Interlíngua: Miscigenação Linguística e Ficção Poética |
Introdução
A reflexão sobre o fenômeno da interlinguística na contempora-neidade incidirá especialmente sobre literaturas e textualidades resultantes da experiência linguística de indivíduos que vivenciaram deslocamentos, cruzando fronteiras e habitando culturas e países distantes de suas terras natais, aprendendo gradualmente línguas estrangeiras ou que, desde a infância, estiveram expostos a mais de uma língua.
Este fenômeno global de múltiplas causas começou a se tornar evidente com os efeitos da industrialização e o surgimento das grandes cidades no século XIX, intensificando-se no século XX e expandindo-se planetariamente no século XXI, com o contínuo aumento da mobilidade e, mais recentemente, com a porosidade das fronteiras geopolíticas através das tecnologias, promovendo o surgimento de uma textualidade interlinguística, centrada no ciberespaço e nas redes sociais.
A proposta da interlinguística enquanto campo de conhecimento é a de investigar autores e textos, teóricos e literários, de diversas origens, línguas, nacionalidades e culturas, que expressaram uma inquietação quanto ao uso da língua materna, seja por vivenciarem uma situação de movimento transnacional, migração, invasão territorial, ou imposição linguística, ou por vivenciarem um drama psicossocial com efeitos em sua construção textual.
A interlinguística é compreendida, neste contexto de pesquisa, como a qualidade característica de textos que mesclam duas ou mais línguas e, eventualmente, como a qualidade de textos ou obras monolinguísticas que, ainda assim, mantêm uma relação com outras línguas, revelada e transparente ou implícita e oculta, seja através da tradução, da interpretação, da construção sintática ou da adaptação lexical.
Em verdade, historicamente o fenômeno da criação textual interlinguística pode ser rastreado nos movimentos migratórios espontâneos ou impostos aos povos. Nesse contexto, podemos lembrar do nomadismo das populações ancestrais, da difusão das religiões, do choque entre civilizações. A própria história da formação das línguas está vinculada à exploração de territórios, às conquistas, às guerras de dominação e colonização, e também, mais recentemente, ao desenvolvimento dos transportes terrestres, marítimos e aéreos, a consequente expansão do turismo e, atualmente, ao surgimento e à expansão do ciberespaço.
Ainda assim, segundo o sociólogo indiano Appadurai, “não surgiu nenhum idioma capaz de capturar os interesses de muitos grupos em suas solidariedades translocais, mobilizações interfronteiriças e identidades pós-nacionais” (Appadurai, 1996). Constitui-se, assim, uma situação de hetero-lingualidade, de territórios contendo simultaneamente múltiplas línguas, gerando uma inevitável tensão entre línguas e seus falantes, mas também um gradual multilinguismo, uma dialética de integração, resistência e competição.
Atualmente, o fenômeno da interlinguística tornou-se uma questão para as teorias da tradução e da diversidade linguística refletindo-se em autores que recusam, reconstroem ou interferem em suas línguas maternas, e também para uma diversidade de comunidades heterolinguísticas, como é o caso da Europa contemporânea e do próprio ciberespaço.
Na teoria literária e na literatura comparada, a escritura que atravessa os domínios restritos das línguas nacionais ganhou reconhecimento através da produção de diversos autores, atuantes desde meados do século XX, que absorveram histórias linguísticas particulares, para produzir obras que alcançaram relevância e impacto na literatura e na escrita contemporâneas.
Uma seleção preliminar para um estudo de maior envergadura precisaria incluir, por exemplo, os escritores irlandeses James Joyce e Samuel Beckett; o ensaísta e romancista brasileiro Mário de Andrade; o artista plástico e criador de linguagens argentino Xul Solar; o escritor Louis Wolfson; o escritor russo Vladimir Nabokov e, finalmente, o escritor, filósofo e teórico poliglota Vilém Flusser, originário da República Tcheca, radicado em São Paulo entre as décadas de 1940 e 1970. Alguns desses autores sofreram o deslocamento entre países e continentes, outros deambularam no interior de sua própria terra natal.
Além desses, há ainda outros autores importantes, cujas obras revelam características desta natureza, que também mereceriam ser citados, tais como o argentino poliglota Jorge Luis Borges, o tcheco Franz Kafka, os brasileiros Guimarães Rosa, os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, o pouco conhecido Sousândrade e o poeta modernista Raul Bopp.
