MatLit_REC

A Literatura Electrónica Não Existe (Mas Está em Todo o Lado)
Ana Marques da Silva
CLP | Universidade de Coimbra
Bolseira da FCT

 

Este é e não é um livro sobre literatura electrónica. O seu objecto não são textos nem genealogias mas a procura do literário na rede (“the problem of writing the net as the problem of literature” [23]). Bal­dwin reflecte sobre o modo como a inscrição é mediada pelas especifidades protocolares da Internet, situando o escritor na rede e a rede no contexto alargado do neo-liberalismo, e sublinha a sobredeterminação técnica, política e imaginária da mediação digital: “the triumph of informatics. Literature as literally ‘what is written’ is an exemplary case of such writing within the apparatus. (...) Electronic literature is a dutiful part of the bureaucracy, and all existing discussions of electronic literature imply some version of this managerial logic” (1). Dirigindo-se a um you, Baldwin explora aquilo a que chama de ‘preversidade’ da escrita digital para referir a imaginação do outro na rede – o leitor mas também a alteridade algorítmica que dá forma à Internet –, e argumenta que essa imaginação determina tanto o escritor como a própria  fenomenologia da rede: “I imagine you. We might call this net affect, but ‘affect’ (...) does not capture the intersubjective drama. (...) Perhaps it is better to call this the imaginary net” (53).

Partindo da ideia de que na Internet tudo é código e inscrição, Baldwin procura traçar uma poética da escrita digital evidenciando por exemplo o modo como os conceitos de ficheiro e protocolo são mediações não só técni­cas mas institucionais. IP, TCP, traceroute, pacotes de ficheiros em trânsito: através do comando ping, que como um sonar confirma a existência de um outro no outro lado, Baldwin imagina a cartografia da rede, com os seus territó­rios e fronteiras abertas ou fechadas à nossa escrita. Se ping e traceroute contam as histórias dos caminhos que percorrem, serão textos? Ainda que a noção de texto implique um campo intersubjectivo, para Baldwin “even if there is no sign of response, this lack is the signifier of the Other’s response” (40). Há sempre um eu e um outro que saturam os sistemas de comunicação e o texto é o traço de qualquer acção humana na rede: “The discovery that the text is the product of continual logging and processing in my computer means I read towards an anonymous other, a structural other that I posit or project across the space of the net” (45). No entanto, este investimento imaginário que lê toda a inscrição como texto não inventa, por si só, o literário, mas participa da literatura electrónica já que o encontro entre o literário e o digital “leads to the double play of literalization and imaginary overinvestment” (3).

Longe de ser o rizoma democrático que a retórica de Silicon Valley promo­veu na passada década de 90, a Internet é descrita por Baldwin como uma infraestrutura que reflecte e intensifica a macroestrutura neoliberal. Cruzando a história da rede com a análise de gestos como enviar um email, aceder a um site ou fazer sign in, Baldwin demonstra como“we constantly enter into consensual relations with the opacity of a technical infrastructure” (58). Através do formulário CAPTCHA(Completely Automated Public Tu­ring Test to Tell Computers and Humans Apart), por exemplo, em que a interpretação do internauta é utilizada como revisão e autenticação de texto em sistemas de reconhecimento óptico de caracteres no contexto da digitaliza­ção de livros, Baldwin demonstra como a escrita humana é conver­tida em valor acumulado por empresas como a Google ou a Amazon. Conside­rando que cada gesto online é um acto de escrita não inteiramente contro­lado pelo escritor, que essa informação é produzida numa esfera que confunde trabalho com lazer, e que é convertida em valor e poder, conclui-se que a criação de mais-valia a partir da escrita na rede levanta importantes questões económicas, políticas e culturais. A este respeito veja-se por exem­plo Matteo Pasquinelli sobre capitalismo cognitivo e a produção do comum (2009; 2010), Tiziana Terranova sobre o trabalho no espaço da rede (2000) ou Alexander Galloway e a noção de controlo protocológico (2004). Num contexto literário, John Cayley reflectiu sobre estas questões em obras como How It Is in Common Tongues  (2012) ou “Pentameters Toward the Dissolution of Certain Vectoralist Relations” (2013).

Os algoritmos que dão forma à Internet interagem invisivelmente com a nossa escrita, com ela aprendendo a usar linguagem, a mapear territórios e a traçar perfis. A sua lógica administrativa, instaurada em permissões protocola­res, constitui uma teia que enreda o sujeito e funciona, consequente­mente, como uma pré-condição da literatura electrónica. Mas se escrevemos sob permissão, somos ainda escritores? Se escrevemos onde nos é permitido, com ferramentas que não controlamos, se aceitamos termos unilateriais, seremos talvez mais escritores da do que na Internet, e somos também por ela escritos. Ainda assim, Baldwin mantém como horizonte o poder subversivo do gesto literário enquanto resistência ao apparatus: “But what if permission were a struggle? (...) To invent permission, what if this were the condition of digital poetics?” (63).

