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Bens Comuns: Uma Análise Linguística e Terminológica
Miguel Said Vieira
Universidade de São Paulo

 

Introdução

Vivemos hoje um momento singular no que diz respeito às práticas de compartilhamento de bens culturais; um momento que Yochai Benkler (2006), por exemplo, descreveu como sendo o da emergência da networked information economy [economia informacional em rede]; e que, por sua vez, dá lugar ao surgimento da commons-based peer production [produção por pares baseada em bens comuns]. A interconexão em redes habilita o surgimento de uma série de práticas — comerciais ou comunitárias — em que o compartilhamento de bens culturais desempenha um papel central. Vejamos alguns exemplos.

Hoje, a maior e mais consultada enciclopédia existente é a Wikipédia: disponível em 287 línguas, 76 das quais possuem mais artigos do que toda a Enciclopédia Britânica (cuja última versão impressa em inglês contava com cerca de 40000 artigos) (Meta contributors, 2014; Wikipedia contributors, “Encyclopædia Britannica”, 2014). A Wikipédia adota o slogan “a enciclopédia livre que todos podem editar”, e ela pode de fato ser reproduzida livremente por quem o desejar. Entre o primeiro milhão de sites mais visitados da internet, mais de 70% deles (Netcraft, 2014) usam servidores baseados em software livre: programas de computador que podem ser utilizados, estudados, modificados e copiados sem restrições — ou, em alguns casos, com a restrição de que as versões modificadas devem oferecer as mesmas liberdades. Mais de três quartos dos smartphones vendidos no final de 2013 usam o sistema operacional Android (IDC, 2014), cujo núcleo também é software livre.

Esses três exemplos deixam evidente o quanto o compartilhamento de bens culturais é hoje central em nossas práticas cotidianas, em particular no contexto das tecnologias digitais. O uso e manejo coletivo de bens (de todo tipo), no entanto, não é nenhuma novidade: não faltam exemplos históricos de práticas em que se compartilha terra, florestas, água, estoques pesqueiros etc., para atividades centrais à sobrevivência (envolvendo agricultura, extrativismo, irrigação), e que frequentemente ainda desempenham um papel importante nos vínculos sociais e territoriais das comunidades envolvidas. Algumas dessas práticas de compartilhamento seguem em funcionamento hoje em dia, e possuem história milenar — é o caso dos sistemas de irrigação compartilhados na Espanha, estudados por Elinor Ostrom (1990), importante pesquisadora dessa temática.

O que há de comum entre essas práticas mais contemporâneas de compartilhamento (baseadas predominantemente em bens culturais), e as práticas históricas (baseadas predominantemente em bens materiais)? Da teoria já produzida a respeito nas últimas décadas (com destaque para os trabalhos do Ostrom Workshop — o núcleo de pesquisas fundado por Elinor e seu companheiro Vincent, na Universidade de Indiana), o que pode ser aplicado ao compartilhamento de cultura em suporte digital, e o que precisa ser adaptado? Esses são, atualmente, alguns dos principais problemas de pesquisa nessa área.

No entanto, para buscar um diálogo com essa tradição de pesquisa (que, no caso do Ostrom Workshop, é predominantemente anglófona), é preciso encarar um outro desafio: a tradução dos conceitos nela utilizados. Este artigo se deterá sobre o principal desses conceitos — o de commons: o nome mais comum para tais práticas de compartilhamento no mundo anglo-saxão. No contexto específico do Ostrom Workshop, Hess & Ostrom (2007: 349) definem commons como “um recurso compartilhado por um grupo de pessoas e que frequentemente é vulnerável a dilemas sociais”.

Uma das opções de tradução possível para o português é a expressão “bens comuns”. Antes de discutir as vantagens e desvantagens dessa opção e das demais opções existentes (tanto no português como em outras línguas), tratemos de algumas das confusões frequentes que a expressão por vezes suscita [1].

 

Desfazendo algumas confusões frequentes

1. Público, comum e privado

Um dos equívocos conceituais que a expressão “bens comuns” pode provocar diz respeito aos termos comum, público e privado, e provém de uma confusão entre os usos desses termos na análise econômica e na jurídica [2].

A confusão nasce do fato de que, tanto na economia como no direito, existem as categorias comum, público e privado; no caso da economia, elas se referem a tipos de bens (bens comuns [3], bens públicos e bens privados), e no caso do direito, a tipos de propriedade (propriedade comum, propriedade pública e propriedade privada). No entanto, o critério que diferencia essas categorias é distinto nas duas áreas.

