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‘A minha busca é consistente nestes mais de trinta anos’: Uma entrevista com Eduardo Kac
Manaíra Aires Athayde | Paulo Silva Pereira

 

Eduardo Kac (foto)
Eduardo Kac

Flor cuja coloração é determinada por DNA humano, como se sangue humano corresse em suas pétalas. Coelho que emite luz verde como se fosse um néon. Bactérias expostas à luz ultravioleta que modificam um trecho bíblico codificado num gene sintético. Eis algumas das criaturas de Eduardo Kac.

O artista brasileiro se tornou pioneiro nos anos 1980 no uso de telecomunicações nas artes. No final dessa década, radica-se nos Estados Unidos, onde vive até hoje e é professor na School of the Art Institute of Chicago. Ao longo de mais de trinta anos, tem desenvolvido uma arte que integra biologia molecular, engenharia genética, tele-robótica e tecnologias da comunicação. Preocupado em criar híbridos e proporcionar experiências interativas, o seu trabalho reflete sobre o impacto cultural da biotecnologia, as novas condições da memória na era digital, a comunicação interespécies, a compreensão da importância dos fenômenos de comunicação na criação de realidades compartilhadas.

Nesta entrevista, Eduardo Kac nos fala sobre o seu “laboratório”. Fala sobre a bioarte ou arte transgênica, a arte da telepresença, a holopoesia. Explica como trabalha a ética performativa e como explora materialmente a relação entre corpo e linguagem. Toca em assuntos como transgressão, autoria e ecologia. Ficamos ainda a saber sobre o que pensa do cenário de produção artística no âmbito das Artes, Média e Cultura Digital no Brasil e em Portugal [1].


1.

Dois dos seus mais conhecidos trabalhos geraram muita polémica. Time Capsule (1997), em que você implantou um microchip no próprio corpo, teve vetada a exibição prevista na mostra Arte e Tecnologia, do Instituto Cultural Itaú, pelo departamento jurídico do banco, alegando que havia risco de morte para si. Já a obra GFP Bunny (2000) resultou no polémico coelho que emite luz verde como se fosse um néon, consequência da utilização de engenharia genética para introduzir genes de fluorescência em células reprodutivas do animal. Neste sentido, problematizar determinadas questões éticas está no cerne da sua criação ou essa problematização é apenas consequência dos resultados atingidos com as obras?


Pratico o que chamo de ética performativa, ou seja, a ética não fica no plano retórico; ela trabalha no interior da própria obra. Sejamos claros: não se trata de performatividade no sentido da arte da performance, e sim no sentido do desempenho, do trabalho. A ética está presente já no nascedouro da obra, mas não no sentido de ativismo político, pois esta não é minha intenção. Não sou ativista. Minhas áreas de interesse são a poesia e a filosofia. Ou seja, a ética, neste caso, passa a ser um componente material da estética: est-ética.

2.

Quais as interseções que podem ser traçadas entre arte transgénica (Bio Arte) e arte digital? A transgressão tem limites?  


A noção de interseção presume que seja possível separá-las. Isto já não é o caso no presente, e o será cada vez menos no futuro. Claro, embora bactérias estejam presentes absolutamente em todos os lugares, não há hoje vida biológica operando funcionalmente no interior de um telefone celular. Micro-organismos não participam dos circuitos que fazem funcionar o telefone. Mas a integração entre o digital e o biológico já ocorre de várias formas. De um lado, os dois se acoplam e se comunicam sem dificuldades em vários tipos de implantes, por exemplo. Tão importante quanto isso é o fato corriqueiro de planejar um componente biológico no computador, sintetizá-lo biologicamente, integrá-lo a um organismo biologicamente vivo, e depois usar recursos eletrônicos para ler digitalmente as mudanças ocorridas neste componente biológico — como fiz em minha obra Genesis, de 1999. A noção de “transgressão” é sempre relativa a seu tempo; não é um valor essencial ou absoluto. Repetir Genesis hoje já não seria transgressão; seria plagiarismo.