Um projeto de pesquisa que reúna tais autores deverá fazer amplo uso de tecnologias computacionais nos processos de leitura, estruturação, organização, tradução e interpretação dos textos, nos procedimentos escriturais, conceituais e criativos, bem como nos projetos de editoração e disseminação de documentos finalizados. Deste modo, a temática investigada – a criação textual interlinguística – seria observada a partir de uma metodologia contemporânea, com ampla utilização de tecnologias digitais e de procedimentos autorais individuais, coletivos e reticulares, propondo um sistema de pesquisa da linguagem textual que busca uma radical atualização instrumental.
Em busca da interlinguística
Esta busca pela interlinguística propõe assim um processo de investigação e produção no qual tanto o objeto de estudo como o próprio método utilizado são observados através de uma dinâmica de inter-relação entre o pensamento, a história, a escrita e as tecnologias contemporâneas. Cada passo da pesquisa implica numa pequena contribuição para o todo, que deve ser pensado em suas partes componentes, as quais podem, por sua vez, ser estruturadas como segue:
a) Investigação da criação literária interlinguística, suas histórias e teorias, principais autores e obras, e suas implicações culturais, sociais, históricas, políticas e identitárias.
b) Elaboração de metodologia de pesquisa, leitura, escrita, ensino e editoração da criação literária interlinguística, visando o desenvolvimento de estruturas textuais e formas de conhecimento que integrem as histórias, as teorias, as línguas além das experiências vivenciais e escriturais de autores e indivíduos num sistema hipertextual.
c) Desenvolvimento de um método escritural que investigue as potencialidades da Escrita Digital, tanto como ferramenta de pesquisa (estatística computacional, repositório de textos, classificação e busca) quanto como um novo meio de produção textual. O objetivo é a instauração de um processo meta-autoral, público, interativo e participante de produção textual, com pleno uso de softwares e hardwares, de programação computacional e das potencialidades da Internet e da Web.
d) Fundamentação teórica com base em teóricos, historiadores, filósofos, críticos, especialistas e na bibliografia coletada, buscando especialmente aqueles que, eles mesmos, passaram por uma vivência interlinguística.
e) Investigação visando o desenvolvimento de um processo de leitura digital de obras originais dos autores selecionados, e de textos teóricos, históricos e críticos, almejando a formação de um amplo repositório de textos (hiperciclopédia), acessíveis às ferramentas digitais de tratamento da informação textual, para possibilitar formas contemporâneas de produção textual e de tradução automática e cooperada, tanto individuais como coletivas e reticulares.
f) Investigação de processo de escrita digital, que incorpore formas contemporâneas da autoria digital, enfatizando processos de arquivamento, catalogação, organização, etiquetagem, hipertextualização, tradução automática e cooperada homem-máquina.
g) Investigação de processo semi-automatizado de tradução criativa ou adaptação cooperada de textos, baseado em técnicas de tradução e reelaboração textuais, visando a plena utilização de tecnologias digitais nos processos escriturais, propondo a criação de uma metodologia de produção textual e elaboração conceitual.
h) Elaboração de documento enfatizando a perspectiva histórica, social, cultural, literária, linguística e identitária, conjugando as obras e autores selecionados, avaliados a partir de uma perspectiva teórica e histórica, também caracterizada pela interculturalidade e pela interlinguística — visando o estabelecimento de um método de trabalho de criação textual fundado na tradução cooperada, na estruturação e na navegação hipertextual, na escrita em rede e no uso da netnografia.
Cada uma dessas etapas deve integrar um pensamento acerca da interlinguística como campo e objeto de estudos, indicando caminhos práticos de condução dessa busca pelo conhecimento acerca do pensar/ falar/ ler/ escrever entre línguas e culturas. Há, a nosso ver, um caudal de possibilidades na intersecção entre comunicação, tecnologia e produção artística multi- e interlinguística, sendo possível conceber uma maior convergência entre homem e máquina na análise e geração de textos e falas que envolvam mais de uma língua ou linguagem. Noutras palavras, a busca pela interlinguística há de passar, necessariamente, pelo crescente trabalho cooperativo entre homens e máquinas que têm, elas mesmas, suas próprias linguagens artificiais – igualmente de interesse neste projeto.