Na economia, essas categorias dizem respeito a duas características predominantemente intrínsecas aos bens: rivalidade [4] e excluibilidade. Diz-se que um bem é rival quando seu uso por uma pessoa subtrai do quanto desse bem está disponível aos outros. Para exemplificar, uma cadeira é bastante rival, pois, se uma pessoa senta-se nela, ela não está mais disponível para outros usarem-na; e um pôr do sol é muito pouco rival, pois o fato de que uma ou mais pessoas observem ou façam uso do pôr do sol (para saber as horas, digamos) dificilmente impede que outros façam o mesmo. E diz-se que um bem é muito (ou facilmente) excluível quando os custos para impedir seu acesso por outras pessoas são baixos, e é pouco (ou dificilmente) excluível quando esses custos são altos [5].

Essas duas categorias são utilizadas para classificar tipos de bens. Dessa forma, a economia denomina os bens de baixa rivalidade e dificilmente excluíveis de “bens públicos”; os de baixa rivalidade e facilmente excluíveis, de “bens de clube”; os bens de alta rivalidade e facilmente excluíveis, de “bens privados”; e os bens que são de alta rivalidade e dificilmente excluível, de “recursos de uso comum” [common-pool resources]. A tabela a seguir mostra exemplos de bens classificados na matriz formada por essas duas categorias [6].

 

 

 

Subtraibilidade [rivalidade]

Baixa

Alta

Excluibilidade

Difícil

Bens públicos
Conhecimento útil
Pores do sol

Recursos de uso comum
Bibliotecas
Sistemas de irrigação

Fácil

Bens de clube ou pedágio
Assinaturas de periódico
Creches

Bens privados
Computadores pessoais
Rosquinhas [doughnuts]

Tabela 1. Classificação econômica de bens. Fonte: Hess & Ostrom (2007: 9); adaptado de Ostrom & Ostrom (1977).

Tratemos agora do uso de alguns desses termos no campo jurídico — como veremos, ele enseja dois motivos para confusão. O primeiro motivo é que, no direito, quando se fala em um bem público, privado ou comum, esses adjetivos referem-se não a um atributo do bem, mas sim à forma de propriedade à qual ele se encontra sujeito. Assim, ao bem público corresponde a propriedade pública (quando o proprietário é o Estado), ao bem privado corresponde a propriedade privada (quando o proprietário é uma pessoa — um indivíduo real, ou uma ficção legal como uma empresa), e ao bem comum corresponde a propriedade comum (quando o proprietário é uma pluralidade de indivíduos ou uma coletividade). Ora, a propriedade, na perspectiva jurídica, é um conjunto de direitos; como tal, ela não está fundamentalmente relacionada com características intrínsecas de objetos, mas sim com as relações sociais que os seres humanos estabelecem em torno desses objetos.

Em outras palavras, no contexto econômico, os termos “público”, “privado” e “comum” têm função de descrição essencialista da natureza (os bens); ao passo que, no contexto jurídico, esses termos têm um sentido eminentemente político, uma vez que referem-se à propriedade, que é inseparável das relações sociais.

O segundo motivo para confusão afeta apenas um desses termos: o “comum”. A questão é que uma das bases para pensar a propriedade no campo jurídico é o Direito Romano; e ali, a “propriedade comum” [res communes] não tem o mesmo sentido mencionado nos parágrafos anteriores (isto é, o de propriedade de um grupo). A res communes do Direito Romano, ao contrário, é a propriedade que é de todos em virtude de suas características intrínsecas, que impedem a apropriação privada exclusiva (era o caso dos oceanos e da atmosfera) (Rose, 2003: 93-96). Ou seja: para coroar o emaranhado, a res communes romana coincide com a definição econômica de bem comum (embora enfatize o aspecto jurídico). No Direito Romano, a categoria mais próxima da noção jurídica moderna de propriedade comum (e, de forma geral, da noção de bem comum na escola de Ostrom, que será abordada detalhadamente mais adiante) seria a res universitatis, que abrangia as coisas pertencentes a corporações (públicas e sub-estatais, como municipalidades, ou privadas, como guildas) e grupos (105-8).

