Escrever sobre Cinema, Escrever no Cinema, Escrever o Cinema
Gustavo Ramos de Souza
Universidade Estadual de Londrina

 

“Escrever já era fazer cinema, porque, entre escrever e filmar, há uma diferença quantitativa, não qualitativa”, afirmou Jean-Luc Godard, em 1962, em entrevista publicada no número 138 dos Cahiers du Cinéma. A Escrita do Cinema: Ensaios, organizado por Clara Rowland e José Bértolo, ocupa-se, de certo modo, dessa “diferença quantitativa” (ou fenda) que existe entre a escrita e o cinema. O livro insere-se em certa tendência dos estudos comparatistas, voltada à materialidade dos media, atuando de modo a expandir a relação cinema-literatura para além da mera adaptação, e os vinte ensaios que o compõem apontam as mais variadas possibilidades de aproximação entre o cinema e a literatura ou, para ser mais preciso, entre o cinema e a escrita.

Surgida no âmbito do projeto de investigação Falso movimento – Estudos sobre Escrita e Cinema, do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, desenvolvido entre 2012 e 2016, sob coordenação de Clara Rowland, a revista em linha Falso Movimento tornou-se um espaço de debate privilegiado para as reflexões em torno do binômio escrita-cinema. O projeto rendeu duas publicações impressas: Falso Movimento: Ensaios sobre Escrita e Cinema, organizado por Clara Rowland e Tom Conley, e publicado pela editora Cotovia, em 2016, e este A Escrita do Cinema: Ensaios, publicado pela editora Documenta. Enquanto o primeiro trazia ensaios inéditos produzidos a partir do projeto, A Escrita do Cinema é uma versão revisada dos ensaios publicados ao longo dos três números da revista. Conforme diz Clara Rowland, na introdução do livro, a preocupação do projeto voltava-se aos mais diversos desdobramentos da relação entre palavra e imagem:

[...] considerando as formas de presença, encenação e inscrição da escrita no cinema, a partir da presença material e temática da escrita ou de figuras do literário nos filmes; as formas de escrita à volta do cinema (argumento, crítica, novelização), e os problemas teóricos que levantam; e a possibilidade de entender o próprio cinema como uma forma de escrita, quer na apropriação, por analogia, de formas, géneros e tropos literários (pense-se no filme-diário, ou no filme-carta), quer nas múltiplas derivações de uma figura como a caméra-stylo, imaginada por Alexandre Astruc (8).

Fora da estrutura serial da revista, o livro propõe “uma visão de conjunto das propostas e respostas que o projecto provocou e do modo como estas constroem um campo de análise multifacetado através de afinidades e problemas que se estabelecem transversalmente” (8-9). As quatro seções são respectivamente: “Antes e depois da imagem”, “Figuras 1: cinema e poesia”, “Figuras 2: materialidades da escrita no cinema” e “Literatura e cinema: refracções”.

O ensaio que abre a primeira seção, “Ler com Marie-Claire”, é uma homenagem a Marie-Claire Ropars-Wuilleumier, falecida em 2007, na qual Tom Conley comenta o legado da autora à teoria do cinema, bem como a recepção de sua obra. Conley chama a atenção para o modus operandi analítico de Ropars-Wuilleumier: trabalhar apenas um segmento do filme – a inscrição sígnica do próprio título – e, com isso, lançar luz sobre todos os elementos que o compõem. Ainda seguindo a noção norteadora desta primeira parte do livro, Adrian Martin, em “Corredores: descrição, redescrição e análise em três críticos de cinema exemplares”, dedica-se à atividade crítica de John Flaus, de Shigehiko Hasumi e de Frieda Grafe. Os três manteriam em comum, segundo Martin, o fato de que sua escrita visa “não apenas captar ‘o que está no ecrã’ mas, em última instância, dizer algo sobre o filme que este não diz – nem pode dizer – sobre si próprio” (44). Com efeito, o que se observa na escrita dos três autores elencados por Martin é uma tentativa de verter a imagem fílmica em palavra. E algo semelhante se passa nos textos de Manny Farber, que é objeto do terceiro ensaio, “Para lá do problema da linguagem: Manny Farber e a escrita de cinema como boa prática”, de Luís Mendonça. Farber, avesso à tradição hermenêutica, intencionaria uma crítica como criação – quase no sentido barthesiano –, além de lograr “pôr o movimento, o gesto, o olhar, o grão da imagem e do som no centro de sua actividade” (57) – em suma, a superfície, o concreto, o táctil, a própria materialidade do cinema. Para Mendonça, tal crítica é um “exercício pagão de vivificação do visto”, uma vez que é capaz de “fazer rever a obra na sua presença impossível num texto” (51). Os dois ensaios que fecham a primeira seção, “Vai e vem, uma figura ao centro do texto”, de Rita Benis, e “Afinidades electivas: A Repetição de Peter Handke e As Asas do Desejo de Wim Wenders”, de Joana Moura, diferentemente dos anteriores, voltam-se à tensão entre escrita e imagem nas obras de João César Monteiro e Wim Wenders, respectivamente, analisando como se dá a passagem do roteiro ao filme, constituindo o que Moura chama de “gesto que vai da palavra à imagem e da imagem à palavra” (96).

