Falar, Respirar, Fotocopiar: Margens que Não Estão pelos Ajustes
Bruno Ministro
CLP | Universidade de Coimbra
Bolseiro da FCT

 

One is left with the impression that, like talking or breathing, xerography was just something people were doing all the time, out of necessity and convenience. For this reason, it wasn’t something anyone spent much time thinking or writing about or documenting in any formal manner.
Kate Eichhorn, Adjusted Margin, p. 91.

Tal como a epígrafe sugere, Adjusted Margin indaga sobre a invisibilidade medial, concebido o lugar da fotocopiadora como meramente instrumental, quer se reporte ao escritório, ao centro de cópias mais próximo, à criação e divulgação de formas artísticas independentes e subculturais, ou aos meios de comunicação a que o ativismo recorre. É precisamente esta suposta transparência do meio que Kate Eichhorn se propõe a analisar no seu livro, tornando-a opaca no processo de estudo de um grupo particular de atores sociais e artefactos culturais. Ajustar as margens é, na máquina de fotocopiar, um procedimento técnico-estético comum. Este ajuste marca também presença no livro de Eichhorn, de forma metafórica, na construção de perspetivas negociadas para entender os movimentos em apreço.

Adjusted Margin estabelece uma ligação, em vários pontos, com o anterior livro de Kate Eichhorn, The Archival Turn in Feminism (2013). No livro aqui recenseado, a autora investiga o lugar da fotocópia, recorrendo ao termo “xerografia”, defendendo a fotocopiadora como meio e problematizando a ontologia da fotocópia. Para esse efeito, a autora convoca e coloca em debate diversas posições, desde as considerações de McLuhan aquando do advento deste meio, até aos mais recentes estudos de Lisa Gitelman, entre outros.

Numa altura em que os denominados tactical media ganham terreno nos estudos e práticas relacionados com a esfera digital, a autora, que, em rigor, não refere este termo, traça um retrato da fotocopiadora como instrumento estratégico na arte e ativismo dos anos 80 e 90. Isto sem esquecer, num movimento de permanente equilíbrio, as tecnologias de reprodução anteriores – o mimeógrafo é um dos exemplos mais citados – bem como, numa outra esfera, os movimentos sociais recentes – com destaque para o Occupy.

Adjusted Margin termina com um réquiem pelas máquinas de fotocopiar depositadas no Deutsches Technikmuseum, em Berlim. Provenientes da coleção de Klaus Urbons, relevante artista de copy art e arte postal que em tempos fundou o agora extinto Museum für Fotokopie, as fotocopiadoras doadas permanecem em depósito, sem catalogação e abertamente consideradas desinteressantes para figurar no espaço expositivo do museu alemão. Tecnologia massificada a partir dos anos 60 e sobejamente usada em contextos diversos durante as décadas de 1970 a 1990, como Kate Eichhorn historiciza, o novo milénio trouxe o fim da máquina de fotocopiar tal como antes a conhecíamos. Com a massificação do computador o recurso à fotocopiadora conhece um acentuado declínio, sendo esta última parcialmente substituída por aquela tecnologia emergente, instrumento capaz de reproduzir, armazenar e colocar informação em circulação com inúmeras vantagens funcionais sobre a fotocopiadora. Mais recentemente, as máquinas de fotocopiar passam a ser digitais, constituindo uma tecnologia em tudo diferente, embora o nome seja mantido.

No prefácio a Adjusted Margin, Eichhorn assume que este livro é uma elegia à máquina de fotocopiar (xi), na medida em que o seu objetivo é traçar um retrato social do uso desta máquina ao longo da segunda metade do século XX. Ainda que o livro esboce, no primeiro capítulo, uma perspetiva panorâmica que abarca a invenção e massificação da fotocopiadora – promovendo uma importante reflexão sobre a chegada desta máquina ao mundo do trabalho, com as suas substantivas alterações laborais e económicas –, o livro centra-se na análise do impacto do uso da fotocopiadora nos movimentos artísticos e sociais do último quartel do século.