3.

Como avalia o impacto de sua obra no cenário internacional? 


Não cabe a mim avaliar minha própria obra. O tempo é o melhor crítico.

4.

Como analisa o cenário de desenvolvimento de trabalhos que envolvam Artes, Média e Cultura Digital no Brasil e em Portugal? O cenário é muito distinto do que se encontra nos Estados Unidos hoje, por exemplo?


No meu entender, a grande referência da nova geração em Portugal é Marta de Menezes, pioneira da bioarte. Nos Estados Unidos ninguém criou uma obra como a sua “Nature?”, composta de borboletas vivas de sua autoria. Mas nos Estados Unidos vale ressalvar a extrema importância de George Gessert, que trabalha com flores. Ele é também um pioneiro da bioarte e é companheiro nosso na fundação do movimento. Além de Marta, conheço bem o trabalho dos pioneiros Melo e Castro e Silvestre Pestana, cuja contribuição no campo da poesia tem importância internacional. No Brasil, artistas como Mario Ramiro, Hudinilson Jr., Carlos Fadon, e Otavio Donasci, por exemplo, definiram os anos 80 e 90 com obras também de importância internacional. Nos anos 90 surgiram nomes significativos como Gisele Beiguelman, Gilberto Prado e Lucas Bambozzi. A cena nos Estados Unidos é tão ampla e diversa que uma comparação direta é impossível no espaço limitado de uma entrevista. Uma excelente noção do cenário nos Estados Unidos pode ser obtida através do livro Digital Art, de Christiane Paul, também disponível em francês.

5.

De que modo conceptualiza a autoria em obras de arte parcialmente produzidas por sistemas generativos autónomos (maquínicos ou orgânicos)? Quão autónomos considera que estes sistemas são, tendo em conta o código (computacional ou genético) que está na sua base?


Não podemos atribuir autoria de uma obra de arte a uma entidade que não tenha consciência. Um autor pode abrir mão de tomar decisões, mas este ato de abrir mão é, em si, uma decisão. Podemos diminuir ao máximo nosso grau de intervenção, mas uma obra de arte não se faz por si mesma, ou seja, não se faz sem participação humana. Seria igualmente importante reconhecer a dimensão estética de várias atividades de, e objetos feitos por, animais não-humanos, mas este é um outro assunto.

6.

Considera, como Stelarc, que o corpo é obsoleto?


O corpo humano como o recebemos historicamente dos últimos séculos não corresponde ao corpo do século XXI. O corpo humano clássico era pensado como uma entidade em si, separada das outras formas de vida. Hoje sabemos que nossa massa corporal é composta de dez vezes mais células de bactérias do que células humanas. Sabemos também que temos em nosso genoma genes de vírus e bactérias, ou seja, de organismos não-humanos. Pensávamos o corpo humano como distinto dos outros mamíferos não-humanos. Hoje sabemos que a diferença genética entre nós e os chimpanzés, por exemplo, é na casa de 2%. Os implantes do passado, como o marca-passo, existiam em uma lógica cibernética clássica, baseada no processo de feedback. Hoje, os implantes são capazes de processar informação e se integrar ao sistema nervoso. Através da biologia molecular projetamos e fabricamos novas entidades vivas. O corpo do passado era objeto de estudo. O corpo de hoje é projeto de tudo.

7.

Num futuro próximo, acha que os humanos terão que criar seres sintéticos para controlar os problemas ecológicos? Que papel terá a arte nesse processo?


Não estamos falando de futuro, e sim de presente. Seres sintéticos já são criados regularmente para interferir em contextos naturais, que inevitavelmente interagem com problemas ecológicos. São muitas as plantas que já foram manipuladas geneticamente, e efetivamente plantadas, para resistir aos seus predadores naturais (que destroem plantações). Mosquitos estéreis, que de outra maneira causariam malária, já foram soltos em ambientes naturais para tentar eliminar, ou ao menos diminuir, os casos de doença. A lista é extensa. Quanto à arte, é perfeitamente concebível que um bioartista venha a produzir obras que tenham efeito ecológico benéfico, nos moldes da clássica arte ecológica dos anos 60 e 70, mas se valendo dos recursos contemporâneos da biologia molecular.

