A Mente Modernista e o Exercício da Revisão |
“Revisar”. Numa apreensão distinta da ecdótica que naturaliza a ideia de revisar enquanto ato de correção, em The Work of Revision, livro publicado em 2013 por Hannah Sullivan, propõe-se refletir sobre as implicações da revisão no entendimento de uma obra não enquanto um texto acabado, mas enquanto exemplo de variações textuais, e dos seus efeitos no processo criativo do autor. Neste estudo, mais do que conceber a revisão como o exercício de rever provas tipográficas para corrigir eventuais erros ou gralhas, trabalha-se a ideia da revisão enquanto prática que implica repensar e reconsiderar o que foi escrito. Entra-se aqui, sobretudo no domínio da epigenesis, isto é, da gênesis que continua depois da publicação.
Para a investigadora, a crítica literária não tem conseguido responder à questão sobre “como a temática de um texto ou as suas preocupações formais estão ligadas à sua gênese?”. A tendência continua a ser assumir que o “text’s coming-to-be” é irrelevante diante do texto publicado e concebido como definitivo, ou mesmo que se dá pouca importância ao que o texto em processo é capaz de acrescentar ao texto final. Aponta, também, que muitas vezes os estudos criam de forma arbitrária as relações entre o texto ainda em seu estado de pré-publicação e o texto publicado.
The Work of Revision circunscreve uma análise metodológica que se preocupa – tendo em conta que os gêneros, as formas e os tipos de escrita não podem ser tratados da mesma maneira – em analisar casos de diferentes métodos de revisão e de que maneira eles criam efeitos formais distintos. O estudo de Hannah Sullivan se insere na linha de trabalhos genéticos que relativizam a noção de conclusão de uma obra, contribuindo para rever a concepção de texto fixo e definitivo ao trabalharem as ideias de mobilidade complexa e de estabilidade precária das formas. Neste sentido, o livro apresenta a comparação entre manuscritos e edições de vários escritores, a partir de uma estrutura que tem em boa parte origem no método estemático proposto por Karl Lachmann. Este método visa constituir uma espécie de “árvore genealógica” para definir a relação hierárquica das variantes textuais, assinalando a conexão e a derivação entre elas. No caso de Sullivan, a interpretação dessas relações entre os “testemunhos” (manuscritos, datiloscritos ou impressos que transmitem a obra) prevalece sobre o registro e a classificação, para os quais o modelo de stemma de Lachmann foi largamente empregado.
Outro ponto importante do livro é a distinção feita entre revisão intencional e a ideia de corrupção. A autora argumenta que para a crítica textual tradicional a principal preocupação é a corrupção, e não a revisão, pois o que interessa é que o processo de escrita resultará numa versão que será considerada a “melhor” (livre o mais possível de corrupções, consideradas erros) e que por isso é a publicada, merecendo “sobreviver” em relação às demais versões. A crítica textual tradicional parte do princípio, aponta Sullivan, de que a ideia de versão única orienta o autor desde o primeiro momento. Neste caso, a variação textual, só existe enquanto tentativa de alcançar aquele texto “melhor” que acredita vir a atingir. Para investigadores como Jerome McGann, esta perspectiva serve apenas para o crítico isolar e remover o que considera como erro acumulado, sem perceber as complexas dimensões trazidas pelas e com as variações textuais.
Em The Work of Revision afirma-se que a revisão intencional só é possível no período modernista, quando se instauram novas questões relacionadas com a consciência e com a percepção. As narrativas modernistas exploram um novo uso criativo do ponto de vista, com várias perspectivas e focos, com ênfase na subjetividade, nos estados de consciência, na fragmentação e na descontinuidade. Ao contrário do romantismo, com a sua herança positivista de linearidade progressiva e a visão do artista como o ser recluso em que a escrita é muitas vezes inspiração, e não ofício, trabalho, labor, como no modernismo. Deste modo, não é de se estranhar que sejam os escritores do período modernista, como argumenta Sullivan, os que revisam mais do que os seus antecessores em diversos sentidos: com mais frequência; em mais pontos ao longo da construção do texto e em vários momentos de escrita; de modo estrutural e experimental em vez de pontos isolados de substituição lexical; e mais auto-conscientemente, deixando muitas vezes os vestígios da revisão no produto final.
