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Retraduzir a Obra para Traduzir o Rascunho: Tradução da Poética do Rascunho em Mon cœur mis à nu, de Charles Baudelaire
Thiago Mattos de Oliveira
Universidade de São Paulo

 

Muitas obras dos antigos se tornaram fragmentos.
Muitas obras dos modernos já o são ao surgir.

Schlegel (1997: 51)

Retraduzir Mon coeur mis à nu implica assumir uma posição sobre o que (e por que) (re)traduzir. Implica estabelecer parâmetros, modos de traduzir, estratégias e prioridades. O que é mais relevante naquele texto? O que deve ser traduzido? De que maneira um projeto de tradução se relaciona (em confronto ou em aliança) com as traduções anteriores? A partir dessas escolhas, que tipo de relação estabelece com aquele texto, e com os demais textos relacionados a ele? Tais perguntas não apenas destacam a historicidade de todo ato de leitura e reescrita (isso que é, afinal, a tradução), mas destacam também a pluralidade de leituras e reescritas que habitam um texto, as relações que tais discursos estabelecem entre si ao dizer a obra.


1. Ordenar a desordem: breve história dos manuscritos de Mon coeur mis à nu

Uma crítica de Mon coeur mis à nu é em certo sentido uma crítica do manuscrito: estamos diante de um livro que, à semelhança do Livro do desassossego, de Fernando Pessoa, não possui uma forma nem definida nem definitiva. Estamos no campo da incompletude: “uma escrita a caminho, um projeto de escrita, um intervalo entre aquilo que já não é o nada, mas não chega a ser algo” (Cintra, 2005: 34). Para editar um texto que não chegou a ser organizado pelo seu autor, o editor “deve optar e tomar decisões que o autor não tomou ou sobre as quais não deixou indicações manifestas” (Pizarro, 2012: 213). À figura do editor soma-se uma exigência radical: precisa dar forma àquele texto, sabendo que essa forma dada não é definitiva; outros modos de organizar, sequenciar e ordenar serão sempre possíveis, na medida em que se está diante de casos em que a movência da organização da obra é, pelas circunstâncias da história daquele texto, levada ao (quase) extremo. A dispersão, a incompletude, o provisório se inscrevem na obra, produzem sentidos, são parte de uma poética, a poética do rascunho (Didier, 1973).

Sabe-se que o título Mon coeur mis à nu veio de um trecho das Marginalia¸ de Edgar Allan Poe. Em abril de 1861, em carta enviada à mãe, Baudelaire menciona Mon coeur mis à nu, já curiosamente apontando para o caráter incompleto, provisório e mesmo impossível da obra:

um grande livro com que sonho há dois anos: Mon coeur mis à nu, em que colocarei toda a minha cólera. Ah! se ele um dia visse a luz do dia, as Confessions de J[ean]-J[acques] [Rousseau] pareceriam pálidas. Como você vê, ainda sonho. Infelizmente, para escrever esse livro singular, precisaria ter guardado as massas de cartas de todo mundo, que, ao longo de vinte anos, dei ou queimei [1]. (Baudelaire apud Pichois e Ziegler, 1996: 445, tradução nossa)

Ainda que o poeta francês afirme ser uma obra a vir, possivelmente irrealizável, Pichois acredita que Mon coeur mis à nu não é um “sonho”, mas um produto, um resultado concreto, um fato: “o manuscrito prova que houve realização” (1983: 1468, tradução nossa) [2]. Isto é: ainda que permeado pela incompletude e pelo provisório, há manuscrito, há escritura, há obra. Tal postura relaciona-se diretamente com aquilo que defende Didier (1973: 57): Mon coeur mis à nu pode ser lido como notas dispersas para uma obra a vir, mas essa dispersão, essas notas, já constituem obra, inscrevendo-se naquilo que a autora chama de uma poética do rascunho. É possível, a partir daí, pensar no fragmentário, no provisório, no incompleto e no inacabado como constitutivos de uma obra, e não como obstáculos para a instauração da obra enquanto obra.

