Humano no Meio do Caminho
Ana Marques da Silva
CLP | Universidade de Coimbra
Bolseira da FCT
“O homem é uma invenção, e uma invenção recente, tal como a arqueologia do nosso pensamento o mostra facilmente. E talvez ela nos indique também o seu próximo fim”, escreveu Foucault em 1966, na passagem que encerra As Palavras e as Coisas. Passados cinquenta anos, a pergunta ‘o que significa ser humano?’ continua em aberto, como em aberto continua o termo humanismo. Será talvez essa a questão fundamental em Posthumanism – A Critical Analysis: Stefan Herbrechter toma em mãos a grande questão humanista para analisar o modo como a transformação do humano corresponde à sua pós-humanização. Este livro não é portanto sobre o pós-humano, entendido como aquilo que vem depois do humano, mas sobre a crítica da modernidade a uma noção de humano baseada no paradigma do humanismo iluminista: “A posthumanism which, precisely, is not post-human but post-human(ist).” (7)
Se o humanismo começa com o Renascimento, o pós-humanismo começa com a modernidade. Stefan Herbrechter traça uma genealogia que situa o pós-humanismo na história da filosofia, começando com Nietzsche, cujo nihilismo satiriza a arrogância e o moralismo antropocentristas, e continuando com o pós-estruturalismo na sua desconstrução da meta-narrativa iluminista e da noção de uma natureza humana universal e geradora das grandes conquistas culturais e civilizacionais. (A este propósito ocorre-nos a sugestiva frase de Laruelle: “Humanism is an inferior angelism and a lie concerning man” [Laruelle, 2013]). Para Herbrechter, a crítica pós-estruturalista ao humanismo antecipa portanto o pós-humanismo. Em Lyotard, Herbrechter encontra a “pure post-modern (or posthumanist) melancholia, after the end of the modern and humanistic principle of hope” (6-7). Em Foucault, o biopoder como prisma para analisar as visões transhumanistas do corpo cibernético. Em Derrida, a desconstrução dos modelos discursivos e a ressignificação do humano.
Num esforço de relativização das profecias, ora apocalípticas ora utópicas, quanto ao presente e ao futuro da condição humana, Herbrechter analisa os debates em torno do conceito de pós-humanismo, compilando e inter-relacionando as ideias-chave de autores como Donna Haraway, Katherine Hayles ou Cary Wolfe, entre outros. Ao mesmo tempo, esta rede de referências é contrastada com os pressupostos teóricos em que assenta a retórica transhumanista, evidenciando as contradições entre duas cosmogonias distintas: a primeira, que reage ao paradigma do iluminismo liberal, e a segunda, que o prolonga. E este é um dos problemas do estudo que Stefan Herbrechter nos oferece: o termo pós-humanismo é utilizado de uma forma por vezes demasiado ampla e apaziguadora de perspectivas divergentes. De facto, e como o próprio autor acaba por tornar claro, enquanto o pós-humanismo parte de um paradigma materialista anti-antropocêntrico, o transhumanismo reitera o dualismo cartesiano e o excepcionalismo do humano. Este livro funciona então como uma bem-vinda revisão crítica da literatura acerca de um conceito que ganharia, ainda assim, se Herbrechter esclarecesse desde as primeiras páginas o modo como as tensões entre estas duas perspectivas do humano evidenciam as tensões entre materialismo e metafísica.
