Da Necessidade de Movimentos nos Estudos Fílmicos
Bruno Fontes
CLP | Universidade de Coimbra
Bolseiro da FCT
Pensar a evolução dos estudos fílmicos redunda inevitavelmente numa identificação da sua ansiedade da influência. Se as teorias clássicas buscavam a especificidade do cinema enquanto forma artística, o estruturalismo estabeleceu-o como (mais) uma combinação específica de códigos de semiose, ao passo que as cultural theories investiram nas suas “funções ideológicas” ou nas possibilidades da relação entre filme e espectador. Importa mencionar ainda os estudos comparatistas (do tipo “cinema e…”), que, conscientes de que o cinema, pela sua própria natureza, requer uma análise plurissignificativa, convocam contributos das mais variadas teorias, como se pode verificar pelas diferentes abordagens presentes na antologia Post-Theory: Reconstruting Film Studies (David Bordwell e Noel Carroll, 1996).
Falso Movimento: Ensaios sobre Escrita e Cinema assume esta proposta, pretendendo, no entanto, outras movimentações. Na sua introdução, a organizadora Clara Rowland refere que o título escolhido resulta de Falsche Bewegung (Falso Movimento, 1975), o filme de Wim Wenders acerca de um conflito entre a escrita e as imagens. Acrescenta, em todo o caso, que esta alusão procura não tanto a relação direta com a literatura pelo seu valor de adaptação (note-se que o filme adapta Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe), que neste contexto seria um movimento em falso, mas mais por “descrever a ilusão do movimento do cinema (…) e o movimento do sentido da escrita” (12). É percetível, portanto, a rejeição da dicotomia entre os dois campos consagrados dos adaptation studies, transferindo o debate para a heterogeneidade dos meios de representação, da sua materialidade e da sua reflexividade, focalizado antes nas ideias de cinema e de escrita a partir dos seus momentos de encontro, sobreposição, choque ou refração. Tom Conley, também responsável pela organização, complementa Rowland notando que a escrita no cinema “pode ser imaginada como um ecrã em si mesma” (16), encobrindo, até, o que parece estar a ser narrado, já que a escrita no filme por vezes “desfaz” o que seria a força do sentido. Sem se oporem a uma abordagem comparatista, os organizadores declaram que estes ensaios “procuram pôr em prática o que grande parte da crítica de cinema preferia não fazer: (…) não se desligar das virtudes sedutoras da representação; não considerar de que modo os filmes se traem, ou são sintomas daquilo que negam; não questionar a natureza da ‘comunicação’” (15). Estamos, por isso, em face de uma abordagem inovadora que aposta nas interferências e sobreposições entre os dois meios e que abarca a reflexão sobre o cinema nesse quadro mais amplo, o das discussões sobre meios e formas de expressão.
O volume divide-se em três partes: a primeira, “Inscrições: a escrita no cinema”, inclui cinco textos que observam as formas de presença, encenação e inscrição da escrita no cinema a partir da sua presença material e temática (ou seja, a “escrita no cinema”); a segunda parte, “Formas: o cinema como escrita”, contém seis ensaios que recorrem “à figura híbrida, imaginada por Astruc, de uma caméra-stylo” (14), inquirindo a possibilidade de se pensar o cinema como sendo uma forma de escrita (ou seja, “a escrita fílmica”); já o terceiro grupo de ensaios, “Transportes: outros cinemas”, explora as possibilidades da relação intermedial entre o cinema e a poesia, as artes plásticas e o teatro.
Tendo em conta a sua proposta, é pertinente que “Aprender a escrever no cinema: Jean Renoir, François Truffaut, Satyajit Ray”, de Clara Rowland, seja o ensaio inaugurador de Falso Movimento. A autora aborda um conjunto de filmes onde a escrita se apresenta “mais como duplo dissonante do que como espelho” (43), dando destaque a Les Quatre Cents Coups (Os Quatrocentos Golpes, 1959) e a L’Enfant Sauvage (O Menino Selvagem, 1970), ambos de François Truffaut. Estes, por representarem a infância como “estado que não domina a escrita” (42), expõem o seu funcionamento e apresentam-na como “excesso” e não como transparência, suscitando uma interrogação do ponto de vista figural ou material. Deste modo é proposto que, através da escrita, o cinema encara a sua resistência ao discurso, por um lado, e a sua materialidade e ontologia, por outro.