Os ensaios da segunda seção têm como objeto as relações entre cinema e poesia. Em “O poético como manifestação do figural cinematográfico”, Susana Nascimento Duarte articula o conceito de figural de Jean-François Lyotard à fotogenia de Jean Epstein a partir da leitura de Philippe Dubois da curta-metragem La tempestaire, de Epstein. O figural no filme seria aquilo que dá a “ver cinematograficamente o informe, o inapreensível, o instável, o imaterial” (110). Proposta diametralmente diferente, porém ainda pondo em relação poesia e cinema, é a de Pedro Eiras, que, em “Luiza Neto Jorge: do poema como grande plano”, analisa o poema “Filmagem” tendo em vista como o objeto erótico descrito no poema guarda semelhanças com o Real lacaniano evocado nos filmes pornográficos. Joana Matos Frias, em “O corpo em câmera lenta caindo (depois do filme fez um poema)”, analisa poemas da poeta brasileira Marília Garcia em que filmes são aludidos implícita e explicitamente. Contudo, mais que simples referências intertextuais, tais poemas, segundo Frias, obedeceriam ao mesmo regime estético dos filmes que os inspiraram. Cumpre assinalar que o risco de tal abordagem é recair no puro exercício ecfrástico ou na correspondência mecânica entre os expedientes cinematográficos e poéticos, e isso tanto da parte da poeta quanto da analista. Na mesma esteira dos ensaios anteriores, Emília Pinto de Almeida, em “Acusar a marca de uma passagem: breves notas suscitadas por Autografia: Um Retrato de Mário Cesariny”, debruça-se sobre o filme-documento de Miguel Gonçalves Mendes sobre Cesariny lançado em 2004. O filme seria uma espécie de testemunho do poeta que sai de cena, tornando o espectador um voyeur da intimidade desvelada de Cesariny na iminência de sua morte. Já “Reconstructing Whitman: para uma revisita de Manhatta de Paul Strand e Charles Sheeler, poema cinematográfico modernista”, de Mário Jorge Torres, mostra como os poemas de Walt Whitman servem de inspiração para a composição dos planos de Manhatta. Segundo Torres, a própria poesia de Whitman “encontra-se no centro deste labirinto intercultural, onde as artes e as linguagens mais diversas se interseccionam em constante recomposição”, sendo, por isso, “um poderoso poema cinematográfico” (167). Ou seja, Whitman aproximar-se-ia do cinema, e Strand e Sheeler teriam como matriz o texto literário. Todavia, tal como o ensaio de Frias, “Reconstructing Whitman” recai em analogias entre o registro cinematográfico e a poesia de Whitman, do tipo, um plano corresponderia a determinado verso, sem considerar as especificidades materiais e operativas de cada um dos media.