 

Bens comuns, e o bem comum da teologia cristã

Outra confusão que também passa pela terminologia envolve o conceito de “bem comum” da teologia cristã. Essa ideia baseia-se no pensamento de Aristóteles, e foi trabalhada por filósofos como Tomás de Aquino e Agostinho; ela refere-se menos a práticas de compartilhamento ou de produção coletiva, mas sim a uma certa postura ética que privilegia o benefício da comunidade em detrimento do benefício individual (“bem”, nessa expressão, não tem o sentido de coisa compartilhada, mas de benefício, bem-estar etc.).

Trata-se de um conceito distinto ao de commons; e embora ele tenha uma tradição filosófica séria e interessante, o seu caráter moral — que contamina mesmo o senso comum em torno da expressão “bem comum” — é por vezes importado de forma algo simplista para as discussões sobre práticas de compartilhamento. Embora haja, sem dúvida, uma dimensão moral relevante nessas discussões (por conta de o compartilhamento envolver, em diversas ocasiões, o enfrentamento da miséria e da desigualdade social profunda), é problemático reduzir a fundamentação dessas práticas à caridade, por exemplo. A moral pode talvez orientar a discussão e fornecer-lhe princípios, mas não pode se sobrepor a análises fundamentadas nas condições objetivas e nos contextos políticos efetivos em que esse tema surge; em si mesma, a moral não oferece solução para muitos dos dilemas objetivos que afetam essas práticas.

Essa moralização do debate é um risco que deve ser tomado em conta quando o tema dos “bens comuns” surge no discurso de intervenção política. O que temos visto na última década é que essa concepção cristã de bem comum surge, na retórica política, em paralelo a influências do pensamento dos povos andinos — como na noção de “bem viver”, da expressão quíchua sumak kawsay. Embora particularmente mais enraizadas em práticas sociais existentes nas culturas desses povos, seria importante considerar se a conjunção dessas influências não corre o risco de dogmatizar o discurso político em torno de práticas de compartilhamento [7].

 

Questões terminológicas

Além das confusões conceituais já mencionadas na seção anterior, a discussão sobre práticas de compartilhamento envolve certas dificuldades de fundo mais especificamente linguístico e terminológico [8]. Em diversas línguas (a portuguesa inclusive), não há consenso pleno sobre os melhores termos para se referir ao que em inglês nomeia-se commons.

1. Inglês

O termo mais utilizado em inglês para designar essas práticas é commons. Com essa acepção, ele é usado como um substantivo de dois números — isto é, designa tanto o singular como o plural —, o que pode provocar alguma ambiguidade; mas à parte isso, é um termo com uma série de vantagens, que deixa a situação razoavelmente bem resolvida na língua inglesa. Em primeiro lugar, não deve passar desapercebido que a palavra tem o mesmo radical que o adjetivo “common”, ou “comum”. Ele possui um histórico de usos e significados relacionados a práticas de compartilhamento: além de designar diretamente as complexas práticas medievais britânicas de compartilhamento de terras, já chegou a ser utilizado até, nesse mesmo contexto histórico, como o verbo que designa a ação de partilhar uma refeição, e como o substantivo que designa o tipo de mesa então usado para esse fim [9].

Ainda nesse contexto medieval, uma conexão importante: a palavra em inglês para “plebeu” — aquele que não possui títulos de nobreza — é “commoner”. O sufixo “–er” (similar a “–eiro/a”, em português — como em “mineiro/a”) indica que essa palavra também pode ser entendida como “aquele que é relacionado ao (ou trabalha no) common(s)”. Ora, no medievo britânico, quem fazia uso dessas práticas de compartilhamento eram justamente os plebeus; commoner, aí, assume o duplo sentido de “pessoa sem título de nobreza”, e de “membro da comunidade dos bens comuns”. Isso não é mera coincidência: a condição dos plebeus impunha, por um lado, a necessidade de compartilhar entre seus pares os parcos meios de reprodução disponíveis (por conta da pobreza material em que viviam); e, por outro lado, de fazer certos usos de coisas que, nominalmente, eram propriedade dos senhores feudais (por conta da profunda desigualdade entre esses dois atores; bom exemplo desse segundo caso é o direito consuetudinário, que tinham os plebeus, de passagem pelas terras dos senhores — direito conhecido como chiminage, e comparável aos caminhos de servidão no contexto lusófono (Linebaugh, 2008: 42).