Corpo e técnica
Central nesta discussão é a técnica. Por um lado, os desenvolvimentos científicos e tecnológicos contribuem para a construção de um pós-humanismo crítico na medida em que questionam o essencialismo e a centralidade do humano:
the idea of a ‘free and autonomous consciousness’ is being questioned by neuroscientists, for example; the uniqueness of the human species is contested by biotechnology and genetics; the singularity of the human mind is queried by informatics, robotics and artificial intelligence. (...) these developments continue a series of previous ‘humiliations’ of the human. (47-48)
Darwin, Marx, Freud. Gradualmente, o humano viu-se como um resultado de processos naturais, sociais e psicológicos. Por outro lado, o sujeito liberal humanista acaba por sobreviver na perspetiva transhumanista através de uma tecnologia que emancipa a ‘consciência’ [1] dos constrangimentos biológicos de um ‘corpo obsoleto’ [2]: “it is often precisely this liberal humanist self which survives in transhumanist philosophy, but merely in a technological form – as a new version of Descartes’ ‘ghost in the machine’, so to speak” (52). Para o pensamento transhumanista,
human ‘flesh’ is consequentley renamed as ‘wetware’ (...). In order to escape its natural biological decay wetware itself needs to be (...) ‘redesigned’. With such extended control over the human body, more control over the natural environment and evolution itself can be achieved – which represents, in fact, a generalization and transposition of the power system described by Foucauldian biopolitics (53-54).
A visão transhumanista da tecnologia corresponde assim ao “age-old desire for a human resemblance to God and immortality, the desire for the ‘forbidden fruit’ and self-aggrandizement (from Adam, to Prometheus, to Frankenstein) which comes into play” (54). E é neste sentido que um pós-humanismo crítico se torna necessário, para separar e distinguir duas filosofias que, apesar de surgirem frequentemente como parte da mesma coisa, acabam por se contrariar e excluir mutuamente. Cary Wolfe, por exemplo, em What is Posthumanism?, afirma de modo explícito esta oposição:
my sense of posthumanism is the opposite of transhumanism, and in this light, transhumanism should be seen as an intensification of humanism (...) posthumanism in my sense (...) opposes the fantasies of disembodiment and autonomy, inherited from humanism itself (Wolfe, 2010: xv).
O que está em causa não é portanto a divergência entre tecnofobia e tecnofilia, já que não é a tecnologia em si que separa os dois polos da crise humanista. O que distingue o ciborgue de Donna Haraway do de Ray Kurzweil é a concepção de ‘corpo’, ou de ‘humano’, precisamente: o corpo fluido que é também máquina, animal ou composto [3], versus o corpo do qual a ‘consciência’ se quer libertar. Ou o corpo que na sua versão pós-humana é sujeito múltiplo e agente em devir, e que na sua versão transhumana se torna constrangimento limitado e decadente. Esta é pois uma divergência de carácter filosófico e político, entre um materialismo pós-marxista (radicado na matéria e na história, e na convergência entre natureza e técnica) e a uma metafísica dualista (radicada na desmaterialização e na oposição entre corpo e mente, e entre natureza e técnica).
Do controlo do corpo tecnologizado (biopoder) até ao apagamento ou repressão do corpo-sujeito (“brain in a vat”), passando pela própria noção de cibernética (tal como proposta por Wiener [4]) até às políticas de representação do outro (não-humano), o pensamento transhumanista parece representar um conjunto de valores úteis ao regime tecno-capitalista contemporâneo. A este propósito, Herbrechter recorre ao exemplo da neuroplasticidade:
Popular science magazines (...) are busy spreading the word and the new ideology of the ‘plasticity’ of the human brain and the human self (...). Global virtual hypercapitalism needs an equally plastic and flexible human subject (25).
Contígua à questão do corpo situa-se a questão da materialidade, no sentido de corporificação (“embodiment”), central para as políticas de representação do ‘eu’ e do ‘outro’, mas central também para pensar o conceito de informação. Assim (e contra o dualismo cartesiano transhumanista), “[a] central aspect of a critical posthumanism is therefore to remind information of its forgotten or repressed materiality” (94).