Interlinguística e globalização
O estudo, a pesquisa, o conhecimento, a história, a divulgação e a prática da criação textual interlinguística reveste-se atualmente de extrema importância, considerando-se o contínuo processo de globalização social, econômica e cultural, o exponencial aumento da mobilidade humana em todo o planeta, e a crescente interconexão entre indivíduos, grupos, sociedades e nações.
A literatura interlinguística reflete um fenômeno contemporâneo de transformação das representações identitárias, um realinhamento dos indivduos e grupos no processo de auto-identificação, extrapolando as formações do nacionalismo, caracterizadas por alianças com a língua e o Estado, direcionando-se para outras, de caráter transnacional e interlinguístico.
A tendência revela um momento de transição da identidade individual, grupal e coletiva, centradas no lugar do Estado-nação e na língua nacional, para formações de identidades que representem mobilidade, migração, miscigenação, interconexão, desidentificação e fragmentação. Este processo mutacional, de natureza social, cultural, política, territorial e linguística deve acelerar-se no decorrer das próximas décadas, na esteira da crescente planetarização propiciada pela conectividade e textualidade digitais, e pelo aumento da mobilidade e movimentos migratórios.
A compreensão destas identidades transnacionais e interlinguísticas, refletindo movimentação transregional, interconexão planetária e diálogo multicultural, torna-se relevante, tanto para evidenciar, analisar e compreender, como para impulsionar esta tendência de integração e intercomunicação planetárias.
Atualmente, a identidade do sujeito (refletida na permanência em sua língua nativa) desvanece-se num ambiente caracterizado pela experiência da diversidade, miscigenação e diálogo intelectual, literário, teórico e político. Certos movimentos políticos buscam deliberadamente uma desterritoriali-zação, fazendo uso intenso da tradução e consequente redisseminação de textos, expressando seus conceitos, propostas e estratégias de ação.
Presenciamos a eclosão de realidades paralelas, simultâneas, remotas, divergentes, construídas por tecnologias digitais que desafiam o protagonismo do real (enquanto contexto do corpóreo-sensível) e do local (enquanto espaço imediato do sujeito fruidor) projetando o sujeito para um mediaverso ilimitado e multilinguístico, revelando um planeta interconectado, constituindo um ciberespaço e uma cibercultura, fenômenos até há pouco desconhecidos.
As realidades anunciadas pelas mídias, especialmente a internet e a televisão, repercutem uma sucessão de eventos cada vez mais dispersos pelo planeta, evidenciando uma diversidade cultural e uma pluralidade linguística que desafiam as individualidades tradicionais, sugerindo um conceito emergente de identidade interlinguística e heterocultural.
Os sujeitos se veem confrontados pela experiência do múltiplo, do diverso, do inusitado, do distante, dos antípodas e, também, de realidades escalares dos micro e macrouniversos. Seus lugares, tempos, corpos, relações e identidades se veem desafiados por uma sobrecarga de estímulos, que provocam um realinhamento perceptivo, cognitivo, psíquico e identitário.
Diante disso, a língua enquanto veículo expressivo surge, eventualmente, como insuficiente e monotônica. Para determinadas culturas, sensíveis à materialidade dos signos, a língua nativa surge como faltante de termos, expressões, vocábulos e sintaxes para representar a experiência de um sujeito atravessado por diversas línguas, territórios, dimensões e realidades, vivenciando um tempo hipermediatizado, auscultando uma multiplicidade de linguagens, um espaço heterolinguístico.
A compreensão, a vivência, o estudo, a pesquisa e o interesse pela textualidade de caráter interlinguístico revela-se, portanto, como um tema de extrema importância, ainda que insuficientemente estudado ou discutido.
O propósito deste campo transdisciplinar é o de estimular esta temática em áreas correlatas, inovando, a partir de pesquisas, a metodologia e os processos linguísticos textuais de criação, produção e disseminação de conteúdos.
Alguns filósofos da interlinguagem
Esta investigação fundamenta-se na busca de uma abordagem teórica convergente com a temática da interlinguística, privilegiando proposições e experiências de autores envolvidos com a vivência por vezes inquietante de múltiplas línguas, culturas e territórios.
A trajetória teórica deverá fundamentar-se, portanto, nas reflexões críticas e filosóficas sobre a linguagem, a tradução, o exílio, o estrangeiro, a hipertextualidade, o multilinguismo, avançando por conceitos que, muitas vezes, desafiam os fundamentos das áreas delimitadas de pesquisa, propondo transbordamentos, e abarcando diversas disciplinas e gêneros textuais.