Baudelaire dedicou-se a Mon coeur mis à nu de 1859 a 1865, em especial nos anos de 1861, 1863 e 1865. Após a morte do poeta, em agosto de 1867, o primeiro a publicar fragmentos da obra foi Charles Asselineau, em 1868. Integralmente, Mon coeur mis à nu só será publicado em 1887, pelas mãos de Eugène Crépet, responsável pelas Oeuvres posthumes de Baudelaire. Cabe a Poulet-Malassis, editor e amigo do poeta, organizar os manuscritos de Mon coeur mis à nu. Diante de um conjunto de folhas soltas, escritas ora a tinta, ora a lápis, Malassis é o primeiro a assumir o gesto editorial, inscrevendo a completude na incompletude; condensando o disperso; ordenando a desordem: enumera os fragmentos em algarismos arábicos e os coloca em folhas de grande formato (35,8 x 22,5 cm), também numeradas em algarismos arábicos. Ambas as numerações foram feitas em tinta vermelha. Como mostra Pichois (2001: 10), o hábito editorial de transcrever os números de suporte (folhas de grande formato) em algarismos romanos e os fragmentos em algarismos arábicos não faz parte do trabalho inicial de Malassis, a quem coube também encadernar os manuscritos, fixando uma ordem para os fragmentos que ficará inquestionada desde então. Baudelaire não raro escrevia na mesma folha trechos abaixo dos quais vinha a rubrica Mon coeur mis à nu, Fusées ou Hygiène. Malassis separa as notas em duas seções: Mon coeur mis à nu e Fusées, fazendo  com que uma terceira série de notas, Hygiène, se incorporasse a série de Mon coeur mis à nu. Esse relativo respeito ao estado bruto do texto é reconhecido por Eugène Crépet, que na sua edição, no entanto, não hesita em acrescentar mudanças substanciais: não só omite da sua publicação trechos especialmente ofensivos (prova de que nenhuma publicação, mesmo de uma obra póstuma, pode ser vista fora do trabalho editorial e do que esse trabalho mobiliza consigo), como também agrupa Mon coeur mis à nu e Fusées como subtextos de um texto maior, que decide chamar de Journaux intimes [Diários íntimos], título que traz um problema imediato: Baudelaire jamais chamou qualquer um dos textos de “diário”; ao contrário, há no projeto de Mon coeur mis à nu uma clara intenção de obra autônoma, ligada, quando muito, a supostas confissões, não a diário: “Nem Pensées de Pascal nem Mon coeur mis à nu são diários, e é distorcer fundamentalmente sua significação ceder a esse tipo de interpretação” (Didier, 1976: 14, tradução nossa) [3]. A memória de Mon coeur mis à nu como “diário íntimo” [journal intime] é tamanha que mesmo Claude Pichois, responsável pelas obras completas de Baudelaire na coleção da Pléiade, de 1975 [1983], assume o título Journaux intimes, ainda que ele próprio defenda que tal título é errôneo. Mais recentemente, no entanto, o título Journaux intimes tem sido definitivamente abandonado.

Eugène Crépet, que comprara o manuscrito de Malassis, teve também ele que vender os papéis, numa sequência de bancarrotas pessoais que não deixa de lembrar as dívidas que sempre enfrentou o próprio Baudelaire. Armand de Barenton adquire os manuscritos em 1890, e em 1907 é Gabriel Thomas que adquire os papéis. Mais tarde, os manuscritos passam para Marcel Bénard. Em 1925, é Armand Godoy que os adquire, colocando-os à disposição de Jacques Crépet, filho de Eugène Crépet, responsável pela primeira edição crítica dos assim chamados Journaux intimes, em 1938, pela Mercure de France. Em 1949, Crépet publica uma segunda edição crítica, em parceria com Georges Blin, dessa vez pela Librairie José Corti. Claude Pichois, responsável pelas Oeuvres complètes (Pléiade, 1975), tem acesso aos manuscritos de Mon coeur mis à nu graças a Jean-Charles Godoy, filho de Armand Godoy. Em 1988, aproveitando-se da valorização ao longo dos anos, vende os manuscritos para a Biblioteca nacional francesa, por eles responsável até hoje [4].

O principal problema trazido por Mon coeur mis à nu diz respeito à ordenação das notas. Crépet mostra que “seria impossível decidir em que ordem eles [os fragmentos] devem ser lidos” (Crépet, 1887: 70; tradução nossa) [5]. A ordenação proposta por Malassis, e que perdura ainda hoje, é arbitrária, não existindo por si só um sistema de classificação (Pichois, 2001: 15). A decisão de manter sua ordenação é até certo ponto conveniente: trata-se da forma como a obra tem sido publicada e lida desde sua primeira aparição. Pesquisas e experiências mais recentes em edição de manuscritos, no entanto, abrem a possibilidade de se pensar por outra via, seja no caso de edições diplomáticas com fac-símile (como a edição de 2001 de Pichois), seja na possibilidade (ainda não executada) do uso de suporte digital para, via hipertexto, evidenciar o caráter fragmentário e não ordenado da obra, e que poderia levar a “uma reprodução muito mais viva da gênese do manuscrito” (Didier, 1996: 20, tradução nossa) [6].

Pode-se considerar que todas as edições de Mon coeur mis à nu buscaram, deliberadamente ou não, minimizar o fragmentário. Malassis é conhecido como aquele que teve o mérito de conservar o texto em estado bruto, respeitando a fragmentação de Baudelaire. Mas essa leitura pode ser vista, na verdade, como equivocada para as possibilidades atuais de se trabalhar com a leitura, reescrita e edição de manuscritos: ao agrupar os fragmentos em folhas de formato maior, encadernando-as em seguida, Malassis dá, na verdade, um primeiro passo em direção à desfragmentação. Ainda que faça uma ordenação arbitrária das notas, evitando estabelecer alguma ideia psicologizante de como Baudelaire ordenaria a obra, essa ordenação já é por si só uma desfragmentação do fragmento. Ao encadernar os manuscritos, fixa a ordenação, dando a um conjunto de notas esparsas distribuídas ao acaso um status fixo e impermeável a outras propostas.


