Pulsar
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Vídeo. Pulsar (2013). © Emanuel Dimas Pimenta.
Desde o início dos anos 1980 tenho elaborado projetos para edifícios que utilizam tecidos e fibras simultaneamente como “paredes” e “tetos”.
Em 1982 cheguei a viajar até áreas no Brasil Central para estudar as construções dos índios Xavante. Três anos antes, em 1979, eu tinha visitado tribos dos índios Karajá e Tapirapé no sul da floresta Amazônica, no Estado do Pará. Assim, naquele ano de 1982, eu voltava à região, à procura, desta vez, dos índios Xavante. Infelizmente, eram ainda os últimos tempos da ditadura militar no Brasil e tive a minha entrada nas reservas indígenas negada pelo setor da Igreja que era responsável pela tutela daqueles índios.
Falei com o Bispo da cidade de Goiás Velho, responsável pelas áreas indígenas na região. Tivemos um encontro muito simpático, mas quando revelei os meus planos de estudar as habitações Xavante ele me pareceu um pouco assustado sem ter compreendido o meu objetivo e, apesar de lhe apresentar cartas de apresentação e referências, disse laconicamente que não permitiria a minha entrada na reserva, pois o governo militar estava fazendo grandes pressões e ele tinha de manter aquele povo protegido do mundo. Tinha medo.
Eu nem queria acreditar. Perdi a viagem. Mas, como ele era o “dono” do lugar, nada havia a fazer.
Na verdade, não cheguei a perder a viagem, pois diante daquele obstáculo, mudei os meus planos e cruzei o Brasil, cortando pelas matas, até à mágica cidade de Salvador, na Bahia, quase no outro lado do continente.
Foi o que eu fiz.
A técnica de construção Xavante me fascinava. Eles construíam casas cônicas feitas com galhos e folhas, constituindo paredes – que também eram teto – em fibra vegetal. O topo desses altos cones eram abertos, mas interiormente tinham pequenos galhos que se cruzavam. A forma, a estrutura em fibra vegetal e a abertura com finos galhos cruzados produziam um ambiente onde o ar era permanentemente reciclado. Havia entrada de luz, mas a temperatura se mantinha estável e impedia a entrada das águas pluviais.
O meu objetivo era estudar com maior profundidade aquele sistema.
Naquela época, em torno de 1980, eu já trabalhava sobre o conceito de uma “arquitetura virtual”.
Um dos aspectos sobre os quais eu trabalhava na arquitetura virtual era o desenho do espaço-tempo como algo essencial daquilo a que chamamos de “inconsciente”.
Era o início do uso de computadores na arquitetura, mas então eles eram usados apenas como meio de reprodução do desenho, através de plotters e impressoras, assim como forma de fácil duplicação de módulos.
Era uma imensa mediocrização daquele novo universo que surgia.
O universo digital implica uma profunda reversão sensorial. Era fundamental possuir um novo método para se pensar o espaço-tempo. Os computadores não eram uma forma de facilitar a antiga arquitetura – na verdade, eles inauguravam um novo pensamento arquitetônico.
É muito impressionante que agora, quase trinta e cinco anos depois, grande parte do que é chamado arquitetura ainda é a antiga realizada com a ajuda de computadores.
Um dos elementos fundamentais da arquitetura virtual é o princípio da desprogramabilidade – que descobri junto aos índios Tapirapé de Karajá na minha viagem ao sul da floresta amazônica em 1979. Naqueles anos desenhei os passos de um método para uma arquitetura virtual – que, na verdade, eram passos para um “metamétodo”: princípios para serem apreendidos pelo arquiteto e usados como base para a elaboração de um método pessoal, individual.
Esse método consiste, fundamentalmente, em dezesseis princípios:
1. A ideia acerca do virtual surge do latim virtus – que significa potencialidade, e não da ausência ou da redução de meios. Cada elemento da arquitetura e do processo arquitetônico deve ser considerado como uma singularidade potencial. Assim, todos os elementos arquitetônicos operam como espécies de atratores matemáticos.
2. Método é essencial. Apenas com ele somos capazes de criticar o nosso próprio trabalho e nós mesmos. Assim, cada projeto deve ser desenvolvido como um processo de “metamétodo”.
