Um Episódio Piloto para a Nova Temporada dos Estudos de Serialidade
Ian Ezerin
CLP | Universidade de Coimbra
Bolseiro da FCT

 

No domínio da criação de projetos de entretenimento serializados, um episódio piloto serve para testar o potencial de uma proposta que, devido à sua provável longa duração, requer uma considerável cautela por parte dos investidores, tanto financeiros como criativos. Da qualidade do episódio piloto e da sua subsequente apreciação pelo público depende se um dado projeto é ‘to be continued…’, ou não. De modo alegórico, a coletânea Serialization in Popular Culture (2014), compilada por Rob Allen e Thijs van den Berg, pode ser vista como um episódio piloto para testar o potencial de uma nova etapa (em artes e humanidades) dos estudos sobre a serialização.

O volume, incluído na série Routledge Research in Cultural and Media Studies, apresenta um conjunto de doze artigos que exemplificam diversos pontos de partida e diferentes linhas de análise da serialidade na cultura popular dos últimos três séculos. A repartição dos textos em quatro grupos – “Victorian Serials”, “Serialization on Screen”, “Serialization in Comic Books and Graphic Novels” e “Digital Serialization” – permite identificar o traço que distingue esta coletânea das publicações anteriores, isto é, a abordagem da serialização como um fenómeno transmedial. Além disso, a ordenação das secções sugere uma linha transhistórica que progride das origens analógicas da serialidade, através dos “media de transição”, até as suas recentes manifestações no presente digital.

Apesar da autonomia dos ensaios, consegue-se identificar uma justaposição temática que contribui para uma transição fluida entre os capítulos e as secções, o que facilita a consulta do volume na íntegra. A sequência parte de um ensaio sobre os desafios metodológicos no estudo da serialidade; passa pelos artigos focados na importância das noções de interrupção, continuidade, completude e incompletude; atravessa os textos que problematizam as questões da representação dos géneros; e teorizam sobre a transmedialidade e temporalidade das características formais das obras seriadas; focam-se nos efeitos psicológicos da serialização; e chegam a abordar as materialidades específicas da ecologia digital que condicionam os processos composicionais de projetos serializados.

No capítulo inicial – “The Unruliness of Serials in the Nineteenth Century (and in the Digital Age)” – David Turner analisa alguns desafios metodológicos dos estudos à volta das publicações periódicas da época Vitoriana, em particular no contexto dos recentes desenvolvimentos tecnológicos e, portanto, da crescente digitalização dos arquivos das respetivas publicações. Num certo sentido, o ensaio de Turner traça um fio conector entre a tradição e inovação que continuará a manifestar-se ao longo do volume e que caracteriza toda a coletânea como um elemento no contínuo dos Seriality Studies.

Os dois artigos que completam o grupo “Victorian Serials” abordam a noção de interrupção (disruption), em dois contextos distintos: ficção (romances) e não ficção (guia de gestão doméstica). No primeiro caso, Rob Allen (não confundir com Robert Clyde Allen, o editor dos livros Speaking of Soap Operas (1985) e Soap Operas around the World (1992)) mostra como os diferentes tipos de interrupções na publicação de romances resultavam dos processos industriais que orientavam o negócio editorial daquela época. No segundo caso, Maria Damkjaer analisa a relação entre a temporalidade formada pelas circunstâncias materiais da publicação seriada e a representação do tempo doméstico em Beeton’s Book of Household Management (1859-61).

A qualidade dos ensaios do primeiro grupo reflete um bom nível, que se manterá ao longo de todo o volume. Além disso, as referências bibliográficas incluem alguns títulos – como, por exemplo, Imagined Communities (1983), de Benedict Andersson – que, efetivamente, já se tornaram fundamentais no domínio dos Seriality Studies, portanto a sua consulta pode ser útil para um aspirante a tornar-se perito na área.

A especial atenção à noção de interrupção transita para o ensaio “The Logic of the Line Segment: Continuity and Discontinuity in the Serial-Queen Melodrama”, de Shane Denson (o único participante não europeu da coletânea), o que garante uma transição para o grupo de textos relacionados com a serialização em media que envolvem o dispositivo do ecrã. Denson trata de interrelacionar os padrões seriais, em particular o mecanismo de cliffhanger continuity – definido pelo autor como “a form of interrupted, punctuated and hence discontinuous continuity” (73) –, com as idiossincrasias do medium fílmico e com as representações de género em serial-queen melodrama, isto é, séries cinematográficas das primeiras décadas do século XX, focadas nas aventuras protagonizadas por mulheres. Importante neste capítulo é a centralidade da autorreflexividade, inerente ao formato serial, que contribui para promover o medium que serializa. Conforme o argumento de Denson, no caso de serial-queen melodrama, este atributo evidenciava as diferenças nas representações de New Woman em medium fílmico e, portanto, marcava uma “cultural and medial discontinuity” (75) em relação aos media impresso e teatral.

