Publicação em Acesso Aberto ou Não, Eis a Questão.
Sandra Bettencourt
CLP | Universidade de Coimbra
Bolseira da FCT
Open Access and the Humanities: Contexts, Controversies and the Future (http://ebooks.cambridge.org/ebook.jsf?bid=CBO9781316161012, em acesso aberto) é um livro urgente. O estudo de Martin Paul Eve, codiretor da Open Library of Humanities, surge num momento de disseminação de práticas e políticas de publicação em acesso aberto no universo académico, possíveis devido às tecnologias digitais e plataformas em linha, que passaram a ser um dos palcos principais da comunicação científica. Este é um movimento que teve início em 2002 com a Budapest Open Access Initiative, seguida pela Bethesda Statement on Open Access Publishing (2003) e pela Berlin Declaration on Open Access to Knowledge in the Sciences and Humanities (2003).
No entanto, a progressiva generalização da divulgação de investigação livre de restrições de acesso e, nalguns casos, de direitos, não está isenta de equívocos, quer da parte de apoiantes, quer da parte de opositores. É, precisamente, com o intuito de esclarecer os processos e características da publicação em Open Access (OA) e de compreender as diferentes posições face a estas novas possibilidades de acesso e divulgação do trabalho de investigação científica que Eve desenvolve o seu trabalho. Como o título indica, este não é um livro de defesa ou de ataque ao sistema de publicação em acesso aberto e centra-se, pertinentemente, no contexto das Humanidades, área em que se verifica um crescimento mais lento da adoção do Open Access. Uma das razões para esta situação é apontada no Prefácio, por Peter Suber, e relaciona-se com o facto de o financiamento público para a investigação nas Humanidades ser muito inferior ao das Ciências, de tal forma que Suber caracteriza o panorama da seguinte forma: “Call this a dry climate for the humanities” (ix).
Peter Suber (diretor do Harvard Office for Scholarly Communication e do Harvard Open Access Project) é autor da obra seminal Open Access (2012), cuja análise concisa do OA pode ser considerada um dos pontos de partida do livro de Eve. Deste modo, Martin Paul Eve concentra-se nos aspetos mais problemáticos do sistema de acesso aberto porque, como afirma, “it is worth highlighting the fact that open access is a deeply politicised issue” (6), com implicações económicas, culturais e administrativas complexas. Esta abordagem em profundidade não deixa de ser suportada por uma contextualização e caracterização do sistema de acesso aberto no primeiro capítulo. Aqui, o leitor é apresentado às principais definições, contextos, convergências e divergências, salientando-se os fatores de adesão de muitos investigadores (minimização das desigualdades no acesso à produção científica financiada com fundos públicos; crescimento da disseminação dos resultados da investigação; maior impacto através do aumento de trabalhos citados) e de resistência (prejuízo da qualidade da investigação; opacidade em relação aos custos associados à publicação de trabalho científico e consequente prejuízo para as instituições com menores recursos; aproximação a um sistema de liberalização económica).
A restante estrutura da obra é constituída por mais quatro capítulos, cujos títulos prefiguram o caráter pragmático da análise de Eve: “Digital Economics” aborda as questões económicas e laborais, mais ou menos evidentes, em sistemas de acesso aberto; “Open Licensing” mapeia as diferentes possibilidades de licenciamento aberto (especialmente as licenças Creative Commons) e as suas implicações; “Monographs” é um capítulo dedicado à especificidade dos modos de publicação das monografias, um modelo bastante diferente do artigo, ensaio ou revista, e que apresenta maiores dificuldades de implementação do acesso aberto, o qual implica a adoção de modelos de negócio alternativos, que o autor explora através da análise de projetos inovadores; por fim, “Innovations” surge como o espaço de reflexão acerca das possibilidades de futuro para a publicação em acesso aberto, sublinhando dois aspetos cruciais: a avaliação por pares e o trabalho de edição. O que o autor propõe para um futuro sustentável e revigorado do modelo de publicação nas Humanidades é encarar as transformações tecnológicas, neste caso digitais, não como uma revolução em que se perde ou se ganha, mas como condições que permitem explorar e experimentar novas formas de validação do trabalho académico (propondo até a possibilidade de avaliação sem anonimato) sem que isso conduza a um abandono da qualidade e rigor da avaliação. Eve considera que este é um momento oportuno para a adoção de perspetivas diferentes e para uma reflexão crítica acerca do próprio trabalho académico: “The academy has built, over many years, systems for appraising the individual rather than acknowledging the way in which knowledge is collaboratively produced and, for the first time in many years, there may be an opening through which to address this. Open access does not require any changes to peer-review practices any more than the codex meant that readers had to abandon their palaeographic antecedents” (146). Open Access and the Humanities termina com a compilação de um glossário breve mas bastante útil que ajuda a compreender a terminologia que caracteriza as práticas de publicação digital em acesso aberto como, por exemplo, gold open access, gratis open access e green open access.