3. A estratégia básica do desenho arquitetônico deve ser determinada pelo cruzamento de uma grande quantidade de estruturas metabólicas – tais como água, eletricidade, comunicação, fluxos, ventos, imagens, sons, vegetais, solo, sol, paisagem, cultura, história e assim por diante.
4. O desenho arquitetônico deve estabelecer referências lógicas livres da intenção do arquiteto. Essas referências podem ser fenômenos naturais ou matemáticos, por exemplo. Tais referências estruturais são um contraponto à linguagem arquitetônica, projetando momentos diferenciais – armadilhas lógicas – e, portanto, momentos de consciência, de iluminação, porque apenas a diferença produz a consciência.
5. No espaço (isto é, a partir da forma da consoante fricativa do indo-europeu *s que indicava a ideia de conexão e de tempo), a diferença é fundamental – porque apenas a diferença gera consciência. Mas, por outro lado, apenas a monotonia, redundância, provoca emoção.
6. O arquiteto deve estar sempre atento à unidade do desenho – unidade é o elemento essencial na comunicação.
7. Arquitetura é produto do seu tempo, do seu momento histórico. Mas, atualmente, todas as pessoas passaram a pertencer a todas as tradições, todos os tempos, não enquanto conteúdo mas sim como metabolismo. Leste e Oeste, Norte e Sul se tornaram nossa herança comum, de todos os tempos.
8. Arquitetura, tal como a arte, deve ser a crítica da cultura, não enquanto conteúdo, mas no seu modus operandi.
9. Arquitetura não é um elemento simbólico e, portanto, não é uma relação sígnica degenerada – mas um processo projetado pelo fluxo de tudo através do humano, como um poderoso sistema nervoso.
10. Computadores, assim como qualquer outro tipo de próteses ou extensões sensoriais, não são instrumentos para ajudar o desenho. Eles são parte do desenho enquanto processo.
11. No desenho, tal como aconteceu no movimento moderno, elementos estruturais não devem ser escondidos. Nada deve ser escondido ou disfarçado.
12. Cada novo projeto deve ser uma nova invenção – porque ele será sempre um momento diferente no tempo, um momento de diferentes pessoas e, portanto, de diferentes realidades.
13. Desenhar um espaço é desenhar uma paleta sensorial – cada um dos nossos sentidos é um complexo lógico diferente, mas de natureza integradora. Desenho sensorial é estabelecer complexos lógicos, desenhando o pensamento.
14. Em cada projeto, os paradigmas devem ser tomados como sintagmas, questionando cobertura e paredes, tensão e compressão, e assim por diante.
15. Cada projeto deve ser caracterizado por uma abordagem desprogramável. Um espaço deve ser facilmente desprogramável e reprogramável, porque cada pessoa é mudança, todo o tempo.
16. Arquitetura é feita para pessoas, não para catálogos – isto é: ela deve ser vivida por todos os nossos sentidos.
A desprogramabilidade está diretamente relacionada à flexibilidade e mobilidade estruturais. É algo óbvio, já previsto por Yona Friedman com a sua arquitetura móvel: o absurdo da rigidez das nossas construções. Somos, todos, permanentes metamorfoses, mas os nossos edifícios, extensões das nossas peles, são rígidos a ponto de obrigar a demolições para que algo possa ser alterado. Isso significa uma imensa perda de energia. A desprogramabilidade vai para muito além da simples mobilidade, incorpora-a.
Mas construímos ainda hoje como se fazia no Império Romano, há mais de dois mil anos, quando boa parte das edificações era feita com tijolos e cimento, como os atuais, e quando foi inventado o concreto armado – ou betão armado, como se diz em Portugal. Mais de dois mil anos presos a um tipo de construção, a um formato de materiais.
Um dos aspectos mais importantes da arquitetura virtual – e que tem uma relevância fundamental na arquitetura espacial, para edifícios orbitais – é o questionamento da cobertura e das paredes, e especialmente da tensão e da compressão.
Desde o surgimento do Homo Sapiens, há cerca de duzentos mil anos, as edificações têm sido caracterizadas pelo princípio da carga e suporte, mais que evidente em todas as construções onde são utilizados pilares e cobertura. Mas atualmente possuímos tecnologia que nos permite desenvolver outro tipo de estruturas – o que é essencial não apenas quando elaboramos algo para o espaço sideral, mas também quando pensamos criativamente no futuro.