2. Respeitar a desordem: a poética do rascunho e o contínuo do rascunho

Em 2001, Pichois publica uma edição diplomática de Mon coeur mis à nu: traz a transcrição acompanhada dos manuscritos; respeita a rasura e a disposição na página. Evidencia a própria materialidade da escritura. Sua proposta não deixa de estar integrada a um modo mais geral de tratar as obras ditas fragmentárias, novos modos de ler e trabalhar o manuscrito literário. Modos que não veem o manuscrito como algo a ser “limpo”, “decifrado”, gerando um texto estabelecido, editável e editado. Em Mon coeur mis à nu, a marca do manuscrito faz parte da narrativa, dado que o rascunho faz parte da obra.

Mon coeur mis à nu, afirma Didier, não é um diário íntimo: é, junto com Pensées, de Pascal, “obras destinadas a serem compostas, organizadas a fim de demonstração; o inacabamento não deve nos iludir; não basta que um texto seja fragmentário para ser um diário” (Didier, 1976 : 14; tradução nossa) [7]. O incompleto, o inacabado, o rascunho são parte de Mon coeur mis à nu, que se inscreve, portanto, em uma poética do rascunho:

não se trata de contestar o caráter de inacabamento desses fragmentos: eles são o reservatório de uma obra a vir que não foi realizada; mas são já em si mesmos uma obra, um texto que funciona segundo uma estética prória [...] Fusées et Mon coeur mis à nu colocam a questão da poética do rascunho. Que fronteira estabelecer entre o texto definitivo e o projeto? A partir de que momento se trata de um ‘texto’? Estaríamos perto de admitir que, do momento em que há escrita, há texto [8]. (Didier, 1973: 57, tradução nossa)

O que coloca Didier é fundamental para se entender de outro modo obras como Mon coeur mis à nu (Baudelaire), Pensées (Pascal), Livro do desassossego (Fernando Pessoa). É fundamental, acreditamos, para se elaborar outros modos de traduzir essas obras. A incompletude pode ser constitutiva de um texto, o fragmento, o rascunho – o manuscrito, finalmente. Sabe-se que a ideia de completude e acabamento é por si só problemática, mas o que Didier busca mostrar é que, independente do que se possa dizer de uma obra “acabada”, “completa”, “concluída”, a noção de poética do rascunho torna possível atribuir um lugar para o rascunho, um modo de lê-lo, reescrevê-lo, editá-lo, traduzi-lo. As “notas” que compõem Mon coeur mis à nu são texto, uma vez que foram escritas. Se está escrito, existe. Tudo o que se escreve existe. O caráter fragmentário e provisório não são aspectos subalternos da obra; são parte da obra.

Mon cœur mis à nu é composto por “notas” escritas por Baudelaire a partir de 1859. O termo “notas” funciona na maior parte das vezes como um termo polivalente que, se não dá conta com precisão da obra enquanto texto em si, tampouco chega a abrir espaço para muitas contestações. Ocorre que Baudelaire é o autor que consolida o poema em prosa: em 1861, com a publicação dos Petits poèmes en prose, essa forma poética passa a ter o estatuto de gênero; rejeitando a rima e a métrica e introduzindo elementos prosaicos no campo poético, Baudelaire expande a noção de poema, o que levará a poesia, não só na França, a numerosas transformações. Com Baudelaire se inicia o polimorfismo do gênero característico do poema em prosa (Bernard, 1959: 9), permitindo que surja a possibilidade, ainda que questionável, de se olhar para Mon cœur mis à nu também como um tipo de poema em prosa, fragmentado e disperso, inscrito numa espécie de poética do rascunho, mas sem deixar de ser um texto em si, um “texto acabado”. O caráter fragmentário e disperso da poética de Baudelaire (já presente nos Petits poèmes en prose) é observado por Benjamin, e associado à própria dinâmica da cidade, da civilização comercializada e da mercadoria: “É a multidão fantasma das palavras, dos fragmentos, dos inícios de versos com que o poeta, nas ruas abandonadas, trava o combate pela presa poética” (Benjamin, 2000: 113).