Em momentos posteriores a expressão commons veio a designar, em New England, praças e parques públicos; segundo Hess & Ostrom (2007: 13), esses commons estiveram historicamente associados, nos EUA, ao exercício da liberdade de expressão e do processo democrático. Esses fatores provavelmente explicam o porque de, muito embora a origem dessa palavra seja relativamente remota, a sua adoção na língua inglesa seja uma quase unanimidade, inclusive quando ela é aplicada para as novas práticas de compartilhamento surgidas nas últimas décadas. Caso emblemático disso é o das licenças Creative Commons, lançadas em 2002, e que servem como ferramenta jurídica e tecnológica para facilitar o compartilhamento de bens culturais.

2. Português, espanhol, francês e alemão

No português, no espanhol, no francês e no alemão existem palavras que referem-se a práticas específicas de compartilhamento de terras — como é o caso de “commons” em relação à Idade Média britânica —, ou a espaços públicos utilizados para o exercício democrático — como é o caso de commons em New England, nos EUA. Temos, por exemplo, em português: “faxinal”, “fundo de pasto”, “terras de preto”, “terras de santo”, “terras dos índios”, “terras de herança”, “terras soltas (ou abertas)”, “terras libertas (e centros)” [10], “compáscuo” [11 ], “rossio” (uma praça ampla — como a que é assim conhecida em Lisboa — ou qualquer terreno público ou usado em comum), “baldio” [12]; em francês, “communal” [13]; em espanhol, “procomún” [ 14] e em alemão, “allmende” [15].

A maioria dessas opções de tradução têm um problema importante: ao contrário do que ocorre com o termo commons, boa parte delas não partilha do mesmo radical que a palavra “comum” na língua correspondente. Como sustenta Lipietz (2010), essa raiz “–mun–” (que surge também em “comunidade”, “comunismo”, “município”, etc.) é muito relevante aqui em termos etimológicos: ela origina-se de munus, a palavra latina que designa tanto “dádiva” como “obrigação”, e é portanto “a expressão nodal daquilo que o grande antropólogo [Karl] Polanyi chama de ‘reciprocidade’”.

A isso soma-se o fato de que, em suas respectivas línguas, aquelas opções caíram em desuso, e hoje são desconhecidas da esmagadora maioria da população — e com frequência até mesmo dos atores envolvidos nos debates políticos e acadêmicos. O desuso talvez explique também por que a maioria delas é reconhecida como referindo-se apenas àquela prática específica de compartilhamento, e não à noção mais geral de práticas de compartilhamento (como ocorreu com commons na língua inglesa).

O estranhamento provocado por esse desuso leva a outro aspecto complicador, que é a conotação primitivista que esses termos podem trazer: como se tais práticas fossem exclusivamente arcaicas, típicas de um período histórico já encerrado; inadequadas ao contexto contemporâneo, simplórias e indiscutivelmente inferiores às alternativas hoje existentes. Em alguns casos fez-se a tentativa de ressignificar explicitamente o termo, para introduzi-lo novamente no contexto contemporâneo; essa estratégia, porém, nem sempre é bem-sucedida, e tem a desvantagem de requerer, pelo menos a princípio, que o termo seja continuamente explicado e reapresentado. A palavra “baldio” já tem sido usada em Portugal como tradução de commons, no contexto da crítica à propriedade intelectual [16]; Antonio Lafuente (2007) tem feito essa tentativa no caso de “procomún”, com razoável sucesso, mas aparentemente restrito ao contexto da Espanha. No Brasil, esboçou-se tentativa similar — porém mais modesta, contida em um único artigo (Simon e Vieira, 2008) — em relação ao termo “rossio”; embora aqui e ali tenha havido apoio mais enfático à adoção do termo [17], minha experiência desde então (em apresentações de minha pesquisa, seminários, debates, aulas e conversas sobre o tema) tem mostrado que o estranhamento do termo realmente dificulta seu uso num contexto de debate político ou mesmo acadêmico.

 

Conclusão: vantagens e desvantagens de “bens comuns”

Duas alternativas terminológicas que escapam a esse tipo de estranhamento são “comuns” e “bens comuns”. Elas tem a vantagem de serem comparativamente mais autoexplicativas, uma vez que não requerem um conhecimento das práticas específicas a que se referem as outras expressões já mencionadas. “Comum / comuns”, no entanto, tem a desvantagem de provocar um estranhamento de outro tipo: é uma expressão bastante genérica, e provoca certa ambiguidade com o uso dessa palavra como adjetivo, com os sentidos de “usual”, “vulgar”, ou mesmo de “repetido” [18].