Neste ponto, antes de mais, é importante que se diga que a investigadora opta por não sistematizar os conceitos da crítica textual e da periodização que adota. Por um lado, cria um texto fluido e bem articulado, aliando consistentemente teorias a importantes estudos de casos. Por outro, por vezes, deixa o leitor atônito sem saber se é ou não consensual determinado uso terminológico e sem saber a progênie de alguns dos conceitos empregados. É preciso ressalvar também que o livro apresenta uma grande capacidade de síntese e encadeamento, com súmulas em pontos estratégicos para relembrar aspectos que foram tratados e encadeá-los com o que será trabalhado a seguir.
Hannah Sullivan destaca três tipos de revisão. Em casos mais básicos, a revisão emerge como uma necessidade de corrigir problemas ortográficos ou vícios estilísticos num primeiro esboço de composição. Outro tipo de revisão é a que visa alterar o propósito, a direção ou as características de um trabalho. Neste caso, a revisão pode resultar num texto com um novo gênero, distinto do gênero de sua versão anterior. Entretanto, o seu trabalho centra-se num terceiro tipo: o da revisão que intensifica, refina ou improvisa no texto concebido anteriormente. Daí o enfoque nos processos de substituição, em que há a preterição de palavras ou trechos por outros; de excisão, que se desdobra sobre a remoção de partes textuais; e de adição, com o acréscimo de novas palavras, frases, parágrafos ou mesmo capítulos ou partes inteiras. Argumenta-se que estes dois tipos de revisão são prolíficos no período do Alto Modernismo e são os responsáveis pela produção de determinadas estruturas literárias com novos graus de dificuldade e padrões estilísticos que reconhecemos como modernistas. Para trabalhar com as ideias de excisão e de adição são escolhidos os escritores James Joyce, Marcel Proust e T. S. Eliot.
Em “Excision and Textual Waste”, capítulo três da obra, o argumento é construído partindo-se da preocupação dos escritores modernistas com o equilíbrio entre economia textual e resíduo textual. No caso de Marcel Proust, demonstra-se que a partir de 1910 o escritor passou a desenvolver uma estratégia de composição que viria a produzir efeitos de concentração e de foco a partir do tratamento do texto. Nesse processo de excisão, o autor associa a escrita “contida” e “controlada”, com poucos conectivos e adjetivos, a valores exortados pelas tendências culturais e tecnológicas da época, como a rapidez, a eficiência, a limpeza.
Num “compositional counterpoint”, como denomina Sullivan, está James Joyce, que teria encontrado uma forma diametralmente oposta à de Proust para lidar com as fronteiras entre economia textual e resíduo textual. A autora argumenta que Joyce desenvolveu uma “radical excision”, na qual numerosos trechos do texto são cortados, na tentativa de isolar determinados grupos textuais que reforcem ideias que se querem enfáticas na narrativa. A revisão aditiva esforça-se para incorporar todas as alterações no texto, até mesmo para «conter» a história (como o próprio Proust alegou). Por seu turno, a excisão possibilita que, com a remoção de partes textuais, fragmentos que permaneceram possam ganhar ênfase no conjunto textual, privilegiando as elipses sintáticas mais do que a elaboração.
É com esta perspectiva que se explora a ideia de elipse na obra de James Joyce. Hannah Sullivan questiona: se a forma modernista pode ser resumida como “um conjunto de práticas de estilo”, incluindo a simultaneidade, a justaposição, a montagem, a fragmentação, o paradoxo, a ambiguidade e a incerteza, então que melhor maneira de conseguir um efeito modernista do que seguindo um protocolo escrito que inevitavelmente leva à simultaneidade e à fragmentação? A excisão enfatiza o instantâneo visual ou fonopoético sobre o argumento discursivo e a narrativa convencional, pelo que, tornando-os mais curtos, tende a aumentar o grau de dificuldade do texto. Se a adição cria textos com alta complexidade por meio da abrangência, da proliferação, da complexidade de dicção e da parataxe, a excisão permite a criação de textos mais “duros” por pedirem aos leitores para preencherem as lacunas, as elipses.