Nesse sentido, a possibilidade dada pela poética do rascunho (isto é: ler as notas de Mon coeur mis à nu como textos autônomos, não subordinados a uma noção de “obra acabada”) não deixa de se relacionar, até certo ponto, com um movimento perceptível na própria obra de Baudelaire: do verso alexandrino das Flores do mal aos poemas em prosa de Petits poèmes en prose, Baudelaire vai se aproximando de uma concepção do poético que explora a dimensão prosaica e fragmentária. Os poemas em prosa, escreve Baudelaire, não teriam “nem pé nem cabeça, já que, ao contrário, tudo é ao mesmo tempo cabeça e pé, alternativa e reciprocamente. [...] Podemos cortar onde quisermos, eu meu devaneio, você o manuscrito, o leitor sua leitura” (1983: 275, tradução nossa) [9]. Em Mon coeur mis à nu, lê-se na primeira nota: “Posso começar Mon coeur mis à nu não importa onde, não importa como, e continuá-lo no dia a dia, seguindo a inspiração do dia e da Circunstância, desde que a inspiração continue viva” (2001: I, tradução nossa) [10]. A convergência dos trechos é patente, e, tendo em mente que Petits poèmes en prose é escrito entre 1855 e 1864, período que cobre as notas de Fusées e Mon coeur mis à nu, não é gratuita: Baudelaire começa a trabalhar com uma concepção de poético que se abre para o fragmento, para uma forma mais aberta. Da rigidez formal das Flores do mal à explosão formal de Mon coeur mis à nu, passando pela prosa dos Petits poèmes en prose e pela tradução em prosa de The raven, de Poe, parece-nos  possível considerar que é em Mon coeur mis à nu que a progressiva abertura formal empreendida por Baudelaire atinge seu nível mais radical, reforçado certamente pelo caráter provisório, “inacabado”, da obra: como nas Marginalia de Poe, Baudelaire recorre ao fragmento, pedaços de texto começados e aparentemente inacabados, apontamentos para projetos, ideias para obras, frases em latência, pensamentos interrompidos, justaposição de descontínuos que, se vistos como obra, constituem um contínuo, o contínuo do rascunho. Dito de outro modo, no descontínuo dos fragmentos, notas e rascunhos se constitui o contínuo (Meschonnic, 1999) do rascunho, o rascunho enquanto poética; a poética do rascunho. Traduzir a poética do rascunho de Mon coeur mis à nu é, portanto, traduzir o contínuo, o discurso, a significância; traduzir uma inseparável forma-sentido (Meschonnic, 1999). Nesse sentido, pode-se dizer que a desordem, a dispersão, a impossibilidade de uma ordem fixa e definitiva é parte dessa significância e dessa forma-sentido, devendo comparecer num projeto tradutório de Mon coeur mis à nu. Cabem desde já as perguntas: como lidar com essa desordem em termos tradutórios? Seria o hipertexto, dada sua natureza não sequencial (Nelson, 1982), um caminho possível?


3. Traduzindo a poética do rascunho: implicações teóricas e princípios gerais

Propor-se a traduzir uma poética do rascunho pressupõe antes de tudo a definição clara do texto de partida. Como traduzir, afinal, um texto fundado na movência? Ou, retomando Grésillon “que estatuto, então, conferir a esses documentos privados, escritos para si, destinados a nenhum leitor? O que se passa com uma estética que se privaria da noção de obra para melhor se debruçar sobre as aparas dos rascunhos, sobre o inacabado e o incerto, sobre esses processos sem fim?” (2002: 148). Traduzir uma poética do rascunho requer que o texto de partida tenha sido estabelecido de modo a não apagar o rascunho, o provisório, o descontínuo. De nada nos adiantaria, nesse sentido, recorrer somente a um texto de partida confiável – em relação à transcrição dos manuscritos –: é preciso que recorramos a um texto cujo estabelecimento tenha se dado de modo a colocar em evidência o rascunho; um texto de partida que tenha incorporado a movência constitutiva daquela obra. A edição de 2001 de Pichois traz o manuscrito para a obra, positivizando o rascunho. Contudo, se resolvido o destaque que deve ser dado ao manuscrito, permanece a questão da ordenação: em que medida é possível pôr em tensão a ordem estipulada por Poulet-Malassis e reproduzida desde então? Admitindo que também a dispersão faça parte dessa poética do rascunho que circunda e conforma Mon coeur mis à nu, como trazê-la para a tradução? Como, afinal, traduzir a poética do rascunho, admitindo que ela engloba não apenas o aspecto “matérico” dessa escritura, mas também seu aspecto dispersivo e fragmentário?

Experiências produtivas têm sido feitas, seja na tradução, seja na edição, com o Livro do desassossego, de Fernando Pessoa. Trata-se de caso até certo ponto semelhante a Mon coeur mis à nu: uma reunião de fragmentos e notas dedicados a uma obra futura, obra que, no entanto, nunca chegou a ser “concluída” pelo autor. Ficam em aberto a ordenação dessas notas, a seleção, a disposição na página, as notas que fariam parte dessa ou daquela obra. O trabalho de transcrever, selecionar, agrupar, ordenar e editar também nesse caso ganha protagonismo, colocando em relevo a subjetividade e a historicidade que atravessam o sujeito-editor e o sujeito-tradutor. O projeto “Nenhum problema tem solução: um arquivo digital do Livro do Desassossego”, da Universidade de Coimbra, parece-nos particularmente útil [11]. Investigando as novas tecnologias da informação e buscando criar um arquivo digital do Livro, fornece-nos experiências e ferramentas úteis para construir modos de ordenar e acima de tudo organizar Mon coeur mis à nu em ambiente digital. Cabe, contudo, estabelecer uma diferença: o projeto de Coimbra pretende chegar a um “arquivo [que] combinará uma edição genética e uma edição social do LdoD, mostrando-o ao mesmo tempo como rede potencial de intenções autorais e como construção conjectural dos seus sucessivos editores” [12]. No nosso caso, não buscamos construir, via digital, uma edição genética, mas chegar a um modo de organizar esse tipo de textualidade que nos permita principalmente uma recriação de múltiplos percursos de leitura, colocando o leitor não necessariamente diante de um processo cronológico ou de um inventário de variantes editoriais, mas de uma dispersão de leituras possíveis, de uma monstruosidade do manuscrito (Galíndez-Jorge, 2010: 21). Trata-se não somente de um momento em que edição e tradução se articulam, mas de um momento em que a tradução se torna geradora de problematizações que incidem diretamente sobre o próprio texto de partida, não somente no seu estabelecimento e transcrição, mas na sua própria estruturação e organização.