Sujeito e sistema
O não humano e o in-humano são ontologias constituintes do humano pós-humanista. Por um lado o animal, o ciborgue ou outros fantasmas, deuses e demais criaturas, surgem como expressões de um não humano que é também sujeito subjetivo. Por outro lado, “the perversion of ‘inhumanity’ is part of the logic of humanism itself” (72). Como exemplo desta dualidade, Stefan Herbrechter remete para Harold Bloom, que associou Shakespeare à invenção do humano ou à “inauguration of personality as we have come to recognize it (Bloom, 1999: 4)” (58). Ao lado de Homero ou Dante, Shakespeare representa a complexidade, a ambiguidade e a mutabilidade do humano, com a sua in-humanidade, e também com as suas versões não humanas, representações não essencialistas do ‘self’ e da sua condição conflitual e aberta. Não é uma humanidade geral que Shakespeare retrata, é antes a própria crise da subjetividade que constitui a matéria do humano. Shakespeare será assim também um proto-pós-humanista. (Note-se que Herbrechter rejeita claramente a ideia de que a literatura tem como tarefa a consolidação do humano. Pelo contrário, diríamos nós, a sua tarefa será a arte da desarrumação ‘sem condição’, abrindo sempre a cicatriz que as instituições tendem a fechar.) Para Herbrechter, aquilo que constitui a humanidade do humano é portanto a dialéctica entre o não humano, o in-humano e o humano: “It is precisely the connection between continuity, break and remembering that powers the dialectical drive, within humanism, between dehumanization and rehumanization”(72). Mas depois de Baudrillard, poderemos ainda apostar na dialéctica? [5]
No prolongamento da questão pós-humanista, estão as pós-humanidades. Para Herbrechter, a interdependência dos conceitos de humano, in-humano e pós-humano (a um nível político, económico, filosófico, tecnocientífico e cultural) implica uma necessária interdisciplinaridade nas (pós)humanidades, convocando e colocando em diálogo as ciências humanas, sociais, naturais e cognitivas. As humanidades digitais ou o impacto das ciências cognitivas nas humanidades dão-nos conta precisamente deste movimento. Sendo esta uma perspetiva relativamente pacífica, não podemos deixar de apontar para dois problemas: por um lado, há a questão da perda de foco, ou de as (pós-)humanidades se deixarem tomar pelo pragmatismo de outras áreas do saber, tornando-se ferramentas da cibernética. Por outro lado, há o problema da pressa a que as ciências humanas podem acabar por ser sujeitas no processo de constante ‘actualização’ que marca a cultura contemporânea, sendo que a pressa é inimiga do julgamento crítico, precisamente o tipo de análise que caracteriza as humanidades. Para Herbrechter, no entanto, a defesa da interdisciplinaridade encontra lastro na defesa da “Universidade sem condição” imaginada por Derrida, para argumentar que na raíz do sem condiçãoestá a liberdade (a única condição iluminista), bem como uma dialéctica de permanente desconstrução (entendida como modo de pensamento humano) das meta-narrativas históricas. Se as (pós-)humanidades interrogam o (pós-)humano, isso implica precisamente a desconstrução desse humano, humano plural, não nome mas verbo, à procura já não de um centro mas de um caminho – um humano no meio do caminho.
Herbrechter encerra o seu estudo com a premissa de que a teoria crítica pós-humanista se situa entre as noções de sujeito e de sistema. Na linha de Cary Wolfe, o autor considera que o pensamento pós-humanista e a teoria dos sistemas (desenvolvida por Luhmann) são complementares: “systems theory offers promising epistemological explanations because formal descriptions of complex, recursive and autopoietic systems are not based on a previous distinction between humans and nonhumans” (201). Assim, a relevância da teoria dos sistemas para o pós-humanismo passa por uma ‘deontologization of the human subject’ (201), alargando a condição de sujeito a agentes não humanos e, ao mesmo tempo, diluindo a sua autonomia num sistema mais alargado, ou num contexto no qual também a ideia de ‘coisa em si mesma’ é posta em causa, diferindo sempre o sentido, ou impossibilitando-o de se fixar. Para Derrida, o contexto histórico-linguístico precede sempre a intenção do sujeito. Assim, enquanto a desconstrução salienta o primado do contexto, remetendo para a relatividade do sujeito e problematizando a sua autonomia, a teoria dos sistemas leva a cabo uma generalização que retira o humano do princípio da significação. Vistas como complementares, a teoria dos sistemas seria assim como uma reconstrução (do particular para o geral) da desconstrução (do geral para o particular).