Como Kittler, Baldwin considera que, no contexto do digital, “the inscrip­tive act is the end of humanity and the beginning of something other” (5). Falamos em escrita digital porque as sub-estruturas do digital são discre­tas e diferenciais como a escrita, mas a execução do código é tão rápida e feita de diferenças tão microscópicas que se torna ilegível à escala humana. O escritor digital não tem um conhecimento empírico do seu traço e a sua es­crita recodificada em sinais matemáticos e electricidade pertence já à esfera do pós-humano. “Do not talk to me about haptic or VR or what have you, all of which only reinforce the gap. (...) They are on the other side of the screen in the great beyond” (8). Nesse “great beyond”, o corpo não tem lugar nem tem lugar a desordem, e é nessa medida que a escrita digital ou obedece à burocracia ou não existe.

Esta regulação é incompatível com o literário: “The possibility to write any­thing at all is a fundamental condition of literature. (...) In this sense, all that passes under the name ‘electronic literature’ is really typing practice for the militarized weapon-subjects” (13). Se a literatura é “the possibility of uncontrolled enunciation”(6), como produzir o literário dentro do espaço regulado da rede? Como recuperar o humano ou como fazer da escrita um trabalho da mão? Talvez no reclamar da intencionalidade?

A estética do erro – ou glitch – surge aqui como exemplo irónico do argu­mento de Baldwin, já que mesmo o erro intencional tem de obedecer a permis­sões sistémicas para ser interpretado: “The notion of glitch and glitch art is nothing more than a way of talking about the intention allowed me by the great beyond” (11). Mas Baldwin vai mais longe: nesse intervalo total onde a escrita na rede se inscreve, é o corpo escrevente que é recodificado – “The web zombifies my body and in doing so keeps itself alive” (15). Por isso, “when literary critics describe ‘embodiment’ in relation to digital writing, they reinforce this zombie shell as our occupation” (10-11). E, com síntese e ironia, Baldwin conclui: “The genre may be generously expanded to include left-handed people or those with low-vision (...) this only means that zombie status is available to all” (15).        

A tese defendida por Baldwin de que a literatura não cabe no electrónico ecoa na sua crítica à definição de literatura electrónica proposta pela ELO: “The Electronic Literature’s Organization definition of electronic literature as ‘works with important literary aspects that take advantage of the possibilities and contexts provided by the stand-alone or networked computer’ is a way of saying that such works are obliged and in debt.” (81). Dívida ao software, ao hardware, às redes de comunicação. Também o presentismo e o tecnicismo implícitos no termo ‘electrónico’, bem como a literalização do dispositivo técnico, foram já objectos de crítica, por exemplo, na introdução a PO.EX Essays from Portugal (Torres e Baldwin, 2014) ou nas recentes palavras de Es­pen Aarseth na conferência de 2015 da ELO [1].

Acresce que não existe uma comunidade de escritores digitais mas uma multi­dão heterogénea e temporária, definida pelo comum do meio técnico e por essa razão situada numa lógica exterior à literatura, a da cibernética neo-liberal, esfera essa que constitui precisamente a predeterminação que o acto literário procura superar. Enquanto Baldwin parece lamentar a não existência de uma comunidade de escritores digitais, ocorre-nos que a multidão, sendo relativamente imprevisível, poderá resistir mais facilmente à regulação protoco­lar da Internet. Em “L’hypothèse cybernétique”(2001), o colectivo Tiqqun propõe precisamente a imprevisibilidade, a dispersão e o nevoeiro como estratégias de resistência às dimensões militares, políticas e económicas da Internet enquanto sistema global de comunicação e controlo [2]: “Attacking the cybernetic hypothesis (...) means experimenting alongside it, actuating other protocols” (Tiqqun, 2001: 35)

Baldwin vê no digital uma “series of empty places, a syntax for combina­tion, indifferent and blank” (70), um reino da repetição que, somada à sobrede­terminação técnica, faz com que encontremos nas obras de literatura electrónica o mesmo conjunto de características – “infinitesimal variation on computation, animation, linking. (...) I tell you, there are no works, only a continuum” (70). Ou: “electronic literature artists make work indistinguisha­ble from Google apps” (72). Para que se possa falar em literatura electrónica é necessária uma filosofia da escrita digital mas, “rather than a theory of electronic literature there is a fast-forward collapse, auto-destruction, and a resulting delirium of work, criticism, and writing” (70). Na linha de Paul Virilio, Baldwin vê na literatura electrónica uma poética do desastre.