Todo o edifício se move.
Tudo o que existe na Terra está se movendo, continuamente, todo o tempo. Muitas vezes, devido à nossa escala, não percebemos esse movimento, tal como acontece com uma montanha ou com uma grande área de terra. Mas num edifício o movimento será claro e rapidamente notável se a estrutura não for bem elaborada: logo aparecerão trincas nas paredes.
Assim, movendo-se, os edifícios estabelecem forças que são aplicadas às suas fundações. O desenho de sapatas, corridas ou não, tubulões, pilares e outros elementos da fundação devem atender a essas forças. Por isso, tal como nas paredes, lajes ou placas, usamos concreto e armaduras de ferro. Enquanto que o concreto é resistente à compressão, o ferro resiste à tensão. O desenho da combinação dessas forças dá estabilidade ao edifício.
Essa condição faz com que a preparação do terreno seja, por vezes, complexa. Por isso, algumas vezes lançamos fundações em profundidade.
Uma estrutura tensionada, ao contrário daquela que opera por carga e suporte, distribui equilibradamente as forças no solo e sempre são verticais. Isso elimina boa parte da complexidade no cálculo das fundações.
Isso não significa dizer que o edifício deixa de “trabalhar”, deixa de se mover. Mas que ele passa a distribuir equilibradamente o movimento por toda a estrutura. A isso, Richard Buckminster Fuller chamou de “sinergia” – esse é o princípio da cúpula geodésica, popularizada por Bucky Fuller, embora não tenha sido criada por ele, como por vezes se acredita. A primeira cúpula geodésica foi projetada por Walther Bauersfeld, então engenheiro da empresa óptica Carl Zeiss, para um planetário, que seria construído em 1926 em Jena, Alemanha. Cerca de vinte anos mais tarde, Buckminster Fuller realizou a sua famosa cúpula geodésica, em associação com o artista Kenneth Snelson, no Black Mountain College, em 1948 e 1949 – onde participaram grandes personalidades como Joseph Albers, Moholy-Nagy, John Cage, Merce Cunningham ou Robert Raushenberg entre tantos outros.
Nos anos 1960, Bucky Fuller cunhou o conceito de “tensegridade” – significando “integridade tensionada” ou “compressão flutuante” – como princípio baseado no uso de componentes articuladas em compressão numa rede em contínua tensão. Assim, na tensegridade as partes estruturais – como barras ou pilares – nunca se tocam e estão tensionadas através de cabos. Uma estrutura sempre móvel e leve exige uma vedação igualmente flexível e leve.
Por isso, comecei a trabalhar em projetos com elementos de vedação em fibra desde o início dos anos 1980. Naquela época ainda não tínhamos a nanotecnologia. A primeira vez que surgiu o conceito de nanotecnologia foi em 1959 numa conferência do genial físico americano Richard Feynman chamada There's Plenty of Room at the Bottom.
Em 1974 Norio Taniguchi utilizaria pela primeira vez a expressão “nanotecnologia”, cunhada por ele. Mas a ideia acabaria por ficar adormecida durante anos. Apenas em 1986, através do seu livro Engines of Creation: The Coming Era of Nanotechnology, Eric Drexler lançaria definitivamente, em termos planetários, o conceito e a expressão.
John Cage e eu trocávamos ideias sobre nanotecnologia, contrariando a imagem vulgar que se tem de um compositor de música erudita. O meu primeiro concerto baseado em princípios estabelecidos pela nanotecnologia é de 1989.
Desde o início dos anos 1980 eu imaginava a elaboração de tecidos a partir de fibras vegetais. Foi isso o que me motivou a procurar os índios Xavante em 1982. Com o surgimento da nanotecnologia, houve um dramático e rápido salto tecnológico e as antigas construções com técnicas típicas do Império Romano se tornaram ainda mais absurdas.
