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Variações sobre uma Arqueologia da Atualização
Tiago Schwäbl
CLP | Universidade de Coimbra

 

O título promete-nos novidades: News from the Twentieth Century; paradoxalmente, de um tempo em que ainda estamos imbuídos. A atmosfera crepuscular [slow-fading/ ausgehend, em alemão] deste relato de uma História dos Media, novamente rebobinado e deixado ‘correr’, enuncia variações em exercício arqueológico sobre a evolução da referencialidade do termo ‘media’. “Estou convencido de que […] a Avant-garde é quase sempre uma reinterpretação daquilo que já foi, uma espécie de arqueologia aplicada”, afirma Zielinski numa entrevista acerca do seu Manifesto apresentado no final do livro.

A variação desdobra-se poliédrica, não só ao incidir a luz sobre diferentes faces de um assunto, como também ao alargar o escrutínio a outras áreas de interação, como se pode ler na apresentação do sítio em linha: http://variantology.com/, projeto de investigação fundado em 2004 em Colónia/Nordrhein-Westfalen que estuda as “relações temporais profundas [deep time relations] entre as artes, ciências e tecnologias”. Esta abertura, dizem, não pretende reinventar o conceito de media ou de arte; no entanto, no texto de introdução a este livro Zielinski manifesta algum desconforto acerca de termos tão gerais e procura a sua redefinição. Ainda que os media se aduzam como um “campo discursivo heterogéneo”, a sua aceção está intimamente associada à definição de dispositivo e os dois conceitos acabam por oscilar ao longo do texto entre a) media ou dispositivo como uma terceira entidade resultante da função relacional entre máquina e ser humano – designando a operação – e b) media ou dispositivocomo aparelho ou instrumento – (con)fundindo-se função e máquina. O destaque dos media para a sua operatividade permite por sua vez a generalização da sua presença operativa ou funcional e simultanea-/paradoxalmente a sua subtração ou imaterialização, uma espécie de assimilação invisibilizante que decorre da deslocação do foco de interesse dos “modos meta-metodológicos”, ou seja, na passagem do modo explícito ao modo implícito, no qual os media passam a estar integrados em discursos mais amplos.

After the Media [depois dos media] coloca em questão as consequências de tal (des)integração e procura discernir a evolução da relação entre os utilizadores dos media e a articulação dos poderes em disputa. O clímax desta malha de interligações e a dificuldade em lidar com essa rede tornam-se a premissa que vai justificar o novo inventário às raízes da telemática no século XX. O resultado é dúbio: por um lado cativa-nos o entusiasmo e a particularidade destes dados recuperados, em especial a releitura de autores-inventores (alemães, na sua grande maioria) precursores de conceitos que só mais tarde (e por outros autores) se oficializaram historicamente; por outro lado, desconcerta-nos a facilidade e a possibilidade infinita de criação de novos enquadramentos que, apesar de reaverem informação útil e curiosidades sempre interessantes, neste caso em concreto – fruto da sua dispersão – não ajudam propriamente ao foco, à cristalização da definição ou à restrição do que devia caber sob o conceito geral [umbrella concept] de media.

Através da ‘ousada’ cronologia [an unabashed ‘tour d’horizon’] pelo século XX apresentada no primeiro capítulo apercebemo-nos de que a progressiva interação entre tecnologia e sociedade torna difícil a perceção clara das mútuas influências, a ponto de um meio servir ao mesmo tempo como ferramenta de poder estatal e como canal de oposição. Se por um lado é possível criar um Estado ‘por meio’ dos media, por outro a Internet – malha heterogénea e inconsciente, construída em rede –, apesar de “só existir na sua vulnerabilidade”, pode tornar-se a ferramenta e lugar da insurgência. As sucessões tecnológicas aqui desveladas apresentam relações sistémicas de alcance, multiplicidade, velocidade e autonomia sempre crescentes, analisados na sua relação entre poder e quotidiano; os media são então o nome dessa relação, veículo da operação, algo que se subtrai e que se torna por isso operador invisível, uma entidade abstrata.