Derrida seria um autor exemplar neste sentido, pois sua trajetória pessoal, cultural e linguística — nascido na Argélia e emigrado para a França — certamente o predispõe tanto para uma escrita inquieta e desenraizada quanto para reflexões que incidem diretamente sobre o tema em questão, como se revela em sua exemplar autobiografia filosófica O monolinguismo do outro:
Qualquer cultura é originariamente colonial. Não tenhamos apenas a etimologia em conta para o lembrar. Toda a cultura se institui pela imposição unilateral de alguma ‘política’ da língua. A magistralidade começa, como se sabe, pelo poder de nomear, de impor e de legitimar as designações. [...] Esta imposição soberana pode ser aberta, legal, armada ou manhosa, dissimulada através dos álibis do humanismo ‘universal’, por vezes da hospitalidade mais generosa. Segue ou precede sempre a cultura como a sua sombra. (DERRIDA, 2001)
Destacamos ainda Julia Kristeva, nascida na Bulgária e emigrada também para a França, na década de 1960. Seu livro Estrangeiros para nós mesmos, conduz-nos a uma rica reflexão sobre a situação do sujeito deslocado, inspirando-se no romance de Albert Camus O Estrangeiro. Kristeva expande a estrangeiridade para as vítimas, os deficientes, os deslocados, os excluídos da mídia. Para esta autora, o estrangeiro seria um sintoma:
[...] psicologicamente, ele significa a nossa dificuldade de viver como outro e com os outros; politicamente, assinala os limites dos Estados-nações e da consciência política nacional que os caracteriza e que todos nós interiorizamos profundamente, ao ponto de considerar como normal que existam estrangeiros, isto é, pessoas que não têm os mesmos direitos que nós. (KRISTEVA, 1994)
Além destes autores, Tzvetan Todorov, filósofo e linguísta búlgaro, radicado em Paris a partir de 1963, coloca-se igualmente como um pensador que reflete sua trajetória pessoal em seu pensamento crítico. Todorov nasceu em Sófia, em 1939, mas tem vivido na França e construído sua obra em francês. Em Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana, Todorov relata o processo histórico de elaboração de conceitos relativos à diversidade humana por autores franceses desde o século XVII, enfatizando a questão da construção ideológica.
No entanto, o pensador que nos interessa mais de perto é Vilém Flusser, por sua excepcional contribuição à temática interlinguística. Tanto em proposições teóricas, presentes em seu livro Língua e Realidade, como em propostas metodológicas, especialmente a da autotradução, que ele mesmo elaborou, seguiu na prática e ainda refletiu sobre em textos, palestras e entrevistas.
Um de seus principais comentadores, Rainer Guldin, no artigo Tradução e Escrita Multilinguística, explica em detalhes o conceito flusseriano de autotradução:
Flusser redigiu a maioria dos seus textos em duas ou mais de suas quatro línguas de escrita – português, alemão, inglês e francês – continuamente traduzindo e retraduzindo a si mesmo. […] Ao invés de produzir novas versões de determinado texto na mesma língua, ele sistematicamente o traduzia para outra língua, corrigindo-o e modificando-o no processo [...].(GULDIN, 2008)
Por esta razão, para Flusser, um texto está sempre em construção:
A publicação de um texto [...] é um ato profundamente ambíguo [...] apenas um compromisso temporário: nenhum texto é o texto final, mas tão-somente um estágio provisório que se alcançou no curso de um processo de pensamento nômade, processo este fundamentalmente aberto e sem fim. (GULDIN, 2008)
Portanto, é fundamental a consciência do texto em estado de mutação e os conteúdos que as várias versões trazem espelhadas nas línguas, gerando riqueza vocabular e complexidade sintática.
No solo brasileiro, deparamo-nos com os irmãos Campos, Augusto e Haroldo, os quais, ainda que não possam ser considerados apenas nacionais, pois eram residentes permanentes na cidade de São Paulo, dedicaram-se a múltiplas poéticas criadoras, ao diálogo com a vanguarda internacional e à tradução e retradução de inúmeros escritores e poetas estrangeiros. A dedicação de Haroldo à prática tradutória, e às inúmeras tarefas que desempenhava, conduziram-no à estruturação de uma inédita teoria da tradução como transcriação ou hipertradução.