O tema da representação dos géneros é prolongado até ao capítulo “‘Is It True Blondes Have More Fun?’: Mad Men and the Mechanics of Serialization”, no qual Joyce Goggin procura mostrar como a série de televisão Mad Men “exploits the history and mechanisms of serialization to engage viewers in the narrativization of unpleasant feminist issues” (88). À semelhança de Goggin, os dois textos que completam a secção “Serialization on Screen” também se baseiam na análise da serialização televisiva contemporânea. Os seus autores – Dan Hassler-Forest e Sean O’Sullivan – exploram as características transmediais da serialidade, que se evidenciam em contextos da chamada “convergence culture” e de adaptações intermediais. Enquanto Hassler-Forest analisa as estratégias de distribuição transmedial de múltiplas versões paralelas do mundo diegético da franchise The Walking Dead, O’Sullivan apresenta “a comprehensive reading” das versões televisivas de Scenes from a Marriage (1973) e Fanny and Alexander (1982), de Ingmar Bergman, que deram origem aos filmes homónimos. “In these two series”, diz O’Sullivan, “Bergman demonstrates just how varied and dynamic the serial television can be – how attentive to the formal possibilities of its dimensions and how imaginative in its incorporation of the entire spectrum of aesthetic experience” (119). As questões da autoria e do contexto cultural são fulcrais em ambos os estudos. Enquanto o primeiro mostra como a serialidade pode ser estudada a partir dos produtos da cultura popular de autoria múltipla, o segundo exemplifica um estudo da obra de um autor – Ingmar Bergman – que é amplamente reconhecido como um cineasta da ‘cultura erudita’.

A secção “Serialization on Screen” é seguida pela parte mais curta da coletânea, dedicada à serialização em comics e romances gráficos. Porém, é aqui que surgem as abordagens mais divergentes dos restantes artigos do volume. Assim, em “Serialization and Displacement in Graphic Narrative”, Jason Dittmer sugere que a serialidade em comics, além de se revelar tradicionalmente através dos intervalos entre as edições, pode, ainda, ser encontrada ao nível da página e definida como “the fragmentation of space” (138). A este nível, o autor distingue e exemplifica três tipos de serialidades – “seriality of image”, “seriality between images” e “serility between texts” – através dos quais podem ser configuradas múltiplas temporalidades. “Seriality in comics, then, can be understood as time being rendered visible as space” (138), conclui Dittmer.

Noutro texto do grupo, Angela Szczepaniak, num tom bastante informal, oferece umas considerações, muito subjetivas, acerca da série Eightball (1989-2004), de Daniel Clowes. Ao insistir no carater inovador da construção narrativa de Clowes, a autora procura contestar a conceção das séries (avançada por Umberto Eco) como produtos baseados exclusivamente na lógica de produção industrial e que, ao contrário das ‘obras abertas’, não produzem um tipo de leitor inteligente, mas antes um leitor ingénuo.

Em suma, os artigos que precedem a última parte do livro apresentam várias abordagens inovadoras, inclusive no que se refere à consideração das ferramentas digitais. Todavia a proveniência pré-digital dos seus objetos de estudo parece assombrar a evidência da nova etapa dos Seriality Studies. Por isso, os textos reunidos na parte final da coletânea despertam a maior curiosidade, devido à novidade da matéria analisada.

“Digital Serialization” começa com o trabalho “The Sense of an Ending: The Computer Game Fallout 3 as a Serial Fiction”, de Alistair Brown, que se empenha, com base nas considerações teóricas de Frank Kermode sobre os desfechos na ficção, encontrar semelhanças entre a experienciação dos momentos de suspense e de gratificação final na leitura de romances serializados do século XIX e no gameplay do videojogo Fallout 3. Esta comparação entre o novo e o antigo também está no centro do ensaio seguinte, em que Erinç Salor, numa abordagem de arqueologia dos media, analisa o site Wikipedia como a mais recente etapa na evolução das enciclopédias que constitui “an entirely serial model of knowledge production and consumption” (181).

O último capítulo – “The Serialization Game: Computer Hardware and the Serial Production of Video Games” – é o mais exemplar do grupo, uma vez que trata exclusivamente dos aspetos tecnológicos (a que Matthew Kirschenbaum chamaria ‘materialidade forense’) da serialidade em videojogos digitais, e, grosso modo, representa um estudo de caso da serialidade nascida em meio digital. O seu autor, Thijs van den Berg, apresenta uma revisão crítica da evolução do hardware computacional e da relação deste com os ritmos da serialização dos videojogos digitais. Van den Berg defende que as séries de videojogos são condicionadas pela tendência entre os fabricantes dos chips de computador de aumentar constantemente a densidade dos circuitos. Por um lado, os produtores de videojogos recebem cada vez melhores recursos gráficos, mas, por outro lado, a própria indústria de hardware necessita da produção e transmissão serial de videojogos para assegurar a lógica, também serial, da inovação tecnológica.

Em síntese, ao olhar para o panorama dos ensaios reunidos na coletânea Serialization in Popular Culture, é possível concluir que, no seu mais recente ressurgimento, os Seriality Studies caracterizam-se pela constante ampliação da variedade de matérias analisadas e dos métodos de estudo. Enquanto, por um lado, há um contínuo nas linhas de pesquisa relacionadas com a composição, distribuição, consumo e receção de projetos serializados, por outro lado, os estudos tornam-se cada vez mais pormenorizados ao focarem-se em todo o tipo de padrões, processos, atividades ou efeitos que assentam na lógica serial.

Serialization in Popular Culture representa um dos primeiros resultados do mais recente esforço na área dos estudos sobre a serialização, que passa a dispor deste livro publicado por uma editora de renome. Se considerar a coletânea como um episódio piloto projetado para testar o potencial desta nova temporada, julgo possível admitir que, pese embora as peculiaridades de alguns contributos, o livro justifica a continuação do trabalho na área e, portanto, a ‘serialização’ dos estudos de carater transmedial e transhistórico, com ligação à tradição, mas com ênfase nas particularidades emergentes da afirmação do meio digital.