É visível, nas movimentações pelas questões do medium e da materialidade (uma constante nos vários ensaios), que estamos perante uma súmula programática das restantes abordagens da recolha. E é neste seguimento que surgem aqueles que, com este, são os ensaios mais conseguidos da primeira parte: “A palavra é uma imagem: Manoel de Oliveira e João César Monteiro”, de Rita Benis, e “Escrever devagar a morte em “Non” ou a Vã Glória de Mandar, de Manoel de Oliveira”, de João Ribeirete.
No primeiro, a autora nota que o cinema de Oliveira enfatiza a presença da palavra, sendo por isso “igual à imagem” (63). Isto concretiza-se na forma como as suas estratégias de representação subvertem o naturalismo, desde logo no nível mimético dos atores, reduzido a “gestos mínimos” que quebram “a cadência hipnótica da ficção” (66). Desse modo, a atenção recai no elemento verbal, transformado numa matéria que “aponta, em silêncio, o ilimitado, uma coisa bruta” (64) que induz profundidade na superfície da tela. Ainda que Benis saliente a importância do texto na imagem (por exemplo os intertítulos), que constituem, enquanto acrescento físico, um elemento de intrusão na ficção, sublinha especialmente o que Conley designa por “cenofonia” (19) onde a leitura de palavras vistas (ou não) acentua o seu aspeto material. Para tal, convoca Branca de Neve (2000), de Monteiro, que regressa ao princípio da recitação e assume uma prevalência dos elementos poéticos do texto. Portanto, a palavra é um elemento de rutura no filme, que chama ainda a atenção para a sua natureza escrita.
Ribeirete, por seu lado, começa por mostrar como Oliveira cita o seu filme de 1990 ao (re)citar um verso de Camões em O Velho do Restelo (2014), propondo um exercício de reescrita desse texto. Associando este aspeto com a forma como o protagonista de “Non” apropria um discurso alheio, a citação de texto escrito é apresentada como terreno de afirmação autoral para o realizador. Esta questão, relacionada com a imagem do fólio de Os Lusíadas afundando-se no mar, concretiza a ideia de que qualquer texto sofre uma transformação profunda quando assimilado pelo cinema, mas também que Oliveira o encara enquanto uma realidade passível de ser filmada na sua objetividade material, como se comprova pela sua assinatura caligráfica no genérico (um evidente gesto autoral) e pelo abandonar da caneta no final, indicando o fim do discurso fílmico. Estas transgressões na representação dos diferentes media geram, como refere Ágnes Pethő, uma porosidade bidirecional da imagem em movimento, tanto para o que percebemos como “realidade” como para a própria medialidade refletida na intermedialização da imagem, que apresenta a caneta como um desdobramento da câmara de filmar e introduz, assim, uma imagem de escrita fílmica - ou seja, o tema proposto pela segunda parte, numa demonstração do quanto se torna produtiva, e até mesmo necessária, uma visão perspetivada de ambos.
Existem, em todo o caso, contribuições com menor pertinência na primeira parte, como a de Marc Cerisuelo, “Filme, fantasia, fantasmagorias, fantasmas: os “4Fs” e a projeção, ou um novo eixo na relação literatura-cinema”, onde mesmo que se conclua que “não há entre (…) a literatura e o cinema (…) grandes diferenças de natureza, nem mesmo de grau, mas sim de procedimento” (39), não se penetra, de facto, no terreno da relação entre a escrita e o cinema. É possível encontrar gestos conformes na segunda parte, embora com movimentos distintos: por um lado, temos ensaios como o de Conley (“O filme-acontecimento: de Bazin a Deleuze”, sobre a forma como o plano-sequência dialoga com a montagem para exibir “acontecimentos” no cinema), que pouco incidem na escrita, ficando até a sensação de que esta é lateral na abordagem; temos também exemplos como “Yes, Monsieur Demy: a autobiografia de um cineasta à beira da morte, escrita em filme por interposto olhar”, de Mário Jorge Torres, que apesar de incluírem contributos teóricos importantes (neste caso a autorreflexividade e a intertextualidade), carecem de investimento formal na problemática da escrita fílmica; e temos ainda casos como “A totalidade no fragmento: autobiografia e rizoma no último filme de Paulo Rocha”, onde Filipa Rosário, aludindo a Pethő, refere que desafiar a noção de transparência fratura o espaço e o tempo fílmicos ao mesmo tempo que conduz a um reconhecimento do(s) meio(s).