Além da “radical excision”, todavia, ainda nos deparamos com outra estratégia assinalada na obra de James Joyce. O quarto capítulo de The Work of Revision aponta que alguns episódios de Ulysses constituem um “cenário ideal” para realizar o que Sullivan chamou de “inside out-addittion”. Neste sentido, as novas ideias ou velhas frases escritas num caderno puderam ser intercaladas, entre o datiloscrito e a prova concebida, numa estrutura pré-ordenada. O processo, denominado de “adding material”, é caracterizado sob dois tipos: “interlinear glossing”, em que mais texto é acrescido em pontos de um texto já existente, pontos estes que originalmente se encontravam “compactados”, quer dizer, que permitiam ganhar novos desenvolvimentos; e “multiplicative sctructure”, em que a estrutura é concebida com vários “pontos de entrada” porque é projetada para ter uma infinita extensibilidade, atendendo ao princípio do “maximum inclusivity”, em que se tem que criar uma forma que permita que algo não seja excluído meramente por não se encaixar.
Não obstante, para tratar dos problemas de substituição textual, Hannah Sullivan escolhe a obra de Henry James, um dos mais importantes nomes do realismo literário inglês do século XIX. No segundo capítulo, a produção do autor é trabalhada a partir da década de 1870 até o fim da sua carreira, focando-se o período posterior à edição da coleção New York Edition (com 24 volumes do escritor anglo-americano contendo romances, novelas e contos), publicada originalmente na Inglaterra entre 1907 e 1909. Este recorte temporal é fundamental para perceber as alterações que levam Sullivan a concluir que, depois do fracasso de vendas de New York Edition, Henry James se tornou um escritor aditivo. O autor, reconhecido como um obsessivo revisor de sua própria obra, tinha por prática mais comum, no início de sua carreira, a substituição (sobretudo a substituição verbal), de modo que nas primeiras obras era bem mais um escritor substitutivo do que um escritor de acréscimos.
Ao contrário, inclusive, da conclusão a que a investigadora chega, no sexto e último capítulo, “Revision, Late Modernism and Digital Texts”, quando conclui, a partir de leituras genéticas de autores do período posterior ao Alto Modernismo, centrando-se em W. H. Auden, Allen Ginsberg e David Foster Wallace, que há um retorno à substituição como principal ferramenta de mudanças textuais. O valor literário tornou-se estreitamente relacionado com o que Hannah Sullivan chama de “revisedness”, em que os autores se tornam mais “abertos” e até mesmo publicitários de si mesmos e de suas práticas de escrita.
The Work of Revision trata, ainda, no penúltimo capítulo, da revisão na escrita autobiográfica. Reflete-se sobre como as especificidades do gênero autobiográfico governam o processo de composição textual, trabalhando para tanto com obras de James Joyce, Leslie Stephen e Virginia Woolf. O argumento é que, como as autobiografias lidam com a ideia do fim, elas são governadas por prosopopeias, numa espécie de “voz vinda do além-túmulo”, o que significa que os escritores tendem a deixar autobiografias inacabadas, apesar de estarem constantemente a fazer revisões. Assim, as autobiografias são necessariamente incompletas e parecem ser mais passíveis de revisão do que outras formas literárias, estando “abertas” a constantes reescritas. Além do mais, ao exigirem uma retrospectiva da vida do autor, possuem uma estrutura com “foco duplo”, na qual no momento presente da escrita o passado é imprescindivelmente evocado. Sullivan alega que se trata de um processo semelhante ao da revisão – que denomina de “going over” –, pois o ato de revisar um texto requer associar o presente no qual se faz a revisão à lembrança de momentos passados em que o texto foi escrito.
Eis aqui, portanto, um estudo atento historicamente e de notável esforço comparatista. Um trabalho plural que abrange desde a crítica sócio-textual de Jerome McGann e George Bornstein à crítica genética comparativa praticada por Geert Lernout e por Dirk Van Hulle, bem como a crítica genética francesa. Ou mesmo métodos de crítica textual desenvolvidos para problemas específicos, como nos trabalhos de Karl Lachmann, W.W. Greg, Fredson Bowers e Thomas Tanselle. The Work of Revision é, para mais, bastante original ao propor compreender a revisão em todas as suas mais complexas implicações, inclusive nas possibilidades de um texto ser fixado de forma material. Ao confrontar manuscritos e edições, o trabalho segue “vestígios materiais” que refletem preocupações literárias e estéticas dos autores. Neste sentido, Hannah Sullivan propõe uma compreensão da literatura não somente restrita à textualidade, mas também composta pelas condições de produção material e de circulação dos textos. Um dos maiores contributos de The Work of Revision é, sem dúvida, provar que o estudo sobre o que muda e o que permanece ao longo de toda a vida de um texto, enquanto este é revisitado pelo seu autor, constitui um instrumento poderoso para se entender um período literário.
© 2015 Manaíra Aires Athayde.
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