A conjunção de escritores e ensaístas nômades, e de filósofos, poetas tradutores e auto-tradutores nutrindo-se em suas próprias trajetórias e na criação mestiça, refletindo sobre e experimentando os processos inter- e multilinguísticos, deve trazer uma excepcional riqueza a esta avaliação.
A escrita diante da língua estrangeira: uma semiose imprecisa
Uma questão surge insistentemente: por que experimento pessoalmente essa inquietação linguística? O que procuro vivenciar com isso? Trata-se possivelmente de uma inquietação da minha própria personalidade que se reflete numa pulsão epistêmica e escritural.
Meu interesse derivaria de um processo existencial. Como se meu núcleo identitário não formasse uma unidade totalmente firmada, buscando constantemente reflexos alternativos, outras realidades que — através de experimentações com outras línguas — se tornariam eventualmente acessíveis.
Por este mesmo motivo, aprecio tanto de viajar, de visitar culturas e países distantes. Essa busca pela sensação de deslocamento se aproximaria a de viver outra personalidade, até mesmo à de ser outra pessoa.
Nesse sentido, a palavra ou língua estrangeira surge como um meio para se ter acesso a determinados estados diferenciados, a mundos alternativos ou imaginários. Aprender, traduzir, escrever e falar outras línguas torna-se, deste modo, um exercício de investigação identitária, a língua estrangeira atuando como um instrumento de evocação poética.
As palavras, os sons, os ritmos, as entonações de línguas pouco (ou de modo algum) conhecidas sugerem, ainda assim, sentidos possíveis. Estas leituras não impõem, no entanto, sentidos determinados. O signo desconhecido, de sentido impreciso ou inacessível, torna-se um instrumento para a poesia, ao sugerir significados possíveis que podem conduzir a muitas formas e intensidades.
O signo verbal estrangeiro, seja impresso ou vocal, não indica assim apenas uma palavra não compreendida. Ele se torna um elemento de um incessante processo de criação poética, de experimentação semântica. Ele participa, tem função de provocar a imaginação, instigar a memória, trazer ressonância, sugerindo ao leitor-escritor possibilidades de ressignificação ou reinvenção.
Nossa mente teria o potencial de, ao ouvir uma palavra desconhecida ou inexistente, insistir para que a imaginação fizesse a devida evocação de seus sentidos possíveis, adentrando outros universos, de dimensões macro- ou microescalares, próximas ou distantes.
Acho que é esse processo linguístico cognitivo que alimenta minha criação literária, e que atualmente estou tentando investigar e entender. Essas dimensões paralelas da personalidade, esse universo de tempos anteriores e futuros, são vivenciadas a partir de cenas, personagens, presenças, vozes de outras dimensões que conseguem chegar à mente, devido à imaginação ativa ou espontânea, à miscigenação linguística, a estímulos sensoriais.
Criação artística em San Diego: miscigenação de linguagens e mídias
Em San Diego, entre 1978 e 1981, habitando próximo ao litoral, um fluxo textual imaginativo, de inclinação esotérica e fantástica floresceu, inclusive em consequência desta licença para atuar criativamente, outorgada pelas comunidades e pela Universidade da Califórnia, e por uma propensão em buscar uma sintonia com o psiquismo, com a dinâmica do inconsciente.
Diversas narrativas surgiram na mesa deste quarto de uma residência bem simples, onde sozinho, à noite, redigia em folhas soltas de papel sulfite. O material era então digitado numa máquina de escrever, durante aqueles anos, meu principal instrumento de trabalho. Várias versões se sucediam até que o texto se consolidasse, com inglês corrigido por alguém nativo, formando então um caderno ordenado de páginas numeradas e grampeadas.
Anotações numa folha solta com a menção de Alpha Centauri eventualmente gerou uma densa narrativa de ficção científica, que por sua vez deu origem a uma performance e a um vídeo, de minha autoria. Ataris Vort, o herói que atravessa barreiras para enfrentar as forças que oprimem homens, animais e máquinas, tornou-se um alter-ego, uma figura mítica de um futuro iminente.
