Sobre o Conhecimento que a Arte É |
Considerar a arte como uma forma de conhecimento equivale a considerar que a arte é o que a arte é. Isto quer dizer que é inútil procurar o conhecimento do que a arte é fora da própria arte e do campo de tensões que nela se forma e autoconstitui como gerador de conhecimento ou, melhor, de possíveis conhecimentos, vários e diferentes. Porque a arte se manifesta como energia consubstancial a uma matéria e a uma forma agora já indistinguíveis uma da outra. Mas uma energia não se encontra nem se define fora de si própria, pois a óbvia consequência seria deixar de ser energia, para ficar a ser só forma estática, ou tornar-se o inominável que está para lá do vácuo e do nada. É que a energia ou é ou não é, tal como a arte. Por isso, conhecer a arte é participar da energia que ela é, expande e probabilisticamente comunica. Assim, considerar a arte como portadora de conhecimento é dizer que sabemos como identificar as características da energia que a arte é. E afirmarmos, mesmo hipoteticamente, que a arte gera conhecimento, é partilhar dessa energia e das suas propriedades, que passam assim a ser as nossas próprias propriedades energéticas, traduzidas em fruição e abertura emotiva e intelectual. Porque conhecer é ter consciência de sabermos o que essas características são ou podem ser, usando-as e usufruindo-as como desejarmos, livremente, na sua própria especificidade de ser o que são e de nós sermos o que somos.
Daí resulta que a arte tenha o poder de produzir o conhecimento de si própria e assim ser um motor ontológico cuja atividade edifica, tanto o ser dela própria, como o ser de quem entra no seu campo energético, quer como motivador e praticante, ou como fruidor dos objetos, por isso, ditos de arte. Objetos esses que são paradigmas diferenciais que agem quer emotiva quer intelectualmente, sobre quem entra na esfera gravitacional da energia que a arte é. Mas, se considerarmos que a arte é geradora e possuidora de um campo gravitacional específico, teremos de considerar também que o estudo da arte e dos fenómenos artísticos, pertence muito mais ao campo da Física, do que ao campo da Filosofia. E a Estética terá de ser incluída no estudo das energias gravitacionais de que o Universo se compõe. Então, o Belo, o Bem e a Verdade serão apenas manifestações ou epifenómenos superficiais da energia que a arte é, sendo só concebíveis e inteligíveis epocal e culturalmente datados, vide Kant, mas também Hegel, Adorno e uma multidão de estetas e filósofos. Por isso, outros conceitos ou manifestações epifenoménicas estão já a produzir, outras e diferentes concepções de arte e da sua praxis ou poiética, tais como a dialética entre ordem e desordem, o caos a nascer do rigor, a complexidade rizomática das relações de comunicação, ou a instabilidade epistemológica dos conceitos e concepções dos próprios epistemas paradigmáticos mais pertinentes.
O rebatimento ou equivalência do eixo sintagmático (ou da seleção) sobre o eixo paradigmático (ou da combinação), como Roman Jakobson formulou para o aparecimento da poiesis como prática processual da arte (vide, poesia), será agora a concepção fundadora de um diferente campo gravitacional do ser da arte e, por isso, do ser que o Homem é.
Assim considerando a arte como uma energia gravitacional que se manifesta probabilisticamente, poderemos considerar também que o artista, ao fabricar objetos novos (diferentes), é o agente da produção da energia com que esses novos objetos ditos obras de arte contribuem para a modificação dinâmica da esfera gravitacional daquilo a que temos chamado de cultura, sendo obviamente a poesia uma das suas manifestações.
É então no aparecimento das obras de arte, a que chamamos Heurística, que devemos procurar os processos conceptuais/emocionais/físicos que constituem a poiesis.
No entanto não podemos considerar o conjunto das obras de arte e seus processos heurísticos, como constituindo um sistema, porque tal denominação não pertence ao campo gravitacional das artes, mas sim, à lógica, à sociologia e à economia. Ou então o impropriamente chamado “sistema das artes” é um sistema fraturado e fraturante porque não possui a continuidade e a coerência, ou seja, a homogeneidade que a noção de sistema implica. No entanto, é possível considerar o campo energético gravitacional da arte como tendo características fractais, pois todas as obras de arte são de certo modo autossemelhantes entre si, possuindo dimensões não inteiras, como aliás todos os objetos e seres naturais, vegetais, animais e minerais. Além disso a energia expansiva/atrativa das obras de arte que é contraditória (vide S. Lupasco), a que vulgar e impropriamente se chama de “comunicação”, é que é a origem do efeito gravitacional, tal como no universo (macro) mas também na estrutura atómica da matéria (micro). Tal campo gravitacional será assim, também autossemelhante aos movimentos brownianos das partículas, tanto quanto aos movimentos migratórios dos animais e dos seres humanos, até à distribuição das galáxias naquilo a que chamamos de universo!