A opção que tenho adotado em meus trabalhos — “bens comuns” —, e que também é utilizada com certa frequência em espanhol, francês, italiano e alemão [19], escapa a esse dilema por ainda ser autoexplicativa, mas menos ambígua que “comum” tout court. Ela não é, porém, isenta de problemas. A crítica mais frequente que se faz a essa opção incide sobre o termo “bem”, e indica dois motivos pelos quais ele seria problemático nesse contexto. O pri-meiro é que ele enfatiza a coisa que é objeto de compartilhamento, em detrimento da comunidade e das práticas de compartilhamento por ela instauradas [20]. O segundo é que “bem” é um termo ideologicamente carregado, que remeteria diretamente à mercadoria capitalista; introduzir o termo aqui implicaria, dessa perspectiva, tanto uma relação instrumental do homem com o mundo (visto como uma coleção de recursos para usufruto humano), como a intenção de transformar tais recursos em objetos de troca mercantil. Veja-se, por exemplo, a ponderação de Ulrich Brand:

la traducción de la palabra inglesa commons como bienes comunes muestra la propensión a concebir el mundo en función de los bienes útiles y por lo tanto económicamente utilizables y negociables. (2008: 307)

A expressão, assim, seria particularmente inadequada para as práticas de compartilhamento originárias, conduzidas no Sul Global, e traria a elas uma marca colonizada.

Embora eu não considere os pressupostos dessa crítica descabidos, creio que ela tem um certo exagero. Em relação ao primeiro aspecto (ênfase na coisa compartilhada), acredito que o segundo termo da expressão (“comuns”) remete ao compartilhamento e à existência de uma comunidade, conferindo-lhe um certo equilíbrio. E em relação ao segundo aspecto, penso que a crítica coloca demasiado peso na conotação contemporânea, capitalista, que se atribui ao termo “bem”. Considero que faz mais sentido entender o termo “bem” de forma ampla, como aquilo que é útil para um fim qualquer; no contexto contemporâneo, o mais usual é que esse fim seja a troca mercantil — mas isso é uma circunstância imposta pelo capitalismo, que não nos impede de conceber “bens” que sejam úteis, por exemplo, para a superação desse regime social ou para o compartilhamento.

O segundo aspecto também inclui a crítica quanto a uma possível postura instrumentalizada dos seres humanos em relação ao mundo (implicada pelo critério de utilidade subjacente ao termo “bem”), postura que poderia ser contrastada a concepções de mundo defendidas por movimentos sociais originários (andinos, por exemplo), em que os seres humanos se relacionariam com o mundo de forma mais imanente [21]. Esse já é um tema bem mais complexo, no qual não desejo me aprofundar aqui — mas concedo a possibilidade de que a expressão “bens comuns” tenha desvantagem nesse aspecto. Ainda assim, defendo que tal desvantagem (e eventuais outras) sejam pesadas em relação à funcionalidade estratégica do termo; e de tal modo, sem considerar que seja expressão perfeita, sustento que é das melhores que temos hoje.

 


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Notas

[1] Este artigo baseia-se em minha pesquisa de doutorado, e incorpora, com adaptações, alguns trechos dos capítulos 2 e 3 da tese resultante (Vieira, “Os Bens Comuns Intelectuais e a Mercantilização”).

[2] Para Hess & Ostrom (2003: 119), trata-se de uma confusão entre a natureza dos bens (a perspectiva da economia) e os regimes de propriedade (a perspectiva jurídica).

[3] Ou, mais precisamente (na terminologia econômica do Ostrom Workshop), “recursos de uso comum” [common-pool resources].

[4] A rivalidade às vezes também é referida como subtraibilidade.

[5] O fato de que a exclusão é indicada pelo custo (alto ou baixo) necessário para excluir alguém do bem faz com que esta não seja uma característica absolutamente intrínseca ao bem, mas dependa em alguma medida do contexto em que ele é utilizado. Assim, a vista de um pôr-do-sol é em geral pouco excluível; mas no centro de uma cidade em que haja muitos arranha-céus, é plausível que só se possa obter essa vista a partir dos andares altos desses edifícios. Nesse caso, a vista do pôr-do-sol torna-se ali bastante excluível: o custo de exclusão é apenas o necessário para controlar o acesso aos prédios. Esse caso, porém, é relativamente limite, e de forma geral essas características tendem a ser tratadas como atributos intrínsecos dos bens.