Impossível, acompanhando o trabalho do projeto português, não retomarmos a edição diplomática de 2001 estabelecida por Pichois: fac-símile de um lado, transcrição diplomática de outro. Nota-se, no entanto, que Pichois está preocupado apenas com um aspecto específico do rascunho: o manuscrito, isto é, seu aspecto “matérico”. Respeita e incorpora rasuras e disposição na página, mas não está preocupado com a fragmentação e com a dispersão, razão pela qual, ao contrário do projeto de Coimbra, não trabalha sobre a dispersão e a variabilidade: segue, sem problematizações, a ordenação canônica de Malassis. Chega, assim, a uma edição diplomática que pode recorrer ainda ao livro impresso, evitando o hipertexto e as novas tecnologias de edição digital, que permitiriam experiências mais radicais sobre a estruturação de Mon coeur mis à nu.

Seja na proposta do projeto da Universidade de Coimbra, seja na proposta da edição de Pichois de 2001, o que está em jogo é uma nova posição em relação ao manuscrito e uma nova posição em relação ao leitor: características “matéricas” do manuscrito podem ser importantes, e mesmo fundamentais, para a compreensão de determinados tipos de texto – textos que de modo mais específico e problematizador trabalham com a incompletude, com o rascunho –; além disso, ao serem propostos (em grande parte graças aos recursos digitais) novos modos de ordenar esses manuscritos, entra em jogo o papel do leitor, que deixa de ocupar um lugar passivo e passa a ter um papel ativo:

A apresentação informática é prática para o pesquisador na medida em que permite correções permanentes conforme novas leituras aparecem. Para o leitor, essa apresentação transforma completamente os dados da relação entre o tempo e o espaço, e, por conseguinte, permite uma representação muito mais viva da gênese do manuscrito. Devolve seu movimento, sua vida. [...] A sabedoria consiste, de todo modo, em utilizar desde agora e o melhor possível as possibilidades técnicas que o tempo nos oferece [13]. (Didier, 1996: 20, tradução nossa)

As possibilidades inauguradas pelo digital vão ao encontro de algo que não data de hoje, mas que se acentua e potencializa-se contemporaneamente:

A edição, ou o modo de edição estabelecido, com sua noção de livro acabado, constituído, na passagem do manuscrito ao impresso, tornou ao mesmo tempo visíveis e invisíveis modos de movimento do texto próprios a uma poética específica do não fixo. O livro fez livro com o que não era livro, instaurando o inacabamento acidental ou intrínseco, misturando ambos em uma mesma forma-livro, como um gênero literário: os ‘pensamentos’ de Pascal, os de Joubert, os aforismas de Novalis [14]. (Meschonnic, 1999: 172, tradução nossa)

Traduzir a poética do rascunho é admitir que o ato tradutório vai além do conteúdo puramente linguístico: envolve escolhas tradutórias e editoriais; implica posições, tensionamentos, modos de fazer, modos de ler, modos de reescrever, modos de traduzir. Parece-nos, nesse sentido, que traduzir obras ditas “inacabadas”, “fragmentárias”, “incompletas” significa traduzir também um modo de ler a incompletude dessas obras. Isto é: traduzir a poética do rascunho instaura um ponto de diálogo entre a edição do manuscrito e a tradução do manuscrito. Como se posicionar, enquanto tradutor, em relação a esse texto de partida? Em que medida o sujeito-tradutor se confunde com o sujeito-editor? Que estratégias e práticas de tradução e edição estabelecem alianças, de modo a possibilitar a criação de um dispositivo teórico e prático de tradução de obras inscritas na poética do rascunho?