Em 1984 – numa equipe onde participaram os arquitetos Luciana Pimenta, Márcia Mello, Paulo Ângelo Martins e Ricardo Pedreschi – projetei um grande edifício para um centro cultural na cidade do Rio de Janeiro. Esse centro nunca chegou a ser construído, mas viria a ser, de alguma forma, um marco nesse processo. Ele era formado por gigantescas estruturas em tensegridade, em octaedros expandidos, que se articulavam distribuindo o “trabalho” por toda a estrutura. Os elementos de vedação deveriam ser realizados em fibras. Vários outros projetos semelhantes se seguiram ao longo dos anos.
Muitas pessoas acreditam que o uso de fibras em edifícios é algo muito recente, pertencente apenas às gerações a partir da década de 1960. Isso não é verdade. Já em 1928, o genial Herman Potocnik, mais conhecido simplesmente como Noordung, projetava uma fabulosa estação espacial imaginando os elementos de vedação em fibra.
Ainda nos anos 1950, Wernher von Braun e Hermann Oberth trabalhariam na elaboração do projeto de uma estação espacial baseada nos estudos de Noordung e que seria usada por Stanley Kubrick no seu célebre filme 2001 Uma Odisseia no Espaço, inteiramente constituída por nylon, que é um polímero sintético.
Parece-me inacreditável que até hoje pareça existir algum preconceito contra o uso de fibras como elemento de vedação de edifícios. Também ao contrário do que se imagina, as fibras podem ser mais resistentes, menos caras, imensamente mais flexíveis e mais leves do que o aço. Pensar que fibras são algo frágil e menos durável é outra bobagem que dificilmente compreendemos.
Quando imaginamos um edifício sem superfícies perpendiculares, cujas paredes também podem ser teto e toda a vedação é feita com o uso de tecidos, incorporamos imediatamente o mais essencial do princípio segundo o qual o revestimento de um edifício é a extensão mais exterior da nossa pele. Tratamos da articulação dinâmica com o ambiente, do princípio da divisão e, simultaneamente, da integração – como se tratássemos de um paradoxo.
Podemos ter um elemento fundamental para um equilíbrio endotérmico num tecido que constitui uma superfície de vedação, algo que seria impossível com outros elementos; podemos transitar da transparência à opacidade, da absorção à emissão de luz, da impermeabilidade à permeabilidade do ar e da luz; podemos estabelecer elementos de filtragem; podemos desenhar perfis acústicos; constituir texturas, cores, padrões, índices de reflexão – do espelhamento ao mais profundo negro.
Podemos criar – tal como foi a tradição do Extremo Oriente ao longo de milhares de anos – verdadeiros relógios de fragrâncias. Podemos ainda desenhar perfumes de espaços. Podemos reconstituir mágicos ambientes de fragrâncias, de memórias e de sons. Enfim, podemos desenhar todos os nossos elementos sensoriais estabelecendo uma paleta de complexidade e riquezas únicas em toda a história até hoje.
Mas o uso das fibras nos permite ir ainda mais longe – ele permite transformar as nossas “peles” em extensões ainda mais dinâmicas dos nossos cérebros. Podemos ter, nas vedações das nossas casas futuras, sistemas de computação que nos informem em tempo-real sobre nós mesmos e sobre o mundo, através dos quais possamos estar a interagir permanentemente com aquilo que chamamos de “inteligência”.
Através dessas novas fibras inteligentes poderemos ainda ver filmes, notícias ou documentários, ouvir música que nos envolva num ambiente sonoro único. Ou podemos constituir ambientes de grande privacidade, onde as “paredes não tenham ouvidos”. Ou podemos fazer dinamicamente com que essas mesmas “paredes” tenham um índice de reflexão sonora que nos permita imitar e recriar o ambiente acústico de uma sala de concertos ou de uma catedral.
Geralmente não pensamos no uso de fibras para os pavimentos. Agora imaginem todo o tipo de texturas e temperaturas, cores e padrões, transformando-se de acordo com o que desejarmos, acompanhando o nosso caminhar, tocando os nossos pés.
O uso de fibras nos pavimentos é muito antigo. Prova material dessa antiguidade é o que chamamos de “tapetes”. Os tapetes Persas surgiram em tempos imemoriais. Aparentemente terão surgido na antiga Pérsia há cerca de dois mil e quinhentos anos, como espécies de acumuladores energéticos, elementos de combate ao frio pelos povos nômades. Até aos nossos dias, as fibras dos “tapetes” têm sido fundamentalmente de origem animal e vegetal: lã, seda e algodão. Devido ao fato de serem extremamente perecíveis, dificilmente duram mais de mil anos. Seguramente por essa razão ainda não foram encontradas provas materiais da sua existência para além de cerca de há dois mil e quinhentos anos.