8.

Nas suas obras é notória uma intensa exploração das várias modalidades sensoriais extero e interoceptivas, como é o caso do cruzamento entre visão e proprioceção evidenciado pelas obras holopoéticas. Partindo deste questionamento dos cruzamentos multissen-soriais, que posição toma sobre a crescente intensificação da investigação académica e da produção tecnológica industrial, mas também da criação artística, em torno da tactilidade convocada por dispositivos tecnológicos digitais como tablets e smartphones?


A indústria busca simplicidade para atingir eficiência. Ou seja, busca diminuir o esforço enquanto aumenta os resultados. Assim, o tato digital, no sentido literal de “tato dos dedos,” reduz a complexidade das várias modalidades sensoriais à ponta dos dígitos. Já a arte e a poesia são completamente livres para empregar seja simplicidade ou complexidade sem nenhum compromisso com eficiência. A arte e a poesia buscam estimular a emoção, a sensação corporal, e/ou a inteligência do observador/leitor.

9.

Considerando retrospetivamente o seu percurso artístico, que ligações encontra entre os diferentes momentos e processos utilizados? Como influiu a evolução científica e tecnológica das últimas décadas na conceptualização das suas práticas artísticas?


A minha busca é consistente nestes mais de trinta anos. Na época do Movimento de Arte Pornô, 1980-82, explorei materialmente a relação entre corpo e linguagem, desfazendo a percepção da linguagem como sistema puramente cognitivo. Ou seja, literalmente incorporando a linguagem. A partir de 1982 venho criando poemas digitais, e a partir de 1983 venho criando poemas holográficos (holopoemas). Os trabalhos digitais me levaram a explorar novos meios de criação, como a rede minitel e a Internet, tanto na poesia quanto na arte. Se abre aqui minha investigação de possibilidades dialógicas em ambientes digitais, em rede, incluindo humanos e não-humanos, muito antes que ambientes multimodais e interativos, como as chamadas redes sociais, existissem. Já na holopoesia a relação entre corpo e linguagem adquire novos contornos. Na holopoesia invento novas sintaxes que convidam a uma leitura cinestética, na qual cognição e a fisicalidade corporal do leitor são indissociáveis. Os trabalhos digitais, em rede, e com sistemas de telecomunicação, me levam a fundar a arte da telepresença em 1986, na qual as trocas simbólicas em rede são projetadas para além da tela e ganham corpo, através da ação física remota do participante. Vemos que a relação entre corpo (humano e não-humano) e sistemas sígnicos adquire novas configurações aqui, incluindo a questão da comunicação entre espécies (comunicação interespecífica). Tudo isso converge na bioarte, a partir de 1997, na qual escrevo o DNA na tela do meu computador, o fabrico, e literalmente o incorporo a um organismo vivo, modificando-o e assim produzindo um organismo novo, diferente, como fiz na obra Genesis. Ou criando com procedimentos semelhantes um novo mamífero, como fiz na obra GFP Bunny, em 2000. A relação entre corpo e linguagem, ou de forma mais ampla, entre corpo e processos de comunicação, continua evoluindo em meu trabalho. Desde 2011 venho desenvolvendo o que chamo de arte olfativa, ou seja, uma forma de arte que reduz dramaticamente a importância da linguagem e da visualidade para elevar aquele que é considerado o mais baixo dos sentidos: o olfato.

 


Notas

[1] Entrevista de Manaíra Aires Athayde e Paulo Silva Pereira, com a colaboração de Ana Paula Dantas, Ana Marques da Silva e Diogo Marques, realizada em fevereiro de 2015.