Meschonnic afirma que

o texto como contínuo transformou a edição crítica. Não apenas se expuseram os estados como etapas para o texto final, mas privilegiaram-se os estados ‘intermediários’ como texto - fim do privilégio do produto acabado. É assim que agora são editados e lidos Nietzsche et Hölderlin [15]. (1999: 172, tradução nossa)

Está em jogo no contínuo do texto o movimento do texto, o texto em movimento; reconhecer o texto como contínuo é reconhecer pontos geradores de sentidos que tradicionalmente não seriam levados em conta, como a incompletude. Ao mesmo tempo, reconhecer o incompleto, o fragmento, o rascunho como constituintes de uma obra, como instauradores de texto, leva inevitavelmente a um modo específico de se relacionar com esse tipo de texto. Como destaca Pizarro (2012), transcrever, selecionar, agrupar, organizar são decisões não consensuais e variam conforme a posição de cada editor, que, como sujeito, não pode ser isolado de uma subjetividade e de uma historicidade. Tal status não é diferente daquele experimentado pelo sujeito-tradutor, também confrontado com a seleção, com a decisão, com a escolha. E, considerando que talvez seja no caso de obras inscritas na poética do rascunho que esse trabalho de selecionar, decidir e escolher atinge seu ápice, é aí, trabalhando sobre a incompletude, que os sujeitos editor e tradutor mais (produtivamente) se confundem.

Ainda na esteira daqueles que tem recentemente se debruçado sobre textos inscritos na poética do rascunho, pode-se mencionar o destaque dado à edição digital e ao hipertexto, duas noções que, na perspectiva da edição e tradução do rascunho, não deixam de estar entrelaçadas. Saliente-se que edições digitais não têm como objetivo chegar a um texto inequívoco, definitivo. Como lembra Giménez (2013), a edição digital ajuda a respeitar e evidenciar a pluralidade fragmentária de dada obra, desde que se tenha em mente que há sempre outra possibilidade, outra leitura, outro modo de dizer e fazer. Assim, não pretendemos utilizar o digital como modo de supostamente alcançar uma versão “ideal” (e idealizada) de Mon coeur mis à nu. O que se pretende é, aproveitando as palavras de Portela (2003), “representar e aceder à natureza essencialmente dinâmica da condição textual, considerada quer na história social, quer no processo de criação poética”.  No primeiro caso, a edição digital permite simular relações entre a história da transmissão e da recepção de dado texto: as diferentes tentativas editoriais de agrupar as notas em subséries (“Hygiène”, “Mon coeur mis à nu”, “Fusées”), as diferentes seleções de notas, as diferentes ordenações realizadas e/ou possíveis etc. No segundo caso, a edição digital permite dar conta do jogo recursivo sonoro e visual, não reduzindo sua função estética. Podemos pensar, daí, que a dispersão das notas e a multiplicidade de ordenações também são parte dessa função estética (ou, se quisermos, dessa poética do rascunho), ganhando novas potencialidades no ambiente digital. Portela (2013) mostra ainda que haveria dois modos de editar “obras inacabadas de natureza fragmentária”. Uma primeira maneira seria buscar produzir uma unidade textual que diminua o caráter fragmentário e inacabado do texto. Seria o caso de todas as (re)traduções brasileiras de Mon coeur mis à nu (Mattos, 2015): notas, fragmentos, cacos de texto transformam-se “num todo bibliograficamente coerente” (Portela, 2013: 16), produzindo o efeito de unidade completa e acabada. Uma segunda maneira, que nos interessa especialmente, seria reconstruir a fragmentariedade original, editando o fragmento enquanto fragmento; ou, podemos dizer, editando a obra enquanto poética do rascunho. O hipertexto, aliado à edição digital, aparece como caminho profícuo, oferecendo possibilidades a serem ainda exploradas. Sendo o hipertexto (Nelson, 1982) uma escrita não sequencial, uma rede interligada de nós que os leitores podem percorrer de forma não sequencial, a edição digital permite que essa inexistência de sequências seja evidenciada, graças a uma lógica que rompe com a obrigatória sequência do objeto livro. Surge, com a reprodução digital, uma lógica rizomática que alarga a reprodução e permite levar a experiência do fragmento a níveis só possíveis em ambiente digital. Editar e traduzir Mon coeur mis à nu em ambiente digital significa, finalmente, (re)construir múltiplos percursos de leitura, rompendo tanto com a ordenação canônica de Poulet-Malassis quanto com o imperativo de uma única ordenação (caso do livro em papel). O hipertexto permite a construção de um espaço em que diferentes modos de conceber, ordenar e estruturar Mon coeur mis à nu são postos em relação (e em tensão): estruturação cronológica, temática, canônica etc.

Esse novo modo de se encarar o inacabado, o incompleto, a poética do rascunho, não deixa de ter estreitas relações com um novo modo de se ler o manuscrito. Assim como a retradução é uma releitura e reescrita de determinado texto, também a releitura de um manuscrito pode levar a reescrituras desse manuscrito, criando um espaço de relações:

Serão tantas topografias quantos pontos de referência forem criados. Cada rasura nos faz reler o texto a partir de outro referencial, modificando-o, deslocando, resignificando-o, atualizando-o. Todos conhecem o valor da releitura. Estamos cada vez mais próximos de uma possibilidade rizomática de leitura do que da arborescência filológica (Galíndez-Jorge, 2010: 18)

Incorpora-se a experiência da desordem e põe-se em evidência o efeito da não sequenciação. Abre-se espaço, assim, para outro modo de se conceber a ordenação de textos ditos incompletos:

