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‘Vem de longe a marca do suporte material’: Uma entrevista com João Luís Lisboa
Abel Barros Baptista

João Luís Lisboa (foto)
João Luís Lisboa

João Luís Lisboa é professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa. Tem trabalhado sobre temas de cultura moderna e contemporânea e sobre história do livro e da leitura. Foi director do Centro de História da Cultura (FCSH/UNL) e actualmente faz parte do grupo “Leitura e formas da escrita” do Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar (UAç e UNL), coordenado por Artur Anselmo. Faz parte da equipa que tem publicado as Gazetas Manuscritas da Biblioteca Pública de Évora (3 vols., 1729-1737), da equipa que tem estudado a iconografia do livro impresso em Portugal (sécs. XV-XVIII) e da equipa internacional que estuda a circulação transatlântica do impresso (1789-1914). Tem também publicado sobre problemas de teoria da História.

Nesta entrevista, o assunto foi a história do livro, as materialidades e os novos meios, ou melhor, o cruzamento de tudo isso, de forma breve mas sempre pertinente.


1.

Comecemos por um ponto que talvez não seja óbvio: a “história do livro” designa uma disciplina ou um concurso de disciplinas em torno de problemas específicos?


A História do Livro, apesar do modo preciso como define o seu objecto, cobre uma área consideravelmente vasta e plural. O sucesso que tem tido nas últimas décadas, avaliando número de publicações e de encontros, bem como a repercussão de alguns dos seus nomes sonantes, dá conta dessa pluralidade. Faz-se História do Livro quando se discute o modo como certos textos funcionam, considerando as suas circunstâncias culturais e sociais, o que significam para quem os “usa” e como são “usados”. Podemos estar a falar também de estudos sobre a materialidade dos textos, ou a sua arqueologia, mesmo perante poucos testemunhos materiais. Pode-se também ainda trabalhar sequências de publicações, ou identificar agentes e actores envolvidos, os que escreveram, os que imprimiram, os que promoveram, os que distribuíram, os que escolheram e os que leram, no número dos quais se deveriam incluir todos os anteriores.

Por isso, a designação “História do Livro”, sendo forte, não é uma vaca sagrada. Podemos estar a falar de história da leitura, ou de história bibliográfica, ou de filologia, ou de história das ideias. O que é interessante está nos problemas que se colocam, a par do que se dá como conhecimento adquirido e metodologias disponíveis. Esta apresentação pode dar a entender que nos movemos num universo fluido e tendencialmente oportunista. Mas vejo este espaço como de convergência, onde o passivo está sempre sujeito â crítica e onde as fronteiras foram desarmadas. É a partir daqui que se definem os pontos de referência, entre vivos e mortos. Desde logo, pensando nalguns mais distantes, é certo que o que fazemos tem pouca relação com o que estava na base dos elencos de um Barbosa Machado, no século XVIII ou um Inocêncio Francisco da Silva, um século mais tarde. Mas esses elencos contêm informação preciosa.

2.

Poderias circunscrever o conjunto dos “problemas que se colocam” presentemente? Ou por outras palavras, os problemas que determinam o futuro da História do Livro…  


Posso referir os estudos que têm tido lugar sobre as formas de circulação da cultura escrita, na Europa e no Atlântico, onde não é de influências que se fala, mas de transformações e de partilhas – transformações de textos e dos seus suportes, transformações de relações e de práticas. Partilham-se personagens e imagens, ao longo dos séculos, em raios de milhares de quilómetros, mas os Alexandre Dumas que eram lidos, já no século XIX, da Índia às Américas, funcionava de modo diferente. Como os Dom Quixote de Thomas Shelton no século XVII ou de António José da Silva no XVIII. Neste caso, falta uma raridade bibliográfica atrás da qual se deva correr. Tenta-se, em contrapartida, imaginar as várias vidas do cavaleiro de La Mancha. Não é Cervantes, mas uma personagem com alguns dos seus episódios que vivem em palcos, ou através de bonecos, antes mesmo de existir uma tradução inglesa ou portuguesa da obra. Em parte é isso que nos mostra o livro de Roger Chartier sobre Cardenio (2011). Não se procura uma História da recepção, dadas as diferenças entre textos, e a distância face a um qualquer ponto original. Procura-se, num trabalho em parte de arqueologia, em parte de filologia, uma história possível, autorizada por testemunhos, onde a cultura escrita é um elo importante. Outros problemas, sempre pensando em circuitos que não param em fronteiras de reinos nem de línguas, colocam-se ao modo como o papel atravessa a Europa, desde a Idade Média, e como podemos seguir os seus rastos através das marcas dos papeleiros. E para que serve e quando. E como o alargamento do conjunto de leitores, nos séculos XVIII e XIX, se correlaciona com questões de género, questões de viabilidade financeira de negócios, questões de distinção social. Pensemos na irritação de Castilho perante o romance francês, com palavras que parecem decalcadas das que, um século antes, se diziam das folhinhas que “todas as pessoas liam”, com grande desperdício das suas moedas (e aqui cito pareceres de censores).

