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Tornar Público: As Redes e os Contextos de uma Teoria da Publicação
Sandra Bettencourt
CLP | Universidade de Coimbra
Bolseira da FCT

 

O que significa  publicar um objeto cultural? Qual o papel dos seus atores, os editores? Que transformações definem esta prática na contemporaneidade? Estas são algumas perguntas que ainda carecem de uma reflexão sistematizada e específica no âmbito das Humanidades. Não quer isso dizer que a questão da publicação seja um tema intocado e que não tenha sido alvo de incursões críticas e teóricas ao longo da história. O que significa é que esses exercícios se têm desenvolvido de forma suplementar, ou enquanto derivações satélite no contexto de reflexões de outros campos e disciplinas. Neste ponto, salientam-se os campos da História do Livro e dos Estudos Literários, cujos objetos de análise implicam a consciência da publicação e edição nos seus métodos de estudo.

Em The Content Machine. Towards a Theory of Publishing from the Printing Press to the Digital Network, Michael Bhaskar leva a cabo esse exercício de teorização da publicação e do processo editorial ancorado em estratégias, modelos e sistemas específicos. A pergunta orientadora da argumentação de Bhaskar pode ser definida nos seguintes termos: qual a forma de uma teoria da publicação? A partir desta questão, defende o autor, torna-se possível definir o que significa e implica ‘publicar’. Para tal, Bhaskar desenha um mapa histórico, económico, social e tecnológico, com pontos que se cruzam numa vasta e complexa rede. Rede é, aliás, uma das palavras-chave na definição que o autor vai desenvolvendo, no centro da qual encontramos uma outra: conteúdo. Sistematizando, Bhaskar propõe uma teoria da publicação assente em quatro conceitos — “framing and models, filtering and amplification” — que compõem a engrenagem da máquina que produz conteúdos: o epicentro da publicação.

Entendendo a publicação desta forma, as variações e a heterogeneidade que marcam o conceito, agudizadas atualmente pela hegemonia da produção digital, tornam-se evidentes: o conteúdo é inseparável dos contextos históricos, sociais e tecnológicos, que se inter-informam. O digital coloca novos desafios a esta “máquina de conteúdos”, na medida em que acentua a desintermediação (redução e restruturação dos agentes e processos editoriais) e os efeitos da rede (‘network effects’): “Publishing becomes part of a transmedia blend: editors become producers, content becomes marketing and marketing becomes content in an unproblematic way” (186).

A partir daqui, Bhaskar estrutura o livro tendo como horizonte a noção de que a publicação é uma atividade que se situa entre a cultura e o negócio (“Publishing is the primal creative industry qua industry” (2)), circunscrita a um sistema dinâmico de produção de conteúdos que enfrenta reconfigurações de natureza medial, social e económica. A proposta do autor para os desafios mais recentes é a de uma consciência de que o processo de publicação depende daqueles quatro conceitos e de que eles constituem a atividade do editor, em particular nas condições de produção e distribuição criadas pela digitalidade.

A argumentação de Bhaskar mostra-se atenta ao carácter plural e instável do objeto da sua teorização. O autor leva a cabo contextualizações teóricas transdisciplinares (da história do livro, à teoria literária, aos estudos de média e à sociologia) e desenvolve problematizações de episódios e atores da história do conceito em análise, a publicação. Esta metodologia serve produtivamente dois propósitos que se tornam claros para o leitor:  mapear o panorama do campo e legitimar a argumentação do autor. Sendo assim, desde o primeiro momento, é construído um espaço confortável de leitura e de reflexão, até para o leitor menos familiarizado com o universo editorial.

Organizado em seis capítulos, The Content Machine explora as diversas funções, problemas e possíveis soluções para a publicação no contexto contemporâneo. A introdução e o primeiro capítulo estabelecem as bases que vão suportar a estrutura do livro: Bhaskar desenha e discute o significado do termo publicação através da sua origem etimológica — ‘tornar público’ — com atenção aos problemas que tal definição levanta: todo e qualquer documento acessível ao público é um objeto publicado? Qual a relação com as tecnologias e os média? Que elementos possibilitam uma teoria unificadora da publicação? O autor conclui com uma pergunta e uma resposta que vão ser o fio condutor dos capítulos posteriores: “What do we have left? Content. Market making. Making public. An element of risk perhaps, not necessarily, but commonly, financial. Any theory of publishing must connect these dots, all of which span the history of publishing and its different forms, definitions, and possibilities” (39).