Pergunto-me, por que não colocar ao leitor justamente esse assombramento que experimentamos quando nos deparamos com a monstruosidade do manuscrito? Como críticos, tenemos a apagar os traços do efeito que este material produz sobre a forma como relemos aquele texto ou aquele autor. Afinal, construímos uma falsa memória de criação à revelia de autores e textos, em um movimento que se pretende sistemático ou, por vezes, científico. ( 21)

Está em jogo uma concepção de leitura/reprodução de manuscritos que entra em estreito diálogo com a edição de textos atravessados pela incompletude: “devemos tentar encontrar estratégias que nos permitam conviver com a desordem” (23). Poderíamos dizer, ainda, que essas duas linhas práticas e teóricas (um novo modo de ler o manuscrito e um novo modo de editar obras ditas incompletas) encontram na tradução um ponto de articulação e condensação: ao traduzir uma obra inscrita na poética do rascunho, o sujeito-tradutor deve ter em mente antes de tudo estratégias que lhe permitam chegar a um texto de partida que incorpore essa poética do rascunho; que não a apague, que não a atenue, que a evidencie e a reconheça como parte integrante, e mesmo fundamental, daquela obra. É nesse sentido que estudos e experiências que têm sido realizados na crítica genética e na edição de obras pode enriquecer não só o debate dos estudos tradutológicos, mas acima de tudo a prática tradutória.

O que está em jogo, finalmente, é algo pertencente ao próprio funcionamento da retradução, noção teórica até então pouco levada em conta nos estudos da tradução. Se a retradução é toda reescritura de um texto-fonte, coexistindo e estabelecendo com outras reescrituras desse texto uma rede de modos plurais de (re)lê-lo e (re)escrevê-lo, podemos dizer que, ao fazer uma retradução de uma obra inscrita na poética do rascunho, o (re)tradutor tem a possibilidade de buscar traduzir precisamente essa incompletude; dar a ver o inacabado; trazer a poética do rascunho para a reescritura daquele texto. Ao fazê-lo, encontra na crítica e edição de manuscritos um terreno profícuo. Também para a construção do texto de chegada o tradutor estará melhor amparado com ferramentas práticas e teóricas, de maneira a (re)criar na (re)escritura (texto de chegada) a incompletude, o não acabamento e a não sequenciação do texto de partida. Ou, dito de outro modo, de maneira a (re)traduzir a poética do rascunho. Trata-se, enfim, de outra possibilidade de leitura, de reescritura, de edição; outra possibilidada de (re)tradução.

 

4. Quando retraduzir Mon coeur mis à nu é traduzir uma poética do rascunho

No nosso caso, é necessário chegar antes de tudo a um texto de partida que dê conta da poética do rascunho presente em Mon coeur mis à nu. A edição crítica feita por Claude Pichois em 2001 é a primeira que caminha em direção à explicitação da incompletude e do fragmento. Ainda que dê especial atenção à materialidade da escritura, à rasura, à disposição do texto na página, à reprodução simultânea do manuscrito, não se preocupa com a não sequenciação do texto, consequência talvez da ordenação arbitrária feita Malassis, que, por assim dizer, suprimiu a “monstruosidade do manuscrito” de que falava Galíndez-Jorge: Malassis forja uma sequenciação para Mon coeur mis à nu que permanecerá inquestionada mesmo na edição crítica de Pichois. Mesmo reconhecendo e nos baseando no trabalho de transcrição diplomática de Pichois, julgamos necessário (e inevitável) trabalhar sobre a não sequenciação das notas, trazendo um Baudelaire que permita uma abertura para o “assombro”; para a não sequenciação; para a desordem; para a obra enquanto etapa, enquanto dispersão, enquanto, enfim, rascunho.

Traduzir a poética do rascunho é ver-se confrontado com a necessidade de escolher, ou mesmo construir parcial ou integralmente, um texto-fonte, buscando modos de ler, interpretar e construir a incompletude. A tradução será uma parte desse processo de leitura e reescritura da própria incompletude. Se pensarmos que a retradução é precisamente o espaço de leituras e reescrituras possíveis, podemos dizer que reside aí a relação estreita entre retradução e edição. O que nos interessa no caso de Mon coeur mis à nu é reescrever o rascunho. É traduzir o rascunho. Acreditamos que traduzir a poética do rascunho é trabalhar sobre a própria materialidade desse texto, na sua constituição, estabelecimento, processo de criação. Há, evidentemente, um trabalho sobre o conteúdo textual (como bem mostrou, por exemplo, Aguiar (2013) ao analisar as duas traduções brasileiras das Pensées de Pascal), mas traduzir uma poética do rascunho passa antes, e principalmente, pela seleção, ou mesmo produção, de um texto de partida que evidencie essa incompletude, esse inacabamento, essa poética do rascunho, instaurando um espaço que é, finalmente, o espaço de contato, ou mesmo indiferenciação, do sujeito-editor e do sujeito-tradutor.