Isto não retira fascínio ao estudo de objectos únicos, como cada incunábulo. Até porque o objecto “único” pode fazer convergir as perguntas. De onde veio o teu papel? Qual era o teu estatuto? Como conseguias rivalizar com os belos livros iluminados? O que sabia e de que vivia realmente o teu impressor?

3.

A nossa cultura informal contemporânea tem uma ideia difusa do papel, serve-se dele sobretudo em oposição aos meios chamados novos, electrónicos ou digitais. Há alguma razão nessa oposição que interesse à história do livro? Aliás, o papel que papel tem tido ou tem hoje na história do livro? E em que medida a história do livro depende da história das matérias de suporte?  


Várias perguntas querem desenvolvimentos desencontrados. Que a disponibilidade dos suportes e a maleabilidade dos dispositivos interferem na história concreta dos textos, parece claro. Isto é assim pelo menos desde que, no século 4º antes da nossa era o comércio do papiro teve um grande incremento, entre o Egipto e a Grécia. Mas também vem de longe a marca do suporte material na definição do objecto. Essa marca está na sinédoque antiquíssima, presente nas etimologias, seja a latina, seja a grega. Tanto liber como biblion remetem para o suporte vegetal da escrita. Mas o que me interessa sublinhar não é uma prisão etimológica. Em primeiro lugar interessa o sentido do que dizemos quando, por exemplo, o que seja um ebook tem oscilado entre designar textos e designar dispositivos. Em segundo lugar temos de prestar atenção ao modo como os textos se moldam a suportes diferenciados, e a leitura também. Em todo o caso, é certo que a palavra livro não está presa ao livro em papel. Como é também certo que os textos não existem sem suporte, ainda que reduzidos à memória das personagens de Fahrenheit 451. É por isso que não nos custa reconhecer que os textos são anteriores aos livros. Não os textos como essências intelectuais, mas os textos “tecidos” e partilhados, como enredos, mitos, ou jogos de sons e imagens, necessariamente mais precários nessa circunstância. A desconfiança face ao registo escrito, mostrada por Sócrates a Fedro, é uma parte desta trajectória onde se toma por essencial aquilo que é uma circunstância na existência e na partilha dos textos. Ora, hoje percebemos bem as virtudes dos registos e das suas formas, na conservação, transmissão, e usos continuados dos textos. Sucede que, com o papel e a imprensa, surgiu a ilusão de que o texto se podia fixar. Voltava-se a poder ver o texto como ele “devia ser”, “autêntico”, “eterno”. Essa ilusão nasce das enormes potencialidades do papel na missão que teve, multiplicando as reproduções, e nesse fazer, impondo de forma mais alargada um resultado como sendo o tal texto autêntico. Ironicamente, o que o papel conseguiu nesse processo, além do conforto da leitura, foi a sanção dos leitores, pelo seu número. Justamente aquilo que hoje parece ameaçador, porque fora de controlo das autoridades, com a edição digital. Volta-se a um sentimento de precariedade que, afinal, foi sempre companheira das leituras. Regressando à pergunta, a oposição entre suportes e formas da leitura é constante. O digital “contra” o papel é apenas um episódio a que assistimos e em que participamos. Tem consequências. Não é inócua, nem indolor. E podemos posicionar-nos, enquanto leitores, compreendendo as mudanças numa perspectiva mais ampla (que a história do livro proporciona), e assumindo escolhas, já que não somos meros observadores. O sentido crítico também implica entender que nada muda nem permanece apenas porque se decreta. O livro em papel não é um irredutível gaulês.

4.

Gostaria de pegar nesse exemplo, que me parece instigante, do ebook, que tanto designa textos como dispositivos. Será exemplo da contaminação do meio pela designação do material? Esta pergunta pode reformular-se mais amplamente: os “novos meios” trouxeram alguma mudança efectiva na concepção do livro ou reproduzem uma concepção tradicional persistente?


Parece-me que o sentido está traçado, ao distinguir tendencialmente obras e dispositivos, reservando às primeiras o título de livro. Isso acontece por força do crescente mercado de textos digitalizados, paralelo da concorrência entre dispositivos que têm diversas funções, e que por isso procuram nomes que os distingam. Os tablets têm aparentemente ganho posições, mesmo quando aquilo a que entretanto se passou a chamar e-readers se procurava mostrar mais forte nesta função de dar a ler textos. Aparentemente a designação “livro” está a perder a sua relação com um suporte, para reforçar outra, não menos tradicional, que destaca unidades textuais, as “obras”. Mas isso ilude as diferenças entre edições, que faz de “obras” aparentemente idênticas, livros completamente diferentes. Estou convencido de que a indústria está a conseguir resolver problemas de legibilidade e conforto em dispositivos digitais, mas está muito longe de ter adquirido a consciência do que seja o trabalho de edição. Creio que as oficinas tipográficas do século XV demoraram menos tempo a ter consciência de que os objectos que faziam eram mais do que textos, sobretudo porque pretendiam imitar material e graficamente os livros manuscritos. É certo que muitas edições impressas desse primeiro meio século não incorporam adquiridos editoriais do livro manuscrito, na organização, na identificação, na uniformização gráfica, nos capítulos, nas notas, nos índices, na foliação… Nada disso foi “inventado” pela imprensa. Mas sabendo fazer, era possível reproduzir quase exactamente o objecto livro tal como ele era reconhecido antes. Isso hoje já não é possível, com a agravante de se terem acrescentado problemas que nunca tinham existido. Por exemplo, a instabilidade da paginação quando o leitor pode interferir com tamanhos de letra. Aliás, a própria noção de paginação parece colidir com a nova realidade. Apenas se mantém pela mesmíssima pretensão dos tipógrafos de há quinhentos anos, quando queriam reproduzir a experiência da página conhecida. Se a nova edição implica desfazer a disposição gráfica associada a um suporte material, para privilegiar cada texto, ter-se-á de encontrar outras formas de referência e metro, como a antiga contagem de parágrafos. Penso que estamos ainda longe de um resultado que inequívoca e estavelmente satisfaça quem lê.