This (...) approach of communication in systems theory is posthumanist in the sense that it questions the principle of an autonomous subject, based on the idea of self-identity, as well as the idea of a separate intersubjective ‘life world’. It also questions (...) the idea of language as a medium of representation of ‘content’. (...) Communication, as primarily autotelic, or self-referential, is only one form of systemic self-reproduction, among others, and precisely here lies the prospect of a posthumanist understanding of humans (...) which might form the basis for the posthumanities (...) and which might thus no longer be based on language-centered hermeneutic definitions of meaning production. In n’y a pas de hors-texte—Derrida’s well known statement about unconditional contextuality and critique of the notion of autonomy (...), returns in this context as a generalized aspect, in the form of the implicit social observer within systems theory (201-202).
Esta relativização do sujeito não corresponde, claro, ao seu desaparecimento – “[O]ur ‘posthuman condition’ is thus not a liquidification of the subject but rather a proliferation of subjects” (198) –, antes expõe o especismo tácito que subjaz à ideia de subjectividade e que terá de se tornar num dos principais alvos da crítica pós-humanista. A desconstrução e o descentramento descrevem a pluralidade pós-moderna enquanto capturam a crise do humanismo iluminista. Se o humano é um efeito de processos históricos, o pós-humanismo é deles sintoma:
[T]hrough such a ‘symptomatic’ reading of posthumanist forms of expression an entirely different and much more positive meaning of posthumanization might become possible, namely an affirmative deconstruction of our humanist ‘prison-house’” (76-77)
e, nesse sentido, “a critical posthumanism might thus also be seen as a kind of ‘reflexive humanization’” (80).
References
BAUDRILLARD, Jean (1988). “Fatal Strategies.” Selected Writings. Ed. Mark Poster. Stanford, CA: Stanford University Press. 185-206.
FOUCAULT, Michel (1998). As Palavras e as Coisas. Trad. António Ramos Rosa. Lisboa: Edições 70.
HARAWAY, Donna (2015). “Anthropocene, Capitalocene, Plantationocene, Chthulucene: Making Kin.” Environmental Humanities 6: 159-165. 17 Mar. 2016. http://environmentalhumanities.org/arch/vol6/6.7.pdf.
LARUELLE, François (2013). Dictionary of Non-Philosophy. Trans. Taylor Adkins. Univocal. 25 Mar. 2016.
http://monoskop.org/images/2/2b/Laruelle_Francois_Dictionary_of_Non-Philosophy.pdf.
STELARC (1998). “From Psycho-Body to Cyber-Systems: Images and Post-Human Entities.” Virtual Futures: Cyberotics, Technology and Post-human Pragmatism. Eds. Joan Broadhurst Dixon and Eric J. Cassidy. London: Routledge. 154-163.
WOLFE, Cary (2010). What is Posthumanism? Beyond Humanism and Anthropocentrism. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press.
Notes
[1] Um termo a que SH recorre com frequência, mas que preferiríamos ver substituído por ‘processos cognitivos conscientes’. Do mesmo modo, outros termos, como ‘racionalidade’, em vez de ‘capacidade de abstração’, por exemplo, denotam até que ponto a precisão no uso de vocabulário é importante como forma de evitar cair nas armadilhas que a linguagem pode oferecer. Tanto os termos ‘consciência’ como ‘racionalidade’ pertencem a um campo semântico cristalizado por concepções antropocêntricas da cognição.
[2] Ideia profusamente difundida por exemplo por Stelarc (http://stelarc.org/?catID=20317).
[3] “I am a compost-ist, not a posthuman-ist: we are all compost, not posthuman.” (Haraway, 2015)
[4] “Control and comunication in the animal and the machine” é precisamente o subtítulo da obra seminal Cibernetics, de Norbert Wiener, publicada em 1948.
[5] “The universe is not dialectical: it moves toward the extremes, and not toward equilibrium; it is devoted to a radical antagonism, and not to reconciliation or to synthesis” (Baudrillard, 1988: 185).
© 2016 Ana Marques da Silva.
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