A palavra tapete surgiu do Grego tapetion, diminutivo de tapes – que era uma coberta que se colocava sobre as camas. O grego tapes surgiu do indo-europeu *temp, que significava “esticar”. Apesar da palavra Grega, a ideia do tapete terá sido um conceito importado da Pérsia, ainda que usando uma palavra de origem Indo-Europeia.
A palavra carpete surgiu do latim carpere, que significava “arrancar”. Alguns consideram que tal raiz poderia ser compreendida devido a um possível processo de fabricação de carpetes, arrancando fibras vegetais. Por outro lado, a palavra latina carpere tem a sua raiz etimológica no indo-europeu *kerp, que indicava a ideia de colheita. Em algumas línguas latinas carpir significa trabalhar um campo agrícola. Possivelmente há alguma conexão simbólica entre carpete e a imagem de um bem cultivado campo agrícola, como os que vemos quando sobrevoamos a Europa hoje.
Até hoje o uso de fibras nas edificações tem estado restrito a um acréscimo aos seus elementos constitutivos. Colocamos cortinas, tapetes, panos e plásticos sem nos darmos conta da sua dimensão de inteligência, como atuam em termos funcionais. Utilizamos um black-out nos nossos quartos – cortinas que não deixam passar luz – e não pensamos que a composição do material também tem funções relacionadas à temperatura e ao som, quer em termos de isolamentos como de reflexão… e assim por diante.
O uso intensivo de fibras nos edifícios transformam radicalmente o antigo conceito de construção, tornando tudo um dinâmico processo de inteligência. Pode-se elaborar fibras que acumulem eletricidade, que armazenem informação, que iluminem, que refrigerem, que aqueçam, que se auto limpem para além de muitas outras funções.
Haverá, naturalmente, pessoas que olharão com desconfiança para um edifício construído com fibras. Sentirão uma profunda nostalgia do passado, da antiga forma construtiva. Mas mesmo a mais tradicional, convencional e conservadora moradia do século XX pareceria um sonho de ficção científica a uma pessoa do século XVII.
Também, certamente, o inicial uso de fibras como vedação de edifícios tenderá inicialmente a uma “primitivização”, imitando o antigo uso de paredes e tetos – e seguramente essa primitivização nos parecerá absolutamente ridícula no futuro.
Aquilo que hoje pode nos parecer um ambiente “frio” e excessivamente futurista numa edificação é apenas um estranhamento diante daquilo com o qual ainda não estamos habituados.
As considerações acima podem parecer demasiadamente otimistas. Muitos laboratórios trabalham mais sobre resinas agora que sobre fibras estruturais. Mas a evolução das fibras é explosiva e o futuro nos apresenta fascinantes desafios.
A emergência dos chamados materiais inteligentes, metamateriais e nanobots é avassaladora. Nunca imaginamos que nada somos para além de um processo de nanotecnologia: a Natureza transformando vegetais, carne e minerais para produzir um novo ser humano durante um período de nove meses de gestação.
E a revolução já aconteceu.
Em 1967 o físico soviético Victor Veselago foi o primeiro a teorizar sobre metamateriais, provando que substâncias com um índice negativo podem transmitir luz.
Metamaterials são construções artificiais menores do que o comprimento de onda dos estímulos sensoriais. São materiais que não são encontrados na Natureza: estruturas celulares de diferentes tipos estruturadas em bem desenhados padrões periódicos. Para além de materiais constituintes de “mantos invisíveis” – como tem sido dito em muitos livros populares de divulgação científica – os metamateriais têm um enorme potencial para inúmeras aplicações. Basta imaginar que a reorganização dinâmica dos seus padrões periódicos pode mudar a percepção sensorial e até mesmo a interação ambiental entre diferentes materiais, transformando totalmente a nossa abordagem aos espaços arquitetônicos.
Em 1993, John Storrs Hall cunhou o termo de Utility Fog, “névoa utilitária”, que é uma coleção de minúsculos robôs, ou nanobots, que constitue uma grande estrutura física, como uma invisível nuvem de matéria ajustável à forma. Ela é invisível até que certas condições ambientais se alterem. Então, ela pode ser automaticamente transformada num material visível e, até mesmo, rígido.