5.

Acreditas então que os novos meios de edição de textos podem implicar, de forma necessária ou contingente, um recuo na noção de sistematicidade, estabilidade, em suma, legibilidade uniforme, que caracteriza o livro tipográfico? Ao contrário aliás do que se suporia adoptando mais ou menos acriticamente a ideia de progresso que os novos meios trazem agarrada…


Não digo recuo. Digo apenas que a sensação de precariedade de todos os textos é maior, e que há na escrita digital algo que faz mais lembrar a comunicação oral do que as várias formas de comunicação escrita, mas com um acesso aparentemente inesgotável e imediato a todo o saber do mundo. Esta sensação tem uma base, embora possa ser tão ilusória como a da fixação dos textos “autênticos” pelo papel. O que o bom senso e a reflexão sobre este percurso longo aconselham é evitar decretos lapidares sobre quando se morre, ou sobre júbilos e apocalipses. É um tempo certamente interessante, mas ainda não sabemos onde vamos. E temos de nos adaptar a grande velocidade. O rolo resistiu durante muitos séculos ao códice, que nos parece tão mais prático. Resistiu sobretudo onde a cultura escrita estava mais enraizada. Aí onde a cultura escrita se espalhou com o códice tudo se passou mais depressa. Penso nesta nossa Europa ocidental de há mil e quinhentos anos. Do mesmo modo, creio que quem encontra os dispositivos digitais na sala de espera da maternidade tem uma configuração que não é a dos leitores, grandes e pequenos, dos finais do século XX, mesmo aqueles que a televisão mantinha distraídos. Mudam os meios e muda a relação entre os meios. Estamos a meio desta corrida. Mas não vejo nem precipícios nem a terra do ouro e do mel.

6.

Terminemos por agora. Queria apenas pedir-te que deixasses algumas linhas sobre o sentido do teu trabalho no campo do livro e os projectos que manténs actualmente.


Entre os projectos que tenho em curso, o de maiores dimensões tem sido desenvolvido em conjunto com a Universidade de Versailles, a Universidade de Campinas e várias outras universidades brasileiras trabalhando a circulação dos impressos, entre livros e jornais de finais do século XVIII a inícios do XX. Tem-me obrigado a desviar um pouco do que eram, e continuam a ser, os meus principais interesses, já que me levam para o processo oitocentista de constituição e consolidação do mundo editorial nos dois lados do Atlântico, entre textos e empresas. É sem dúvida interessante, até porque temos trabalhado o arquivo raro de uma editora, a Romano Torres, num projecto coordenado por Daniel Melo. Mas tenho ainda em espera outros trabalhos que não quero abandonar, relativos à circulação das ideias e da informação no século XVIII. São trabalhos onde seguimos folhas manuscritas, em Portugal como noutros países europeus, e que correspondem a redes e formas completamente diversas de comunicar, entre notícias curtas e cartas mais longas. Aquilo que, desde há cerca de 15 anos, tem sido um longo trabalho de equipa, tem como objecto principal um conjunto de folhas que vão de 1729 a 1754, de que editámos já três volumes. Mas, até porque trabalho também questões de história das ideias no século XVIII, interessam-me outras folhas deste tipo, muito abundantes na Europa, como as remessas da Correspondance Littéraire, onde Diderot publicou grande parte da sua obra, em formatos bem diferentes daqueles que hoje conhecemos e para um público bem mais reduzido, de leitores da europa central e oriental. Mal podemos imaginar o que seria a expectativa com que uma nobre senhora alemã, Luisa Ulrique da Prússia, por exemplo, recebia folhas manuscritas com algo que nunca tinha sido visto antes. Onde já se lera artigos de crítica de arte (os Salons de 1759 a 1781)? Como se sentia alguém a ler os parágrafos incendiários de La religieuse  (entre 1780 e 1782)? Hoje lemos em dispositivos bem diferentes, em papel impresso e em volume. Mas não temos de nos sentir culpados por isso. Culpada, talvez um pouco, com essas leituras, era como se deveria sentir a nobre senhora alemã, por muito iluminada que se considerasse.