Apesar do esforço para tratar os diversos temas com igual densidade e nível de reflexão, o segundo e o terceiro capítulos distinguem-se pela profundidade da discussão. Não é de admirar, visto que versam sobre os tópicos e as questões mais problemáticos e que mais cisão geram nas Humanidades. “Digital Economics” é o capítulo mais arrojado e, por isso, o mais interessante do livro. Aqui encontramos uma reflexão informada acerca de um ponto importante da publicação académica que nem sempre é discutido, a do seu aspeto económico. Eve discute-o a partir de duas perspetivas que, apesar de distintas, se entrecruzam: o capital simbólico (prestígio) e o capital financeiro que envolvem a publicação académica e cujas dinâmicas são destabilizadas, até certo ponto, pelo acesso aberto. Um dos pontos mais importantes deste capítulo, e do livro em geral, é a advertência que Eve faz para o facto de que o trabalho de investigação e editorial, mesmo em regime de acesso aberto, implica custos e investimentos (financeiros e de recursos humanos) e que não deve deixar de ser um serviço remunerado, nem que se deve confundir capital simbólico com capital financeiro pois, como sublinha o autor: “While open access to research presents an object as free, this is not to say that academic publishing can ever be conceived of as a labour-free enterprise” (65). O argumento de Eve é que o Open Access reduz alguns desses custos mas não resgata os produtos (artigos, revistas, monografias) da sua ‘comodificação’ no seio do mercado académico. A proposta avançada, após análise de diversos modelos e contextos geográficos, é a de colaborações institucionais no suporte de custos e distribuição do trabalho de publicação, modelo, aliás, adotado por Eve na Open Library of Humanities.
O terceiro capítulo, “Open Licensing”, é outro momento de grande interesse para o leitor. O autor procede à contextualização histórica e à explicação das formas de atribuição de direitos de autor e de licenciamento aberto e livre. Estes são conceitos que têm estado no epicentro da discussão entre adeptos e opositores dos modelos de acesso aberto, em grande parte devido a um desconhecimento generalizado, ou incompreensão, das suas especificidades e implicações. Neste sentido, o trabalho do autor é de grande pertinência e utilidade: esclarecer e informar sobre as possibilidades e problemas que as licenças Creative Commons implicam, uma tarefa mais complexa do que à partida pode parecer: “The Creative Commons organisation provides seven mechanisms through which creators can allow others to use their work more permissively. (…) Beyond CC0, then, there are six, core, Creative Commons licenses, each with its own (at first) perplexing acronym: CC BY, CC BY-NC, CC BY-SA, CC BY-ND, CC BY-NC-SA and CC BY-NC-ND” (90). A incursão histórica e a desmistificação do que é o licenciamento aberto ajuda, ainda, a compreender que este tipo de licenciamento não exclui direitos autorais e que também não se deve confundir com o próprio acesso aberto, sendo possível publicar informação, por exemplo, em sistema de acesso aberto sem licenciamento aberto.
Open Access and the Humanities: Contexts, Controversies and the Future é um instrumento fundamental para compreender o estado atual da publicação académica, seja em regime de acesso aberto ou não. O livro é um exercício de produção de informação e de reflexão crítica: questiona a forma como se tem feito, como se faz e como se poderá fazer a publicação académica. Apesar da defesa dos modelos abertos, Eve não faz promessas de um futuro pacífico nem se escusa a apontar os inúmeros problemas, assim como virtudes, de novos modelos de publicação académicas, em particular nas Humanidades. Este não é um livro que nos fornece uma resposta categórica à questão que ‘vale um milhão’: sim ou não ao acesso aberto? Mas sintetiza a investigação feita a este respeito, acrescentando dados e informações que desvendam alguns mitos. A estratégia dialética adotada por Martin Paul Eve, de confronto constante entre diferentes realidades, possibilidades e riscos, é um excelente contributo na construção de um pensamento informado e consciente acerca do passado, presente e futuro da produção, publicação e distribuição da informação e do saber.
© 2016 Sandra Bettencourt.
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