, 1982: 59).

[6] A caixa da proposta de Zenith é, nitidamente, um alotropo do tropo-mestre que é a Arca, que por sua vez, é hoje, após a recodificação pelo digital, o nome verdadeiro de Pessoa enquanto Pessoa-Arquivo (ou base de dados).

[7] Seria altura para contrastar edições do Livro do Desassossego a partir do critério da disposição cronológica ou não dos textos. Neste caso, Sobral Cunha e Pizarro estão aparentemente do mesmo lado, embora, como vimos, com efeitos radicalmente opostos no que toca ao efeito da eleição desse critério sobre o desejo de fazer Livro. Prado Coelho recusa a ordem cronológica por considerá-la uma ficção filológica: não só muitos textos não seriam datáveis como, ainda que o fossem, o esforço não valeria a pena, já que nada nos garante que Pessoa, chegado ao momento de edição do Livro, seguisse a ordem cronológica. Quanto a Zenith, renuncia à cronologia por razões próximas, mas na medida em que coloca aquela secção do Livro cuja datação não oferece problemas (os “Grandes Trechos”) no final, dá a perceber a eleição da fase final como a dos verdadeiros “grandes trechos” do Livro. A proposta de Zenith, de considerar uma caixa com folhas soltas a melhor edição do Livro, jogando o aleatório contra o cronológico, mostra a sua escassa consideração por este critério; mas na medida em que de facto produz uma muito premeditada sintaxe do Livro, renunciando ao seu início histórico e fazendo dele suplemento de um Livro que não poderia existir nesses termos, evidencia ainda um desejo de Livro e de sintaxe que não autoriza o puro aleatório.

[8] Para Pizarro, nitidamente, tudo se passa como se Pessoa, ou os problemas da sua constituição autoral, estivessem integralmente contidos no ensaio de Foucault, ensaio de que Pessoa seria o mais perfeito exemplum.

[9] Uma segunda pergunta a fazer às várias edições do Livro seria a que incidiria sobre a sua autoria. Desse ponto de vista, Sobral Cunha e Pizarro estão de novo em pontos extremos, a primeira na valorização da dupla autoria (Bernardo Soares-Vicente Guedes), o segundo na desvalorização da autoria de Bernardo Soares, nome que sintomaticamente (e de forma chocante) não surge sequer na capa e folha de rosto da sua edição crítica. Para encontrarmos uma consideração mínima da questão autoral em Pizarro escusamos de percorrer a “Apresentação” do tomo I ou o “Estudo” que abre o tomo II dessa edição. Só na p. 287 do livro Pessoa Existe? Pizarro aborda a questão, em termos que pouco esclarecem sobre o descaso da referência ao autor ficcional do Livro do Desassossego. A explicação é óbvia: um livro transformado numa base de dados é um objecto que dispensa uma intenção organizadora, o mesmo é dizer, um Autor, já que a Base de Dados funciona como uma entidade transcendental que, por si só, faz mundo (With a little help, claro…). É fácil de perceber que em Sobral Cunha o desejo de fazer Livro está relacionado de muito perto com a recuperação da dupla autoria, que lhe permite ordenar o Livro em partes; no caso de Pizarro, a questão da autoria é impertinente, tanto mais que poderia colocar em causa o propósito de desfazer o Livro. No meio deste campo de tensões, Prado Coelho e Zenith partilham a atribuição a Bernardo Soares, embora Zenith sinta a necessidade (historicamente produzida por Sobral Cunha) de enfrentar a questão Vicente Guedes, necessidade muito menos sentida por Prado Coelho.

[10] Não por acaso, seguramente, na sua edição mais recente do Livro, publicada em 2013 na editora Tinta da China, e apesar de insistir em que a edição “propõe a leitura do Livro do Desassossego tal como este foi surgindo, sem o descaracterizar” (Pizarro, 2013: 28) – o exemplo da descaracterização seria a edição Zenith –, Pizarro confessa que a única alteração séria que introduziu no livro foi a alteração da “ordem de alguns textos projectados como preliminares” (id.). O Prefácio aparece, pois, a abrir o Livro, que surge também dividido agora em “Primeira Fase” e “Segunda Fase”. A mudança de atitude não é em rigor argumentada, antes integrada numa sugestão segundo a qual a nova edição, na medida em que responde a um modelo filológico mais “acessível”, implica alterações na organização da obra.

[11] Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação ‘Nenhum Problema Tem Solução: Um Arquivo Digital do Livro do Desassossego’ (referência PTDC/CLE-LLI/118713/2010), do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra. Projeto financiado pela FCT e cofinanciado pelo FEDER, através do Eixo I do Programa Operacional Fatores de Competitividade (POFC) do QREN, COMPETE: FCOMP-01-0124-FEDER-019715.