O que propomos é, finalmente, uma edição-tradução digital de Mon coeur mis à nu, concebida a partir da poética dos rascunhos em que se inscreve o texto baudelairiano e explicitando, via hipertexto, uma leitura essencialmente rizomática e potencialmente não sequencial. O provisório, o incompleto, o dispersivo, elementos centrais dessa poética dos rascunhos, tornam-se centrais também nessa edição-tradução, integrando o “assombro”, a “monstruosidade do manuscrito” e levando o leitor a experimentar, via hipertexto, a desordem como parte constitutiva de Mon coeur mis à nu. Tal parece ser o modo que mais satisfatoriamente daria conta dessa poética do rascunho, o modo que mais satisfatoriamente colocaria em evidência o contínuo do rascunho: antes de ser um amontoado de fragmentos descontínuos de uma obra a vir, esse conjunto movente de fragmentos e notas em estado provisório de rascunho constituem um contínuo; o descontínuo constitui um contínuo; constitui obra, constitui texto, devendo ser traduzido.

 


Referências
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SCHLEGEL, Friedrich von (1997). O Dialeto dos Fragmentos. Tr. Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras.

 


Notas

[1] “un grand livre auquel je rêve depuis deux ans: Mon Cœur mis à nu, et où j'entasserai toutes mes colères. Ah! si jamais celui-là voit le jour, les Confessions de J.J. paraîtront pâles. Tu vois que je rêve encore. Malheureusement pour la confection de ce livre singulier, il aurait fallu garder des masses de lettres de tout le monde, que j'ai, depuis vingt ans, données ou brûlées”.

[2] “Rêve? Non pas, le manuscrit prouve qu’il y eut bien réalisation”.

[3] “Ni les Pensées de Pascal, ni Mon cœur mis à nu de Baudelaire, ne sont des journaux, et c’est fausser fondamentalement leur signification que de céder à ce genre interprétation”.

[4] Atualmente, os manuscritos encontram-se integralmente digitalizados pelo projeto Gallica da BNF. 21 de maio de 2014. http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b84516210.r=mon+coeur+mis+%C3%A0+nu.langPT

[5] “il serait impossible de décider dans quel ordre ils doivent être lus”.

[6] “une représentation beaucoup plus vivante de la genèse du manuscrit”.

[7] “ouvrages destinés à être composés, organisés en vue d’une démonstration; l’inachèvement ne doit pas nous leurrer; il ne suffit pas à un texte d’être fragmentaire pour être un journal”.

[8] “Il ne s’agit pas de contester le caractère d’inachèvement de ces fragments: ils sont le réservoir d’une œuvre à venir qui ne fut pas réalisée; mais  ils sont déjà en eux-mêmes une œuvre, un texte qui fonctionne selon une esthétique propre [...] Fusées et Mon cœur mis à nu posent la question de la poétique des brouillons. Quelle frontière établir entre le texte définitif et le projet? À partir de quel moment s’agit-il d’un ‘texte’? Nous serions bien près d’admettre que, du moment qu’il y a écrit, il y a texte”.

[9] “ni queue ni tête, puisque tout, au contraire, y est à la fois tête et queue, alternativement et réciproquement. [...] Nous pouvons couper où nous voulons, moi ma rêverie, vous le manuscrit, le lecteur sa lecture”.

[10] “Je peux commencer Mon cœur mis à nu n’importe où, n’importe comment, et le continuer au jour le jour, suivant l’inspiration du jour et de la Circonstance, pourvu que l’inspiration soit vive”.

[11] https://projetoldod.wordpress.com/ 21 de maio de 2014.

[12] http://www.uc.pt/fluc/clp/inv/proj/ldod 21 de maio de 2014.

[13] “La présentation informatique est pratique pour le chercheur dans la mesure où elle permet des corrections permanentes au fur et à mesure que de nouvelles lectures apparaissent. Pour le lecteur, cette présentation transforme complètement les données du rapport entre l’espace et le temps, et par conséquent permet une représentation beaucoup plus vivante de la genèse du manuscrit. Elle lui redonne son mouvement, sa vie. [...] La sagesse consiste, en tout cas, à utiliser dès à présent et le mieux possible, les possibilités techniques que nous offre notre temps”.

[14] “L’édition, ou le mode d’édition établi, avec sa notion de livre achevé, constitué, dans le passage du manuscrit à l’imprimé, a rendu à la fois visibles et invisibles des modes de mouvement du texte propres à une poétique spécifique du non fixé. Le livre a fait livre de ce qui n’était pas livre, instaurant l’inachèvement accidentel ou intrinsèque, en les mêlant tous deux dans une même forme-livre, comme un genre littéraire: les ‘pensées’ de Pascal, celles de Joubert, les aphorismes de Novalis”.

[15] “Le texte comme continu a transformé l’édition critique. On n’a pas seulement étalé les états comme des étapes vers le texte final, on est allé jusqu’à privilégier les états “intermédiaires” comme autant de textes – fin du privilège du produit fini. C’est ainsi qu’on édite et qu’on lit maintenant Nietszche, et Hölderlin”.