A Ilegível Sucata
Tiago Schwäbl
CLP | Universidade de Coimbra
Uma académica das Ciências Humanas anda às voltas com um conto de Joyce, tentando perceber, a páginas tantas, se a descrição de uma bomba de ar abandonada num quintal corresponde ao símbolo da serpente no paraíso ou a um símbolo fálico. Encalhada, a estudiosa faz então uma pausa e aproveita para ir às compras; no caminho de regresso passa por um terreno onde, debaixo de uns arbustos, está uma velha bomba de ar para bicicleta. A jovem poderá considerar se o aparelho ainda funciona, mas dificilmente se questionará se o objeto simboliza uma serpente ou um falo. Este exemplo é apresentado por Aleida Assmann já no final do livro e dá-nos conta de diferentes posturas perante as coisas, consoante se trate de um texto ou do mundo. Esta competência de alternância [Umschaltkompetenz] define não só espaços de literariedade como também o momento de entrada de um indivíduo em quadros interpretativos [Deutungsrahmen] nos quais se espoletam obsessões de significação e compreensão: as feras-leitoras andam à solta no matagal dos signos.
Aleida Assmann percorre vários trilhos, dos quais se poderiam destacar alguns níveis ou temas: «o mundo como texto» efetua um primeiro levantamento das várias categorias sígnicas, articulando animal symbolicum e homo interpres, sendo que a relação entre as manifestações mundanas e a sua significação reorienta os códigos de construção da leitura conforme a ênfase, presença ou ausência dos implicados (sinal, mensagem, emissor, destinatário, leitor). Esse jogo processual de materialização oscila entre o imediato e o mediado, entre o preenchimento e o esvaziamento semiótico; a materialidade é encontrada quer na substância do signo quer no seu limbo.
A «imagética da escrita» – outra camada de análise – interpõe-se entre a legibilidade da escrita e o reconhecimento da imagem, seja na distinção dos códigos exclusivos de cada uma, seja na sua confluência até à indistinção. «Ler e Olhar», por exemplo (título do capítulo nono), submerge-nos no ténue jogo do reconhecimento e estranhamento, tal como acontece naquelas figuras ambíguas do jarro de Rubin, do coelho/ pato de Wittgenstein ou da nora/ sogra, onde tanto se pode observar a revelação de uma taça como a de duas silhuetas de cabeças humanas, mas nunca as duas figuras ao mesmo tempo. Esse campo de tensão entre transparência e opacidade ocorre igualmente na letra, aquando da sua emersão e consequente saturação e multiplicação dos códigos – na evidência do medium –, ou, pelo contrário, aquando do seu desaparecimento no processo de leitura.
Outra história de fascínio, provocada por um distanciamento que só vem confirmar o grau de duplicidade e mistério do signo, é a dos hieróglifos, que não só codificam a fonética [Lautsprache] da linguagem, mas, na sua imagética [Bildhaftigkeit], tornam o mundo imediatamente legível. Os hieróglifos tomam lugar central neste livro em diversos patamares da sua receção histórica, como, por exemplo, na Renascença: quando Gutenberg traz a escrita à impressão, traz também as imagens; com a separação clara destes dois códigos, cresce a consciência de uma fronteira entre os sistemas sígnicos e os seus media. «Quanto mais abstrato e arbitrário, quanto mais mecânico e [produzido] em massa se torna o medium [da] escrita na sua história técnica, mais intensivamente se pode revelar o contra-exemplo dos hieróglifos como marca de uma alternativa cultural excluída e rejeitada. Não é por isso um acaso que a primeira fase do fascínio pelos hieróglifos aconteça na primeira fase da era da imprensa.»
Se por um lado a história da escrita aponta, segundo Assmann, para um aumento da arbitrariedade e da abstração, por outro a eficácia na transmissão de dados afunila o conceito de escrita. É neste âmbito que a letra irrompe no processo de leitura, ensaiando «estratégias de leitura» e considerações sobre a incompreensão e a ilegibilidade, bem como formas de lidar com os inesgotáveis impulsos hermenêuticos. A «obsessão interpretativa» vem orientar ou desorientar leitores votados a uma pansemiótica desmesurada – o conto «The Turn of the Screw» de Henry James é aqui submetido a intensa análise –, em conflito encriptado entre texto e vida.
O livro de Assman desenrola uma macroestrutura temática de ampliação e foco variável – que não deixa, todavia, de seguir uma linha histórica contínua na qual são atribuídos diferentes processos de leitura a temporalidades específicas. A argumentação desenvolve-se através de uma articulação histórica e binomial: Shakespeare/Sócrates, Nietzsche/Goethe, Hoffmannstahl/ Francis Bacon… exterior/interior, superfície/profundidade, visível/invisível, voz/escrita, texto/imagem, mensagem/medium… A dupla estrutura do signo é a fonte de inúmeros caminhos e desequilíbrios que, apesar da inesgotável multiplicidade, não se libertam deste duplo cerne: tertium non datur, ao contrário do que tenta mostrar a Autora.