O que seria então uma filosofia da escrita digital? Baldwin dá-nos algu­mas pistas:

Listen close: electronic literature is not an arms race of ever cooler and more refined technique – this is literature as tool of rhetoric – nor is it pure invention from the symbolic scansion of empty spaces – this is literature as philosophy of the performative – but it is a literature as elsewhere. (...) You might reply, look Sandy, you’re talking about the net itself as proto-inscrip­tion, and in such inscription there’s no reflection, no intersubjectivity, there’s nothing to be read (...) you’re just intensifying, lightning up our desiring produc­tion in and of the net (74-75).

De facto, encontrar o literário na rede é uma questão de perspectiva: para a cibernética, cujo mantra é a eficácia, não existem funções estéticas mas disciplinares, e a literatura pertence à esfera do ruído. Por isso mesmo, a tarefa do escritor é a produção de desordem: “Poetics means thresholds and boundaries. (...) Think of Jean-Paul Sartre’s description of ‘the poetic world’ as ‘love of the impossible’. Think of the catastrophe theory, a la Rene Thom: the point is changes of state, intensifications of distended surface” (71). Pode­mos ver nesta perspectiva a mesma busca romântica dos limites e da sua transcendência que alimentou o modernismo, mas parece ser precisamente essa a aposta de Baldwin quanto ao digital: testar os limites do sistema, infectando-o com o ruído da literatura, opondo o possível ao “elsewhere”.

Com uma expressividade poética e oralizante, e tão sintética quanto digres­siva, The Internet Unconscious é uma reflexão humanista sobre um objecto pós-humano: a inscrição digital enquanto pós-escrita e a sua retroacção sobre o sujeito. Se a amálgama de agências algorítmicas que estruturam a Internet e os média digitais conflituam com a voz autoral, impossibilitando o literário; se o digital é condição da cultura contemporânea e se, como disse Godard, a cultura é a regra e a arte a excepção [3], a literatura permanecerá na medida em que o escritor reclamar o excesso não codificável que fica do lado de cá da interface. Contra o digital, o literário existe na razão do humano, como uma insistência impossível de conter. “Literature discovers organs sprouting from the medium like flowers” (87).

 


Referências
CAYLEY, John (2013). “Pentameters Toward the Dissolution of Certain Vectoral­ist Relations.” Amodern 2. 10 Nov. 2015.
http://amodern.net/article/pentameters-toward-the-dissolution-of-certain-vectoralist-relations
___________ (2013). “Terms of Reference & Vectoralist Transgressions: Situ­ating Certain Literary Transactions over Networked Services.” Amodern 2. 10 Nov. 2015. http://amodern.net/article/terms-of-reference-vectoralist-transgressions
CAYLEY, John & Daniel C. Howe (2012). How It Is in Common Tongues. Cited from the Com­mons of digitally inscribed writing by John Cayley & Daniel C. Howe, NLLF [Natural Language Liberation Front].
GALLOWAY, Alexander R. (2004). Protocol: How Control Exists after Decentraliza­tion. Cambridge, MA: The MIT Press.
PASQUINELLI, Matteo (2009). “Google’s PageRank Algorithm: A Diagram of Cognitive Capitalism and the Rentier of the Common Intellect.” Deep Search: The Politics of Search Beyond Google. Eds. Konrad Becker, Felix Stalder. London: Transaction Publishers. 152-162.
___________ (2010). “The Ideology of Free Culture and the Grammar of Sabotage.” Education in the Creative Economy: Knowledge and Learning in the Age of Innovation. Eds. D. Araya amd M.A. New York: Peter Lang. 285-304.
TERRANOVA, Tiziana (2000). “Free Labor: Producing Culture for the Digi­tal Economy.” Social Text 63 18.2: 33-58.
TIQQUN (2001). “L’hypothèse cybernétique.” Tiqqun 2: 40-83.

 


Notas

[1] https://mediasite.uib.no/Mediasite/Play/f31b084a522148d6afc69ead64bd0b941d?catalog=32d41cb3-5cd7-489f-bd55-f8f2b08528f9 (de 00:25:15 a 00:56:00)

[2] Comunicação e controlo de sistemas, precisamente como na proposta de cibernética de Norbert Weiner em Cybernetics: or Control and Communication in the Animal and the Machine, Cambridge, MA: MIT Press, 1948).

[3] “Il y a la culture qui est de la règle. Il y a l’exception qui est de l’art.”, JLG, Je vous salue Sarajevo, 1993.