A terceira parte do livro, “Figuras 2: materialidades da escrita no cinema”, é, sem dúvida, a mais interessante dentre as quatro para se refletir sobre questões relacionadas aos modos de inscrição da palavra na imagem. Em três dos ensaios, a carta é o centro da discussão: “Cartas no ecrã: a representação da correspondência escrita em adaptações de Amor de Perdição”, de Hajnal Kiraly, “L’Histoire d’Adèle H.: apontamentos para uma cartografia da efabulação”, de Amândio Reis, e “Ser sombra entre sombras: inscrição e circuito no cinema de Pedro Costa”, de Clara Rowland. Se Kiraly busca paralelos em duas adaptações de Amor de Perdição e enfatiza a importância das correspondências para a diegese, e Reis desvela as potências do falso do filme de Truffaut e vislumbra uma análise quase psicanalítica da personagem, Rowland, por sua vez, busca por uma configuração do “literário sem literatura” e mostra como os filmes de Pedro Costa analisados confrontam a escrita com a materialidade do próprio cinema (207). Fernando Guerreiro propõe, em “Caligrafia e hieróglifo: a imagem do cinema em Herói, de Zhang Yimou”, uma análise sobre como os ideogramas chineses estão refletidos não apenas na superfície do filme de Yimou, mas em sua própria estrutura. Contudo, o excesso de notas de rodapé e o uso demasiado de parênteses tornam-se obstáculos à leitura e, ademais, ressente-se de uma conclusão que esclareça as hipóteses aventadas. Finalmente, Maria Filomena Molder, em “Estudo de caso: Joris Ivens, Une Histoire de Vent (filmado entre 1984-1988, ele morre um ano depois)”, realiza um longo exercício ecfrástico do filme de Joris Ivens muito próximo da decupagem.

Por fim, a seção que encerra o livro, “Literatura e cinema: refracções”, estrutura-se de maneira assaz interessante, porquanto o primeiro ensaio, “Adaptações, refracções e obstruções: as profecias de André Bazin”, de Timothy Corrigan, é uma espécie de farol teórico a iluminar os outros quatro ensaios da seção. A partir de André Bazin, Corrigan demonstra que o campo das adaptações evoluiu e complexificou-se junto ao desenvolvimento do próprio cinema, porquanto as adaptações têm “reformulado, distorcido, concentrado, aumentado e reposicionado os textos literários enquanto testes autoconscientes ao material e aos limites sociais dos próprios textos e, concomitantemente, aos filmes em si mesmos” (265). É seguindo tal imperativo que Rosa Maria Martelo, em “Livros, filmes, metalepses”, observa como a metalepse da literatura é transposta ao cinema, ao passo que “Realidades escritas: Borges e Cronenberg”, de José Bértolo, busca parentesco entre os ensaios filosófico-literários que constituem a obra de Jorge Luis Borges e o modo como David Cronenberg levanta as mesmas questões formuladas por Borges em eXistenZ. Não se trata, portanto, de adaptação stricto sensu, mas sim de tematizar os limites entre ficção e realidade por meio de media diversos. Já Sonia Micelli, em “Escrita e narração em Horas Más e O Veneno da Madrugada”, mostra como o filme de Ruy Guerra é fiel ao romance de García Márquez na medida em que o trai, isto é, ao atualizar as questões do romance à especificidade do cinema. O último ensaio do livro, “‘Todos os dragões das nossas vidas’: elementos da estética rilkiana em diversas obras fílmicas de Werner Herzog”, de Guillaume Bourgois, tal como o ensaio de Bértolo, é uma interessante proposta de análise da obra herzoguiana, a despeito da arbitrariedade da aproximação. Isso porque parte das célebres cartas de Rilke enviadas ao jovem poeta Franz Kappus e tenta, a partir daí, formular uma estética rilkiana aplicando-a depois aos filmes de Herzog. De fato, tanto faz que seja Herzog ou qualquer outro cineasta a ser visto à luz de Rilke, assim como qualquer outro poeta poderia vir a propósito para se refletir sobre a obra herzoguiana. Em todo caso, não obstante a arbitrariedade da comparação, o ensaio permite repensar os horizontes das interações entre cinema e literatura para além da adaptação. 

Ainda que pese certa irregularidade dos ensaios que o compõem, A escrita do cinema: ensaios vem a dar continuidade a uma nova onda dos estudos comparatistas entre cinema e literatura/escrita que visa, mais do que investigar o fenômeno das adaptações, compreender a relação entre os dois media a partir do estudo de suas materialidades e das mais diversas formas de interação entre eles, o que Clara Rowland desenvolveu durante o projeto Falso movimento. Uma vez que se trata de ensaios já publicados em linha e de maneira serial, o fato de terem sido agora organizados no suporte impresso evoca inclusive a questão central do livro: a inscrição da palavra escrita no filme, e do filme na palavra escrita. Mas tal processo de remediação já é abordado ao longo dos ensaios e, se nem sempre as soluções são satisfatórias, o simples fato de se colocar a questão da escrita do/no cinema é digno de atenção.