Aleida Assmann é professora de Estudos Ingleses e Literários na Universidade de Constança em Baden-Württemberg, no sul da Alemanha. Em 1980 publica a tese com o título A Legitimidade da Ficção, na qual examina duas formas de leitura: a do mundo e a dos livros. Na introdução, a Autora baliza o seu percurso pela triangulação das suas influências: Michel Foucault, 1966, Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines [As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas]; Hans Blumenberg, 1986, Die Lesbarkeit der Welt [A legibilidade do mundo], e Umberto Eco, 1993, La ricerca della lingua perfetta nella cultura europea [A procura da língua perfeita na cultura europeia]. Aliás, a referência a Seis passeios pelos bosques da ficção (1994) de Umberto Eco é imediata, sendo que em Assmann não é de um modelo de leitor, mas de processos de leitura que se trata, já não tanto um passeio lúdico com direito a piquenique, mas um regresso esquizofrénico ao depósito de definições e utilizações, ao dédalo de várias camadas: uma sucata.
As estratégias de leitura sucedem-se: a partir dos anos 1980 a palavra ‘interpretar’ vai dando lugar à palavra ‘ler’; e se no início de século XX se falava de ‘ininteligibilidade’, no seu final o tópico era a ‘ilegibilidade’. Paradoxalmente, este segundo hermetismo, diz a Autora, não leva a uma quebra da hermenêutica, antes lhe dá novos impulsos; salienta-se aqui a diferenciação entre um todo textual onde a hermenêutica encontra uma «inesgotável abundância de significações» e um texto aberto em que o sentido prolifera, agora sem a imposição da compreensão. A parte V – «Metamorfoses da Leitura» – remete-nos para um espaço intermédio entre leitor e texto, coabitado pelos media materiais: «os ‘textos’ transformam-se em ‘texturas’», é libertada uma prontidão [Bereitschaft] de leitura do mundo que estende renovada atenção [Aufmerksamkeit] à letra e, por via dela, ao medium. «Descobrir de novo a leitura como ação central e ineludível significa, entre outros, que já não há mais transcendentalismo da leitura, mais nenhuma fuga da materialidade dos signos para o espírito, nenhum avanço lesto e fortuito da soletração à interpretação.»
Noutro nível de dissecação, à laia de resumo final da própria Autora, ela ressalta três atitudes interpretativas que apontam para um gradual estreitamento da leitura, da tríade texto–leitor–voz à díade texto–leitor e à unidade do texto: a hodegética, a hermenêutica e a desconstrução.
Sob a hodegética, distanciam-se leitura e compreensão, assim como se separam texto e voz, constituindo o primeiro um simulacro fixo da segunda, necessitando-se assim de um guia – o hodegeta – para indicar o caminho na floresta dos signos. No Concílio de Trento os humanistas voltam todavia a unir o que Platão tinha dividido: a voz torna-se o interior da escrita, a vox viva de um leitor autónomo e solitário que vem animar a littera mortua. Aplica-se aqui um «modelo mediotécnico de reativação» que estabelece a hermenêutica da voz interior e a sua reanimação como cura para o estranhamento da escrita, firmando para os séculos posteriores a dupla estrutura do signo. Derrida, por sua vez, marca com a desconstrução um terceiro quadro interpretativo no qual o significado não pode ignorar o medium – a opacidade torna-se uma qualidade textual e o seu ensinamento, diz Assmann, é o da ilegibilidade. Estranhamente, tudo parece acontecer ao nível do texto, desmistificado e sem véu, local de chegada sem destino: «não há no processo da leitura nenhum salto do fundo das letras materiais para o significado imaterial».
Assmann consegue um vasto mapa de discussões sobre a linguagem e cristaliza as posições extremas. Acaba contudo por submetê-las a um filtro recorrente em algumas abordagens da teoria literária: a arqueologia. Este formato, tal como nos é apresentado, busca a totalização e a reformulação da história através da justaposição positiva e tenta a releitura através de uma revalidação retrospetiva à luz dos tipos de receção atuais. No entanto, por maior que seja a multiplicidade dos impulsos, não se escapa da duplicidade do signo.
Os últimos capítulos percecionam pontos fulcrais da discussão do estado da arte, mas a Autora poderia ter aproveitado a sua perspicácia para construir uma reflexão sobre os caminhos que trilhamos agora, independentemente do grau de atolamento no labirinto. Apesar de sempre pedagógica e instrutiva, grande parte do livro ronda a ‘revisão da matéria dada’. Conclui a Autora que «este labirinto não tem nenhuma saída. Ficamos presos nos textos, circundados pela escrita e ocupados com vestígios de leitura».
© 2016 Tiago Schwäbl.
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