No início, as pessoas pensavam sobre a névoa utilitária como uma forma de substituição dos cintos de segurança e airbags em automóveis e outros veículos. Ela seria invisível até que o movimento de outras partes, como os nossos corpos, ultrapassasse um certo limite de velocidade. Então, automaticamente, os nanobots mudariam sua relação constituindo uma matéria rígida. Mas a névoa utilitária pode fazer muitas outras coisas.
Numa entrevista a George Dvorsky em 2012, John Storrs Hall explicou sobre a névoa utilitária: “Eu tive essa visão de uma forma do tipo espuma moldável – que poderia assumir a forma de qualquer coisa dentro dela e em tempo real, o que me levou a perguntar se poderíamos possivelmente construir algo assim”. Toda a estrutura seria feita por nano foglets, medindo aproximadamente o tamanho de uma célula humana. A ideia dos foglets foi tomada da revista em quadrinhos (banda desenhada) pós-ciberpunk chamada Transmetropolitan, criada por Warren Ellis e Darick Robertson. Foglets seriam pequenos seres, capazes de se dispersar ou de se juntar formando enxames. Na névoa utilitária, foglets seriam nanobots. “Quando dois foglets se ligam eles formam um circuito entre eles, de forma que haverá uma rede elétrica física, assim eles podem distribuir energia e comunicação. […] Seriam essencialmente flocos de neve multi-ramificados relativamente próximos apenas tocando um no outro – e ao interagir com essa névoa sentiríamos como se estivéssemos em pé ou em movimento através de um pacote de neve”.
Tal névoa invisível poderia construir e desmontar prédios inteiros em segundos, substituindo qualquer instrumentalidade física necessária para a vida humana.
Em 1991, Tommaso Toffoli e Norman H. Margolus cunharam o termo “matéria programável” como referência a um conjunto de nano elementos de computação dispostos numa estrutura espacial. De acordo com o conceito de “matéria programável”, tal coleção de nanobots pode rapidamente se transformar em quase qualquer coisa que possamos imaginar, reorganizando estruturas atômicas e moleculares.
Em janeiro de 2014, Hiroshi Sato e sua equipe da Universidade de Quioto anunciaram um novo leve cristal nanoporoso que absorve seletivamente monóxido de carbono antes deste ser oxidado se transformando em dióxido de carbono.
De ferrofluídos ou grafeno a copolímeros em bloco de poliuretano, ou dos metamateriais à matéria programável, o nascimento de novos materiais é um fenômeno explosivo.
A Manifesto Moda[1] estabeleceu, creio que já nos seus primeiros passos, uma relação com o Departamento de Fibras – Fibrenamics – da Universidade do Minho, em Portugal – que se tornou mundialmente conhecida pelos seus trabalhos relacionados com a nanotecnologia.
Por outro lado, desde há alguns anos tenho sido consultor do NUTAU Núcleo de Pesquisa em Tecnologia da Arquitetura e Urbanismo da USP, Universidade de São Paulo. Com o seu diretor, o arquiteto Professor Bruno Padovano, apresentei Kairos – o meu projeto para um edifício orbital e desenvolvemos VOO UIRA, a primeira vila olímpica orbital da história.
Este novo edifício, Pulsar, como quase sempre acontece com meus trabalhos, está imerso num espírito de colaboração criativa e de descoberta. Assim, estabelecemos um princípio de cooperação através do qual ele é objeto de reflexão por parte da Universidade do Minho, especialmente da Fibrenamics; e também da Universidade de São Paulo, especialmente do NUTAU.
Em 2012, também com o objetivo de uma futura colaboração para o desenvolvimento do VOO UIRA, conheci Raul Fangueiro, pesquisador da Universidade do Minho, diretor da Fibrenamics – que também esteve em contato com Bruno Padovano.
Ao tomarmos o projeto desse edifício, num primeiro momento, trata-se do objeto de reflexão teórica. Num segundo momento, da sua construção.
O edifício, constituído por grandes unidades em tensegridade a partir da forma do tetraedro, com eixos com vinte metros, é uma espécie de gigantesco tangram tridimensional.