Centrada em território norte-americano, num primeiro momento a reflexão de Kate Eichhorn desenvolve-se em torno de práticas e espaços marginais, como os centros de cópias [copy shops] e suas zonas de concentração urbanas [copy districts] (cap. 2). A autora demonstra como a representação da fotocopiadora está presente no imaginário coletivo, nomeadamente através do lugar simbólico da fotocópia na cadeia de artefactos culturais, ora visto como ameaça à indústria editorial, ora desprovida de valor comercial e estético (44). Igualmente reveladora é a reflexão sobre a imagem dos centros de reprodução no imaginário coletivo entendidos como “zonas abjetas” (72) por serem recorrentemente espaços de cópia ilegal de textos, ainda que toleráveis porque necessários ao funcionamento de instituições como as universidades – a autora recorre à sua experiência pessoal, convocando o exemplo da U of T Copy, situada nas imediações da Universidade de Toronto. Eichhorn reflete igualmente sobre o facto de estes espaços serem considerados uma suposta ameaça à segurança nacional, vistos como lugares de falsificação de documentos de imigrantes ilegais ou envolvendo-se diretamente em campanhas terroristas, como bem exemplifica o mediático caso da Best Copy, alvo de investigação criminal no pós-11 de setembro.

Num contexto radicalmente diferente, o poder simbólico da fotocópia tem um lugar privilegiado na cena artística e punk formada pelos públicos e contra-públicos da downtown nova-iorquina dos anos 70 (cap. 3), bem como no ativismo dos anos 80 e 90 contra a SIDA e pela defesa dos direitos queer (cap. 4). É a estes casos que a autora dedica uma investigação de maior detalhe.

O argumento central de Adjusted Margin é o de que a fotocopiadora desempenhou um papel fulcral nos movimentos contraculturais norte-americanos dos anos 70 em diante. Kate Eichhorn vê a máquina de fotocopiar, uma vez desviada da sua função original no mundo do trabalho, como um meio alternativo, independente e avesso ao controlo. Isto na medida em que a ubiquidade da fotocopiadora permite que os artefactos produzidos deixem de ter de passar pelo crivo da censura ou escrutínio dos meios tradicionais de produção e distribuição de informação. Em sintonia, a fotocopiadora é, na perspetiva da autora, um meio criativo, promovendo linguagens de rutura que, de outra forma, poderiam não ter espaço – “opening new possibilities for the dissemination of art and writing while simultaneously laying the groundwork for the development of new communities of practice and resistance” (7).

Ao longo do livro, Eichhorn dá exemplos de diversos grupos marginais, incluindo aqueles que operam fora do contexto do ativismo e engajamento político em sentido estrito. Deste modo, é fornecido um contributo importante para a construção de um retrato diversificado da apropriação desviante da fotocopiadora num leque cultural abrangente, o qual inclui o xeroxlore (35-36), a copy art (44-52) e as publicações small press (52-55; 66-67), entre outros. Com igual interesse, a autora dá a conhecer, no último capítulo, o lugar da máquina de fotocopiar na atual era pós-xerográfica, como lhe chama, num interessante comentário sobre a digitalidade, o qual vem enriquecer a reflexão no campo emergente dos estudos comparados dos média.

A estrutura argumentativa de Adjusted Margin desenvolve-se segundo a hipótese de que a fotocopiadora não só possibilita a produção e reprodução de materiais, como potencia a sua circulação e re-reprodução, imprimindo uma estética própria aos artefactos e aos espaços que os recebem. Um exemplo disso, central no terceiro capítulo do livro, é a downtown de Manhattan (89-94), com a sua cena artística alternativa nos anos 70, povoada por cartazes que concedem às fachadas dos edifícios uma marca distintiva. Na perspetiva da autora, isto fez com que, nesse período, a xerografia tenha desempenhado um papel importante no surgimento de públicos heterógenos (83), contribuindo para uma mudança na semiótica da cidade (82) e despoletando o debate legal sobre as normas de afixação no espaço público (95-104).