É a partir do segundo capítulo (“The Digital Context and Challenge”) que a imersão nos problemas a que o livro se propõe dar resposta se adensa. Sempre com uma visão crítica e contextual, a exposição das questões centrais do livro é conscientemente orientada para a situação atual. A argumentação não é regida por uma linha temporal histórica, apesar da revisitação histórica guiar o pensamento do autor, o que confere clareza e solidez aos seus argumentos. Não é, assim, de estranhar que a discussão mais profunda do problema tenha início com os estágios mais recentes do universo editorial: o digital e, especialmente, a rede. É nestes contextos que as palavras-chave definidas por Bhaskar para uma compreensão dos processos de publicação se tornam mais evidentes. Sendo a rede um espaço de centralização e fragmentação, e o digital um potenciador da desintermediação, este é um universo em que o conteúdo (sempre multimédia) se encontra cada vez mais implicado nos processos de ‘framing and models, filtering and amplification’. Percebemos porque é que para o autor são estes os conceitos centrais numa teoria da publicação contemporânea: eles são inseparáveis e interagem entre si, redefinindo-se mutuamente, de uma forma cada vez mais imediata. Como outras transformações a que os modelos de publicação estiveram sujeitos, o digital e a rede reconfiguram os papéis dos editores e o panorama editorial. Neste contexto, o que é necessário, segundo o diagnóstico do autor, é uma “depic­tion of publishing equal to the convergence age” (77).

De forma a traçar esse esboço é imperativo perceber de que forma funci­ona o conteúdo e sob que sistemas. Os capítulos três e quatro fornecem tal esboço, constituindo o centro argumentativo da obra. É neste momento que os conceitos de ‘filtering’, ‘amplification’, ‘framing’ e ‘models’ são dissecados e que o sistema de relações que estabelecem entre si é esclarecido. Para o autor, os agentes editoriais assumem cada vez mais um papel de curadores (‘filtering’) e de disseminadores (“amplification”) do conteúdo da publicação, estas ações só ocorrem através de modos de distribuição e apresentação materiais e imateriais (‘frames’), e de acordo com determinados contextos de produção económicos, estéticos ou culturais (‘models’). Deste modo, a publicação estabelece-se como um modelo complexo e convergente de intermediação cultural que se vai definindo através de um sistema em rede.

Os dois últimos capítulos sintetizam os conceitos desenvolvidos ao longo do texto e respondem de forma mais objetiva à pergunta que orienta toda a argumentação: ao que responde uma teoria da publicação? De acordo com Bhaskar, ela deve “account for the public and institutional character of publishing, explaining what makes something public” (168); “account for the role of publishing as an act of mediation” (idem); “account for divergent historical understandings” (idem); “account for divergent media forms published” (169); “account for facets such as (financial) risk, the relationship to content and market making” (170).

Michael Bhaskar estabelece uma teoria da publicação que suporta o argu­mento de que, face à digitalidade, aquela não se encontra em crise, ao contrário do que muitos argumentam. Na verdade, para Bhaskar, a publicação e a atividade editorial sempre estiveram em crise (e os exemplos, desde o século XV até ao presente, pontuam todo o livro) e o que The Content Machine nos mostra é que uma reflexão crítica e profunda acerca do que é publicar dissipa algumas dessas nuvens e ilumina os novos caminhos que se desenham no território editorial, mas também cultural, económico e social. The Content Machine é a praxis da sua própria teoria: contribui para uma clarificação do que significa ‘tornar público’; esclarece as mediações entre diferentes sistemas; expõe as complexidades históricas deste sistema; não se limita a uma teoria da publicação unimedial, mas sublinha o facto de que o ato de tornar público é multi e transmedial; assim como desenha as redes em que interagem os diversos elementos e agentes tanto da teoria (evidente na diversidade de fontes e autores teóricos, desde Robert Darnton a Bruno Latour) como da prática.

Acima de tudo, Bhaskar contribui com uma pertinente atualização do vocabulário e de noções de publicação consonantes com as especificidades do tempo presente. Conceitos como ‘framing’, ‘filtering’, ‘amplification’ e ‘model’ podem não ser novos, mas são agrupados de forma dinâmica, o que permite uma dessacralização da noção de conteúdo resgatando-o para a centralidade de um sistema aqui desromantizado mas, por isso mesmo, mais capaz de se restabelecer em novos e heterogéneos contextos.