Poderemos portanto invocar os poetas-filósofos “pré-socráticos”, principalmente Empédocles e as suas teorias do mundo físico, tanto quanto Benoît Mandelbrot e a teoria do caos determinista, para verificarmos a pertinência de ambas essas teorias que se refletem reciprocamente, propondo uma poiesis ou poética geral, talvez possível, para homens e universo.
É aqui que surge a invenção como primeiramente ligada à produção de objetos novos, ditos criações artísticas, tanto quanto a situações de investigação científica e tecnológica, considerados como autossemelhantes… (a originalidade absoluta sendo um valor estético romântico agora já inadequado ou mesmo inviável).
A própria noção de invenção deverá ser reestudada à luz dos novos meios tecnológicos em uso e já previstos, assim como os processos de criação artística, ambos convergindo para um futuro que rapidamente se transformará em presente, seja ele qual for…
Já durante o século XX, mas principalmente na segunda metade, o termo invenção foi adoptado pela arte de vanguarda e seus teorizadores, principalmente experimentais, como conceito heurístico simultaneamente ligado à materialidade significante da obra de arte, mas também à sua origem transmaterial oriunda de processos mentais profundos mas não irracionais, como a abdução teorizada na semiótica de Peirce e que consiste num processo mental que se verifica tanto no âmbito científico como no artístico, estabelecendo assim uma ponte entre estas duas atividades produtoras de sentido e de inovação. De fato Peirce foi buscar o termo abdução a Aristóteles, para quem a abdução era apenas um caso especial de indução, em que a premissa menor é apenas provável e por isso a conclusão tem apenas uma probabilidade igual à dessa premissa menor. Peirce desenvolveu esse conceito enfatizando o seu caráter probabilístico, dizendo que se chama abdução a todo o raciocínio em que a conclusão é apenas verosímil, mas também fazendo notar que o pensamento que preside tanto à investigação científica como à artística é hoje de natureza probabilística e apenas verosímil, tendo em consideração, também, tanto Einstein como Werner Heisenberg. O primeiro na Teoria da Relatividade, o segundo ao escrever em 1930: “O que estabelecemos matematicamente só em pequena parte é um fato objetivo; em sua maior parte é uma visão de conjunto sobre possibilidades”.
Assim, repetimos, longe vai o tempo em que Kant teorizava a arte como a busca do Bem, da Verdade e do Belo. De fato a arte de hoje, a par do desenvolvimento científico e tecnológico, e fazendo uso dos instrumentos tecnológicos, colocou na sua estrutura o caráter probabilístico das suas invenções, a natureza estocástica e estatística dos seus materiais e adotou o simulacro como processo produtor da sua verosimilhança.
Haroldo de Campos inicia assim o seu livro de 1969, A arte no horizonte do provável (São Paulo, Editora Perspectiva):
Parece que uma das características fundamentais da arte contemporânea, e que pode ser analisada tanto de um ponto de vista ontológico como de uma perspectiva existencial, é a da provisoriedade do estético. Enquanto que, numa estética clássica, a tendência seria considerar o objecto artístico sub specie aeternitatis, a arte contemporânea, produzida no quadro de uma civilização eminentemente técnica em constante e vertiginosa transformação, parece ter incorporado o relativo e o transitório como dimensão mesma do seu ser.
A arte experimental dos anos 60 do século passado foi por mim caracterizada como:
um modo da actividade inventiva do Homem com o objectivo de fazer experiências sobre esse fenómeno ou acto, estudando simultaneamente o resultado dessas experiências. As obras de arte experimentais incluem e exibem os seus próprios métodos de invenção e realização.
Este conceito contém já uma componente problemática ligando experimentação e prática de invenção.