Nos anos 90, o desenvolvimento da discussão em torno da legalidade da afixação de rua conduziu a uma acentuada reconfiguração do espaço público, transformando-o naquilo que Eichhorn nomeia como “cidade higienizada” (95). Tal não aconteceu sem, contudo, argumenta a autora, ser criado lugar para uma desterritorialização das cenas e subculturas, processo no qual zines e outras publicações DIY tiveram um papel muito importante. Com efeito, esta nova realidade produz alterações definidoras das sociabilidades daquele período, tendo em conta que a rede de agentes negoceia de forma permanente uma definição das suas próprias relações – “Over time, zines radically changed the conditions under which people could participate in scenes and subcultures and arguably changed understanding of what defined scenes and subcultures along the way.” (106). Tal constatação leva Eichhorn a apontar para uma descentralização contínua, exposta pela autora nos seguintes termos: “[i]f they were once assumed to be rooted in a particular place, by the 1990s the idea that subcultures might be defined by a fixed location no longer held.” (ibidem). É relevante ter em linha de conta que se trata, no caso, de um processo de abertura a uma constelação desterritorializada de produtores culturais, muitas vezes tendo como público um reduzido número de outros produtores de publicações similares, os quais, de outro modo, não teriam espaço nos meios estandardizados de produção e circulação de textos.

No quarto capítulo, a autora analisa a função da fotocopiadora, nos anos 80 e 90, em casos como o ativismo contra a SIDA e a defesa dos direitos queer. Fortemente ligados entre si, estes movimentos são aqui considerados paradigmáticos do impacto da fotocopiadora nos movimentos sociais durante o período em apreço. É através de exemplos de grupos como o ACT UP e Gran Fury, nomeadamente por meio da análise de campanhas como “Silence = Death” (1987), “Read My Lips” e “Xeroxed Money” (1989), que a autora consolida o argumento de que a fotocopiadora assumiu um papel de enorme relevância ao facilitar o acesso à informação, reprodução e distribuição de materiais, bem como auxiliando a organização comunitária e a concretização de ações diretas pelos grupos mencionados. Já no início dos anos 90, grupos como Queer Nation, Lesbian Avengers e Fierce Pussy servem, de igual forma, como exemplo de agentes daquilo que a autora denomina como “guerrilla xeroxing” (128).

Do ponto de vista de Eichhorn, para além de ser uma máquina de propaganda (116-128), a fotocopiadora foi, para estes grupos, uma poderosa ferramenta administrativa e de divulgação científica (128-136). Por um lado, a fotocopiadora serviu como elemento coadjuvante na organização interna das comunidades em causa, no recrutamento de novos membros e documentação da história do grupo. Por outro, revelou-se essencial para a divulgação e comentário de notícias e artigos científicos relacionados com o sector da saúde num contexto alternativo aos meios de comunicação de massas. Para Eichhorn, a fotocopiadora funcionou, assim, como uma tecnologia multiusos, presente em várias frentes, desde a produção à disseminação de materiais, passando pela organização interna dos grupos: “While copy machines were deployed to produce pamphlets, flyers, posters, and banners of all kinds […] they were also used to recopy, produce, and disseminate an arsenal of scientific and administrative documents, from scientific reports to insurance forms.” (120)

Embora o livro de Kate Eichhorn abra com uma elegia à máquina de fotocopiar e termine com um réquiem, Adjusted Margin contém uma análise crítica, sustentada e não essencialista, tendo a autora o cuidado de sublinhar que a fotocopiadora não foi responsável pela resistência contracultural no período em causa, mas antes um elemento que ajudou a definir e disseminar as cenas artísticas e movimentos sociais em apreço. O estudo de Eichhorn constitui-se, assim, como um contributo fundamental para pensar a história social da fotocopiadora na segunda metade do século XX. O foco em plano de pormenor num duplo estudo de caso do recurso à fotocopiadora por grupos artísticos e ativistas norte-americanos no último quartel do mesmo século revela-se um importante aporte para entender a sociedade contemporânea através das suas margens, no sentido que lhe é dado no livro. Fá-lo sem descurar uma reflexão de índole mais técnica, promovendo, de facto, nesse movimento de permanente equilíbrio, um estudo que comprova a convergência da dimensão social e medial da fotocopiadora enquanto relevante instrumento de produção cultural.