Esta questão invoca a que é apresentada no momento mais acutilante desta parte: “Como um seixo na praia”: outra forma de escrever (O Horla)”, de Amândio Reis. O artigo defende que o filme de Jean-Daniel Pollet, num movimento equiparável à literatura, produz a sua própria forma de fazer sentido, estando “dotado da mesma importância e das mesmas possibilida-des (…), mas não seu suplente” (128). Pretendendo realizar um filme gráfico a partir do conto de Maupassant, Pollet estabelece uma paridade entre o alfabeto e as imagens servindo-se de um gravador “para escrever, ou antes, inscrever, uma reinterpretação da mesma narrativa num novo medium” (130), pois a voz de Laurent Terzieff, lendo as suas palavras, escreve-as no campo da imagem. Sendo transformado em banda sonora, o texto torna-se no correspondente de um livro, ainda que desprovido da estabilização material que o registo escrito pressupõe. Reis conclui que a realização cinematográfica é uma forma de materialização, dado que Terzieff encarna e performatiza um texto legível, demonstrando que a escrita fílmica é sempre um processo que convoca diferentes media.
A questão medial remete para a terceira parte da coletânea, que aposta em “deslocações e transferências entre tropos e técnicas que permitem pensar o modo como o cinema se pode escrever, também, fora de si” (14). Assim, em “Uma espécie de cinema das palavras (relações de intermedialidade em Cobra, de Herberto Helder)”, Rosa Maria Martelo analisa as referências ao cinema nesta obra, que configuram “um modo de ver” produtor de “poemas que pretendem ser outra coisa” (221). A autora encontra nesta poesia “uma espécie de cinema das palavras”, onde estas “transformar-se-iam em imagens em movimento” (idem) por via de referências intermediais de tematização, evocação ou mimetização do cinema e das suas técnicas, nomeadamente a montagem. Porém, se é exequível abordar esta obra através desta figura, fica a sensação de que foi procurada uma forma demasiado estreita para encontrar uma contiguidade entre duas formas de arte (e dois media) que, em rigor, não é tão linear.
O ensaio seguinte, “The Mill and the Cross, de Lech Majewski: écfrase, tableau vivant e/ou discurso meta-crítico?”, de Mário Avelar, remete novamente o tema da escrita no cinema para segundo plano, ao referi-la somente para afirmar que, tal como a pintura, é um elemento que ao mesmo tempo integra e é estranho ao que se mostra. Por esse motivo, o contributo mais atraente desta terceira parte é o de Francisco Frazão, “Dirigir o público: desvios do campo-contracampo nos dispositivos do teatro contemporâneo”. Ao expor como certas práticas teatrais (por exemplo a da companhia Cão Solteiro) substituem os procedimentos tradicionais da mise en scène por uma organização sistemática que os transforma numa “espécie de geringonça, ao mesmo tempo conceito e máquina que se põe a funcionar” (249), convoca-se uma relação com o cinema do dispositivo, um outro conceito importante para analisar a presença da heterogeneidade material e medial na imagem fílmica.
No cômputo geral, este conjunto de textos explora uma necessidade de movimentos nos estudos fílmicos, desde logo por examinar um elemento do cinema que é ao mesmo tempo transparente e opaco, e, talvez não surpreendentemente, poucas vezes considerado pelos mesmos: a escrita. Por isso, mas também por incluir contributos advindos de áreas distintas da teoria e por abandonar a “dicotomia” modelar dos adaptation studies convocando antes as questões mediais e da materialidade, Falso Movimento apresenta uma inovação raramente verificada em antologias atuais. O facto de existir algum desequilíbrio entre os ensaios é apenas sintoma da amplitude de possibilidades que esta análise permite, e um prenúncio da necessidade de novos subsídios para a mesma, que esperamos ver surgir em breve. Afinal, “a escrita no cinema (…) [é] um crivo onde a sensação e a cognição são filtradas no ato de ver e ler” (16), suscitando, assim, práticas críticas e operações interpretativas bastante fecundas.
© 2017 Bruno Fontes.
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