A narrativa descreve a trajetória de Ataris Vort no Planeta Megga em direção à cidadela de Atavak, onde o Conselho Supremo decide acerca da legalidade da experimentação científica sobre sujeitos humanos, animais e mecânicos. Presencia-se uma jornada psíquica de um xamã preparando-se para enfrentar o poder tecnocrático.
A sociedade imaginária de Megga representa uma metáfora da sociedade terrena, na qual animais e homens são física e mentalmente controlados, na qual o conhecimento, e outras formas de ciência que possam ser concebidas, é controlado por uma elite que domina o conceito de racionalidade e nossa identidade como seres humanos.
A ideologia prevalente, ao fazer com que atos antiéticos de matança e tortura pareçam sacrifícios necessários para a continuação de um sistema político (ou para o avanço da ciência) busca controlar e fixar limites para o sentido racional humano. Quanto mais aumentamos nossa consciência biológica e histórica, mais percebemos seus disfarces e incongruências e tornamo-nos conscientes de seu poder. Poderíamos, então, resistir a esta ameaça a nosso equilíbrio mental se expandirmos nossos limites mentais.
A metáfora do Sol Duplo, Centauri, visível apenas no hemisfério Sul, proporciona esta energia focal. A narrativa sugere que para tomarmos consciência deste sistema duoestelar temos que expandir nossa consciência além do sistema solar.
Este movimento de expansão mental permitiria que experimentássemos nossa polaridade interna e, consequentemente, nos capacitaria para a regeneração/evolução. Ataris Vort sintetiza o despertar para a Alterciência: “Conheci o sistema bissolar / experimentei minha polaridade interna".
Tal evolução dialética traria uma superação das práticas científicas pseudo-racionais. A correlação entre um evento cósmico e uma introvisão pessoal, a analogia entre o macro e o microcosmos estão no centro do significado deste trabalho, desta emissão, destas frequências televisivas, destas irradiações macroescalares.
Na elaboração da mensagem advinda de Alpha Centauri, chamada Reverberação Bissolar, o texto construía-se naturalmente numa multipli-cidade de línguas — inglês, latim, sânscrito, tupi-guarani — intermediadas com neologismos que criava livremente enquanto auscultava internamente suas sonoridades.
Meu professor e também poeta Jerome Rothenberg sugeriu que a mensagem deveria vir em duas vozes. A sugestão auxiliou muito o texto que se tornou duplicado, combinando uma voz masculina e uma feminina, sugerindo verbalmente os processos de interação entre dois núcleos estelares.
Num festival organizado pelos alunos, no campus da Universidade da Califórnia em San Diego, eu me propus a atuar como Ataris Vort. Atrás de uma parede, escondi algumas grandes pedras em vãos que deveriam cair quando eu batesse na parede conclamando a uma Moratória, na cena central e final da performance. No entanto, meu amigo Milton Torichkavili, físico brasileiro, que a meu pedido fotografava a cena, encostou na parede e provocou barulhos inconvenientes em cenas que exigiam silêncio e concentração. Além disso, nunca vi as fotografias daquela noite, foram extraviadas para sempre.
A criação literária imaginativa e exorbitante permanecia, no entanto, aliada a um comprometimento político-social-ambiental-ecológico. Ao mesmo tempo, a estrutura narrativa, a produção poética conjugava-se à experimentação performática e videográfica criando surpreendentes efeitos de linguagem.
Diversos projetos surgiram neste ambiente propício: textos poéticos, sequências narrativas, performances, vídeos, pôsteres formando um conjunto complexo de produção artística continuada, de pesquisa linguística, de proposições comunicacionais. Estes trabalhos combinavam numa dinâmica criativa, o prazer da criação textual e visual com o comprometimento de ideais sócio-políticos, num processo direcionado para uma possível ampliação da consciência.
Viver e produzir num ambiente tão vibrante, estimulante e desreprimido foi importante não apenas para meu desenvolvimento artístico e intelectual, mas também para minha maturação psíquica, sexual, social, profissional e artística.
Interlíngua na Bienal de São Paulo: uma experiência pessoal
Em 1983, Walter Zanini, então curador da 17ª Bienal Internacional de São Paulo, indicou-me para participar e produzir uma obra inédita. A vasta experiência artística que havia adquirido em meu mestrado em Artes Visuais na Universidade da Califórnia, em San Diego, pôde então florescer no Brasil.