O tangram é um antigo jogo chinês constituído por um quadrado dividido em sete partes. A livre articulação dessas partes torna possível formar uma grande quantidade de figuras. Uma lenda sobre a origem deste quebra-cabeças conta que uma pedra preciosa teria caído ao chão e se partido em sete partes; na tentativa de a recompor, descobriu-se que com elas se poderia fazer uma imensa quantidade de representações.
Naturalmente, não se trata aqui de “representações”, mas de articulação livre da forma do edifício. Ao contrário do tangram, aqui as estruturas podem se superpor e operam num universo tridimensional. O uso de estruturas em tensegridade possibilita “momentos” verticais na base, facilitando eventuais fundações e possibilitando uma grande flexibilidade na determinação de locais para sua implantação. O edifício é constituído por módulos tetraédricos expandidos. Mas a forma de cada um desses módulos não é fixa. Ela pode variar livremente. Mesmo assumindo formas mais horizontais ou mais verticais, a estabilidade sistêmica estará sempre assegurada. Essa flexibilidade torna possível uma ampliação dos recursos estruturais na determinação da forma do edifício.
Por outro lado, as telas de vedação não são necessariamente presas nos vértices das figuras tetraédricas – mas “costuram” caminhos livremente entre aqueles vértices e os seus limites. Assim, a forma do edifício não será obrigatoriamente a da montagem dos teatraedros expandidos, mas poderá ser livre e até mesmo orgânica.
Dependendo do local ou do momento da sua implantação, das pessoas que estiverem envolvidas na sua elaboração criativa, ou das tecnologias que tiverem sido criadas o edifício terá uma forma diferente. Enfim, trata-se de um edifício que é espelho do mundo, do seu tempo, qualquer que seja ele.
Toda a tradição da arquitetura determina um tempo e um lugar. Admiramos uma catedral gótica e, imediatamente, desenhamos mentalmente a sua posição no tempo e no espaço. Nunca antes surgiu uma arquitetura sem tempo e espaço, livre, mutante.
Isso não significa reeditar um novo “estilo internacional”, pois não se trata de determinar um estilo, uma escritura, e sim de estabelecer um jogo aberto através do qual diferentes realidades arquitetônicas podem ser elaboradas. Um dos elementos essenciais desse edifício é a sua dimensão desprogramável. De fato, trata-se de um espaço desprogramável.
Através das barras estruturais passa todo o tipo de alimentação: elétrica, informacional – de todos os tipos – e também filtragem ou condicionamento de ar, e até mesmo água.
O edifício tem um nome, algo que hoje em dia já não é muito comum. Chama-se Pulsar e é uma homenagem a um querido amigo: Augusto de Campos, fabuloso personagem da poesia mundial, um dos criadores, junto com Haroldo de Campos e Décio Pignatari, da “poesia concreta”, nos anos 1940 e 1950. No início dos anos 1980 eu era aluno e grande amigo do Décio Pignatari e naquela época conheci, através dele, Haroldo e Augusto de Campos. Por acaso, tínhamos sido todos vizinhos num bairro da cidade de São Paulo. Não há palavras para dizer da minha mais profunda admiração e carinho pela pessoa e pela obra de Augusto de Campos. Há algumas pessoas que sintetizam em si mesmas o espírito de uma época – o zeitgeist – e esse é o signo essencial do Augusto de Campos, a quem este projeto é dedicado.
Pulsar resgata, na Terra, os princípios da arquitetura espacial. É a aplicação em nosso planeta de descobertas que fazemos, direta ou indiretamente, no espaço. Pois a chamada conquista espacial nada mais é que a expansão da Terra, revelando – tal como anunciado por James Lovelock e Lynn Margulis – cada um de nós como elemento mágico, dinâmico e criativo de Gaia.
Notas
[1] Manifesto Moda (MM) é uma empresa portuguesa dedicada ao desenvolvimento de têxteis inteligentes a partir das aplicações da nanotecnologia. Baseando o seu modo de produção na colaboração entre academia, indústria e artistas internacionais, o seu slogan de promoção é: “Celebrating Second Skin: Improving the role of clothing as an interface between body and environment”.
© 2015 Emanuel Dimas Pimenta.
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