Neste processo de implicitação deve ser também considerada a posição do observador, que não se coloca nem interna nem externamente a um sistema, mas surge como interface entre os dois. A realidade é atribuída ao interface e a sua leitura – os níveis de acessibilidade operacional – prende-se com os modos de observação exterior/ interior, sendo este último aplicado na endofísica – tomada aqui de empréstimo a Otto Rössler (teoria do caos), que contribuiu aliás para as séries Variantology – On Deep Time Relations between the Arts, Sciences and Technologies (2005-2011) organizadas por Siegfried Zielinski. A terminologia exo/endo é aplicada na distinção entre ‘realidade local’ (“senso comum”) e realidade ‘não-local’ (“holística”), entre um estado epistémico (a descrição do conhecimento – em geral incompleto – das propriedades de um sistema físico) e um estado ôntico (descrições individuais que remetem para propriedades abstratas e potenciais) [recorro aqui à explicação de Harald Atmanspacher num artigo de 1996]. A perspetiva holística e endo-temporal justifica-se neste contexto zielinskiano pela noção participatória entre observador e objeto observado, e mais ainda por uma experiência de presença em que não há sequências temporais definidas nem uma história fechada de eventos (neste último caso, em exo-perspetiva/ realidade local, separados do seu ambiente temporal, passado e futuro são criados como modos distintos de temporalidade). Nesta breve incursão endofísica, será importante mencionar ainda Alfred North Whitehead, para quem a entidade concreta máxima é a ocasião em si [actual occasions]: objetos relacionados uns com os outros de forma inseparável e não-local na sua «preensão» [prehensions]. Este conceito relaciona-se com a ideia da duração dilatada da presença [extended duration of presence] e desemboca em Zielinski como “momento de atualização”.

Portanto, num sistema informático de conexão simultânea as máquinas individuais deixam de ser terminais e passam a funcionar como interfaces, pelo que a aproximação protética dos aparelhos ao corpo dos utilizadores – “conetividade incondicional” [unconditional connectivity] – não significa necessariamente uma personalização; estes, por sua vez, instanciam-se como “máquinas operativas de atualização” [operating updating machines], sensíveis à realização (em “arqueologia instantânea”) temporária e oportuna de outros artefactos programados: as aplicações. “O presente torna-se (…) um simples momento de atualização [simply a moment of updating]”.

Considerando os jogos de poder e condicionamentos envolvidos, os media tomam o caráter de um dispositivo, no qual se articulam humano, máquina e medium. Será oportuno referir, a propósito de dispositivos, que o arquivo de Vilém Flusser (http://www.flusser-archive.org/) está desde 1998 a cargo de Siegfried Zielinski, sediado primeiro na Escola Superior das Artes e Media de Colónia, onde este último lecionava “Arqueologia e Variantologia dos Media”, acompanhando depois o autor na sua mudança em 2007 para a Escola Superior das Artes de Berlim. No entanto, o dispositivo é aqui circunscrito e reutilizado não só com base na terminologia de Flusser como também nas de Foucault, Deleuze e Agamben; a sua dimensão discursiva conduz a reconsiderações em redor de uma nova definição de comunidade que, entre a possibilidade técnica e as restrições concedidas por essa possibilidade, se permeia sensível às alterações a nível da sua qualidade, liberdade ou até validade.

Uma secção do terceiro capítulo é dedicada a Giorgio Agamben: num gesto que soa refrescantemente subversivo, o filósofo italiano propõe separar de novo dos media aquilo que não é mediatizável, ou seja, restituir ao uso comum o que fora capturado e separado; para Agamben (2005), “os indivíduos estão de facto separados pelo que parece conetá-los; mais precisamente, os media”.

A tentativa de se subtrair a um conceito geral para redefinir o termo ‘media’ ficou comprimida pelas infinitas variantes arqueológicas. Infelizmente o Autor acaba vítima da sua própria “crítica a uma generalização estratégica”, pois quando chegamos ao segundo capítulo já tudo nos parece sistémico, apesar de intentada uma localização preposicional da arte em relação aos media [before/ with/ through/ after], a par de uma ‘cultura experimentalis’ de resistência com foco em Nam June Paik. A urgência de uma abertura encontra alternativas nas práticas artísticas, em reformulações de descontinuidades, desvios, desconexões.

Declarar a superfluidade dos media – em termos de ausência de desejo, dada a facilidade de acesso à sua posse – é acusar a esmagadora presença dos mesmos, reforçar o conflito e a dificuldade em destrinçar o que já não é destrinçável, em isolar a fonte, em definir o que não é mediado.