Para participar desta Bienal, realizada no Parque Ibirapuera, de 14 de Outubro a 18 de Dezembro de 1983, reuni uma equipe de trabalho de mais de vinte pessoas. Liderei todo o grupo no processo de concepção, realização e apresentações da videoinstalação e da performance baseadas em meus contos de ficção científica. Na época dispunha de um amplo estúdio na Vila Madalena, bairro boêmio da cidade, próximo a Universidade de São Paulo, habitado especialmente por estudantes e artistas. Este espaço proveu as condições adequadas para a elaboração de projetos, produção de vídeos, performances e experimentações diversas, que resultaram dos trabalhos apresentados na Bienal.
Na preparação da performance, a linguagem textual teve uma importância fundamental. Desde a retomada de minha escrita ficcional em San Diego, meu texto vinha experimentando uma dimensão interlinguística, ainda que eu apenas tenha reconhecido este fenômeno a partir deste momento presente.
Na performance em São Paulo, a mensagem iniciatória enviada de Alpha Centauri, recebida pelo personagem Ataris Vort, reconhecidamente um de meus alter-egos, resultou de um processo tradutório no qual as frases e palavras em inglês foram substituídas por termos em português, enquanto os termos em latim, sânscrito, e tupi-guarani, e todos os neologismos, foram mantidos.
No entanto, na preparação do texto para o português, surgiu espontaneamente a necessidade de uma outra língua atuar como contraponto e comecei a me interessar, a estudar e a conhecer o esperanto. Voluntários da Associação Paulista de Esperanto traduziram vários de meus textos para esta língua estimulando meu processo criativo, especialmente através do reconhecimento de meus próprios textos traduzidos.
Deste modo, durante meses, estive envolvido na complexa tradução-recriação, para o português, dos contos redigidos alguns anos antes em inglês nos Estados Unidos. Este empreendimento de experimentação inter-linguística envolveu especialmente a inserção do esperanto num texto predominantemente em português. O trabalho de redação adquiriu, em seguida, forma concreta na performance encenada e videogravada entre Setembro e Dezembro de 1983, no Parque Ibirapuera, local da Bienal de São Paulo.
Convidei Carlos Kater, renomado músico, a participar do trabalho, para se incumbir da produção sonora. Ele compôs uma peça musical bastante complexa — ALEA — fundamentada no conceito de aleatório. Durante semanas, Kater ensaiou um coral que, em cena, acompanhava toda a performance, produzindo uma trilha musical ao vivo e gerando uma obra performática e musical, quase uma ópera.
Neste processo criativo e colaborativo, envolvendo artistas diversos, músicos, fotógrafos, video-makers, o cruzamento interlinguístico se estendia também para uma interação entre mídias, uma miscigenação entre linguagens artísticas: texto, vídeo, performance, música, áudio, poesia, design, arquitetura e para um diálogo criativo com amigos-artistas, o fotógrafo Kenji Ota, o artista plástico Sérgio de Morais, a produtora Lavignia Cardim, o arquiteto Guilherme Wendell de Magalhães e muitos outros.
Trinta anos após a participação na 17a. Bienal Internacional de São Paulo, empenhei-me na publicação dos vários textos de ficção científica, que haviam sido apresentados como vídeos ou performances desde 1978, quando iniciei meus estudos de Artes na Universidade da Califórnia.
Tive a oportunidade de concorrer ao Edital de 2012 para publicação de uma coleção de primeiras obras, patrocinado pela Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. A proposta foi agraciada e possibilitou a publicação, em 2014, pela Editora Escuta de São Paulo, da Coleção “Stelo Binara”, composta de três livros de Ficção Científica, Poética e Interlinguística: Kadmonvort: Habitante do Terceiro Planeta; Ataris Vort no Planeta Megga: Jornada para Alpha Centauri; Iompostioma: Eksperimento de Criogenia.
Os três livros da série desafiam gêneros tradicionais e reclamam rumos inéditos para a criação literária ao compor elementos da poética, política e interlinguística em um discurso de ficção científica.
As narrativas em português vão sendo gradualmente impregnadas por títulos e frases do esperanto. Para mim, este idioma artificial, mas presente em quase todo o mundo, possui um fascinante poder evocatório. Na minha percepção, sua potência de conjuração ativa a sensação de um espaço-tempo futuro em processo de ser vislumbrado e recriado. Considero ainda que as interações entre as palavras, suas formas gráficas e sonoras, especialmente nos neologismos, são parte integrante de um processo experimental interlinguístico, que nos remete às recriações de palavras operadas nas literaturas de Guimarães Rosa e James Joyce.