[6] Embora essa tabela seja bastante didática, uma ressalva a ter em conta é que essas duas categorias manifestam-se num contínuo (rivalidade média, média-baixa, baixa, muito baixa etc.), e não apenas de forma binária (ou rival, ou não-rival).

[7] Evidentemente, isso não nega o amplo e fértil potencial de aplicação da noção de bem comum no discurso político de movimentos sociais; ver Vieira, 2014: 194-200.

[8] Um tratamento pioneiro e bem cuidado do tema na língua espanhola encontra-se em Helfrich (2008).

[9] Informação relatada pelo historiador Peter Linebaugh, durante o evento The Future of the Commons, em Crottorf, Alemanha (Vieira, 2009b).

[10] Todas elas expressões que nomeiam práticas específicas de compartilhamentos de terras (e de auto-designação das comunidades que as praticam) no Brasil (Almeida e Souza, 2009; Tavares, 2008: 333-62).

[11] Expressão tradicional para o direito a um pasto comum, ou para o próprio terreno utilizado dessa forma. Ela ainda constava do Código Civil brasileiro de 1916 (art. 646), que vigorou até 2002 (Pilati, 2009: 97). Euclides da Cunha também utiliza a expressão (referindo-se ao terreno usado dessa forma), ao falar da criação de gado, em Os sertões: “os gados de diferentes fazendas convizinhas, que por ali vivem em comum, de mistura, em um compáscuo único e enorme, sem cercas e sem valos”. http://pt.wikisource.org/wiki/Os_Sert%C3%B5es/O_Homem/III

[12] Prática de compartilhamento de terras em Portugal; existe expressão com sentido similar em espanhol (“baldío”). A palavra “baldio” também é dicionarizada com o sentido de terreno inculto ou abandonado; essa coincidência talvez possa ser explicada pelo fato de que, ao final da Idade Média, um dos argumentos lançados em favor do cercamento de terras compartilhadas sustentava que tais práticas de bens comuns eram economicamente ineficientes, e que a privatização tornaria produtivas as terras “incultas”.

[13] Nome de prática medieval de compartilhamento de terras na França (Bloch, 2008).

[14] Termo que designa prática histórica de compartilhamento de terras na Península Ibérica.

[15] Designa prática medieval alemã de compartilhamento de terras. No debate alemão contemporâneo (em particular na área de bens comuns intelectuais), há um movimento no sentido de abandoná-lo em favor de “commons”, termo que fugiria a possíveis conotações primitivistas e que, mesmo sendo estrangeirismo, já é mais usual na Alemanha.

[16] Informação recebida do pesquisador Pedro Pina, em comunicação pessoal em 2010.

[17] Talvez pelo papel destacado de Simon em relação ao software livre (a título de exemplo, o mais antigo blog brasileiro em atividade sobre o tema — BR-Linux.org — fez luto de um dia após seu falecimento [Campos, 2009]), duas figuras relativamente notórias nesse meio endossaram a opção que fizemos pelo termo: Alexandre Oliva (proeminente desenvolvedor de GNU/Linux, e board member da Free Software Foundation Latin America — organização irmã da que é presidida por Richard M. Stallman, a Free Software Foundation) e Simon Phipps (diretor da Open Source Initiative, uma das principais ONGs desse setor) (Phipps, 2010).

[18] Tal quando dizemos: uma característica comum à águia e ao corvo é saberem voar.

[19] Nessas línguas, respectivamente: “bienes comunes”, “biens communs”, “beni comuni”, “gemeingüter”; a adoção varia, como já indicado (em relação ao alemão) na nota 15.

[20] Uma expressão da língua inglesa proposta por Peter Linebaugh e que é particularmente feliz em enfatizar a prática que mantém um bem comum — e o fato de que ele não é um objeto estanque, mas um processo social — é o verbo “commoning”. Aqui e ali surgem tentativas de traduzir essa expressão: para o francês, como “mise en commun” (SavoirsCom1, 2013); para o português, como “fazer comum” (Helfrich, 2010; Vieira, 2014) (Helfrich, 2010; Vieira, 2014) e “fazer em comum” (De Soto, 2014).

[21] Desse tipo de concepção de mundo originam-se, por exemplo, as propostas de atribuir direitos à própria natureza, Mãe Terra ou Pacha Mama.

[22] Os endereços eletrônicos foram acessados pela última vez em outubro de 2015.

 

© 2015 Miguel Said Vieira.
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