Mas é a natureza cada vez mais digital e por isso virtual da arte contemporânea, que se encontra hoje, no conceito de invenção, ao reunir em si própria como arte características como o efêmero da imagem múltipla, a complexidade do material sígnico, o probabilismo do significado, o dinamismo transformativo e comunicativo.
A invenção como facto heurístico possui agora um dinamismo que se distancia do caráter estático tanto de ‘criação’ como de ‘produção’ , em tempos anteriores.
Como diz René Boirel na obra Theorie générale de l’invention (PUF, 1961):
A consciência inventiva é motivada pela necessidade de uma estrutura nova susceptível de satisfazer os interesses práticos ou intelectuais dum sujeito ou mesmo simplesmente da sua alegria de inventar. A tomada de consciência de um problema é mais fundamentalmente um motivo para inventar. Discernir um problema é dar-se conta da não existência duma estrutura que seria justamente a solução desse problema e, correlativamente, da existência de uma lacuna nas estruturas já conhecidas.
Assim a invenção projeta-se sempre no futuro e, ao problematizar a própria ideia de obra de arte, abre a atividade do Homem para a perspetiva infinita do desconhecido. Desconhecido que, dia a dia, se torna em conhecido, mas que simultaneamente vai alargando e tornando mais complexo o nosso próprio conhecimento.
Fred Turner, no livro From Counterculture to Cyberculture (The University of Chicago Press, 2006), no capítulo 4, citando um artigo de Stewart Brand, diz:
O verdadeiro legado da geração de 60 é a revolução do computador. […] os programadores estavam embebidos em ideais de contracultura, de descentralização e de personalização e com um agudo sentido de que os computadores possuíam uma capacidade transformativa da informação. Eles embutiram estas ideias num novo tipo de máquina. […]. As grandes máquinas do império então existentes, foram miniaturizadas e dadas aos indivíduos e assim transformadas em ferramentas com que os indivíduos poderiam melhorar as suas próprias vidas.
Timothy Leary, no Posfácio da sua autobiografia Flashbacks: surfando no caos (trad. Bras., 1999), caracteriza assim os efeitos positivos do uso do computador:
O meu cérebro, como o de qualquer pessoa, precisa de ser banhado, inundado com ondas oscilatórias de dados electrónicos. O metabolismo do meu órgão de informações (cérebro) parece ter sofrido uma alteração dramática. Meus olhos tornaram-se duas bocas famintas através das quais pulsações electrónicas atingem as áreas da recepção do cérebro. Minha cabeça parece exigir uma entrada diária de vários bilhões de bytes de informações digitais (à velocidade da luz).
Estamos então em plena cultura da visão, para a qual contribuíram desde há vários séculos, tanto as artes chamadas plásticas como as artes da escrita, quer ideogramática quer alfabética. Mas principalmente a arte da poesia visual que, oriunda da Grécia antiga (Simias de Rodes, 3 séculos a.C.), no decorrer do século XX se desenvolveu exponencialmente até se transformar em infopoesia (imagem estática) e videopoesia (imagem em movimento), ou em qualquer outro tipo de arte digital, como formas específicas de informações digitais alimentadoras e transformadoras da perceção e da fruição intelectual e estética, que obviamente necessitam ser devidamente valorizadas, pelo que efetivamente elas são, obras de arte de um mundo alucinado mas ainda estruturalmente humano.
Nota Final
O objetivo deste texto é sugerir que é possível e urgente formular novas bases teóricas para os valores humanos característicos da arte e da poesia adequados a um mundo predominantemente tecnológico. Valores que devem ser preservados a par das pesquisas de outras formas de energia ditas alternativas, para minimizar os maléficos efeitos dos carbohidratos e de outros poluentes sobre o planeta Terra e os terranos que o habitam.
Lembremo-nos que entre esses habitantes se encontra o Homo Sapiens, que ainda somos. Porque não será talvez utopia dizer que o mundo precatastrófico em que já vivemos não deverá fornecer pistas para uma reconstrução do mundo e da cultura, apenas com base em valores tecnológicos, financeiros, políticos e religiosos, tentando repetir um desastroso paradigma economicista, que sempre conduzirá a uma situação de beco sem saída…[1]
Notas
[1] Texto lido no encerramento do XI ACTAMEDIA, em São Paulo, 04/12/2014, incorporando algumas pequenas mas significativas alterações feitas pelo autor durante a leitura.
São Paulo, 2011-2014.
© 2015 E.M. de Melo e Castro.
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