Conclusão
A prática escritural interlinguística surgiu gradualmente em minha produção literária, mas adquiriu evidência e surgiu como um tema de interesse e investigação apenas após a publicação em 2014 da Coleção “Stelo Binara”.
Uma aproximação da questão foi levada a cabo através de um levantamento bibliográfico preliminar, do contato com os principais textos e autores, e inclusive de uma reflexão sobre minha própria experiência como escritor multilíngue. O processo sugeriu de imediato algumas proposições acerca das características mais relevantes da criação textual interlinguística.
Uma primeira constatação indica que a criação literária multi- ou interlinguística implica um reconhecimento, pelo sujeito escritor, das possibilidades e recursos, mas, especialmente, das limitações expressivas de sua língua nativa. Esta conscientização seria naturalmente seguida por um período de experimentação, na qual o texto resultante torna-se um campo expandido agregando expressões, palavras, frases ou mesmo parágrafos e citações de outras línguas.
O fenômeno da interlinguística instaura-se num contexto contem-porâneo e reflete um processo contínuo e ruptura das fronteiras geopolíticas através das interconexões digitais que formam o ciberespaço, através dos contínuos fluxos de palavras, textos e sons que conectam indivíduos de todas as regiões do planeta. O chamado netpanto — uma espécie de multilinguagem específica das redes, surgida na Europa na década de 1990 — seria um exemplo concreto desta tendência de se superar o monolinguismo manifesto especialmente em grupos de discussão que envolvem cidadãos de diversas nacionalidades, culturas e línguas no tratamento de assuntos de interesse comum.
Deste modo, pode-se dizer que a interlinguística torna-se um instrumento expressivo importante para a experiência transversal do sujeito contemporâneo, cada vez mais nômade, confrontado com culturas, códigos e línguas que não lhe parecem naturais, e para os quais tem de responder rapidamente; um indivíduo multi- e interlingue, enfrentando discursos, mensagens, nos lugares que vive ou visita, em línguas que desconhece ou que pouco conhece, mas que é impelido pelas circunstâncias a prover um sentido, ainda que preliminar. Um sujeito crescentemente conectado, reticular, imerso em interações ecrânicas que transbordam o espaço-tempo imediato circundante, atravessam sua situação, seu corpo e sua problemática pessoal, exigindo uma constante decodificação, multidisciplinaridade, constante aprendizado e capacidade de resposta imediata.
No campo pouco conhecido do misticismo, do esoterismo, das visões reveladas e da insanidade, parece-me que experiências interdimensionais que emergem na consciência, através de contatos da mente e da psique humanas com outras realidades, podem ser melhor expressas através de uma com-junção de línguas. Considerando-se que nestas situações a realidade revelada escapa do senso comum e revela-se de uma maneira sutil, imprecisa ou fugidia, o processo tradutório, no ímpeto de transformar a experiência num discurso palpável, recorre a uma multiplicidade de códigos disponíveis ao sujeito, línguas e mídias diversas, palavras, sons, registros gráficos, desenhos, pinturas, mesmo fotografias.
Além disso, a interlinguística pode ser vista como (ou tornar-se um símbolo emergente para) um processo cultural de reconciliação entre opostos que se disputam no teatro da política, do terror e da guerra contemporâneos.
A interação, o diálogo e a conjunção de várias línguas num único texto aponta para uma dinâmica possível de reintegração de opostos, para uma literotopia na qual energias incomensuráveis, como duas línguas que (a princípio) se excluem como detentoras de um primado de significação, possam finalmente coexistir num mesmo espaço de textos e palavras.
Esta litero ou semiotopia indicaria que sistemas de signos aparentemente incomensuráveis podem, convenientemente, serem trazidos para uma arena comum, e se encontrarem como elementos de recriação de sentido para a poesia, a performance, o texto e, eventualmente, para o pensamento, a cultura e a política.
Referências
APPADURAI, Arjun (1996). Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization. Minneapolis: University of Minnesota Press.
BERNARDO, Gustavo, Anke Finger e Rainer Guldin, eds. (2008). Vilém Flusser: Uma Introdução. São Paulo: Annablume.
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