Humanities in Progress: A Potencialidade do Digital
Marie Claire De Mattia
CLP | Universidade de Coimbra
Bolseira da FCT
O interesse do mundo académico pelas humanidades digitais está a adquirir dimensões cada vez mais relevantes. Publicações como Debates in the Digital Humanities e Understanding Digital Humanities (ambas de 2012), Defining Digital Humanities: A Reader (2013), The Emergence of the Digital Humanities (2014) e New Companion to Digital Humanities (2016) dão corpo à necessidade de construção de ferramentas analíticas e críticas para descrever a emergência das humanidades digitais, atribuindo-lhes uma função, um significado e uma posição nitidamente definidos dentro do sistema de produção de conhecimento atual.
Nesta ótica, Between Humanities and the Digital propõe-se não propriamente como estudo strictu sensu das humanidades digitais, mas sim da potencialidade nelas inscrita, na vitalidade renovadora, até revolucionária (pelo menos na visão de N. Katherine Hayles) que as caracteriza. Como explicitado pelos editores na introdução à obra, “este não é um volume sobre as humanidades digitais convencionalmente interpretadas; muito pelo contrário, quer comprometer-se com a interface entre as Humanidades e o Digital” (p. 9, trad. minha). A originalidade deste livro reside mesmo no facto de editores e autores manterem como enfoque a liminalidade desta área do conhecimento, de partirem dos interstícios e dos detalhes da dimensão de in-betweenness das humanidades digitais.
A este propósito, é preciso assinalar que o título é perfeitamente coerente com o pano de fundo teórico mantido ao longo da argumentação. De facto, a temática geral que liga todos os capítulos é mesmo a dimensão de inter- ou de trans- que caracteriza a aplicação de novas tecnologias aos saberes “tradicionais”. E, coerentemente, as palavras recorrentes são, entre outras, “interface”, “interactividade”, “impacto transformativo”, “transmedialidade”,… – quer dizer, para os autores é de fundamental importância sublinhar a dimensão intermédia e inter-media do digital, como também a emergente necessidade de uma cooperação proactiva entre áreas diferentes, entre saberes e conhecimentos de todo tipo, mesmo que (até especialmente quando) pertencentes a disciplinas distantes. É por isso que já desde as primeiras páginas os coordenadores da obra declaram que ambicionam oferecer novas perspectivas, “estimular um pensamento visionário e transformador” (p. 7, trad. minha): é somente graças à colaboração de diferentes âmbitos que se pode assistir à germinação de novos conteúdos e pensamentos.
Por muito distantes que estejam entre si, os conceitos abordados nos vários capítulos mantêm uma consistência e uma articulação assinaláveis, ao ponto que é possível para o leitor assistir ao desenvolvimento de uma rica argumentação. O mérito reside na tripartição dos artigos: depois de uma introdução geral, útil para percebermos seja o contexto em que esta obra quer localizar-se, seja as intenções e as modalidades declaradas pelos editores, Between the Digital and the Humanities compõe-se por trinta e cinco capítulos individuais de autores diferentes, organizados em três partes distintas. Cada uma destas partes é precedida por uma introdução menor que visa por sua vez a definir o argumento principal e que resume brevemente os conteúdos dos capítulos a seguir.
Poderíamos comparar o andamento do manual a uma pirâmide, cuja sólida base é a definição daquilo que as humanidades digitais são hoje em dia, fornecendo assim a moldura institucional e o contraste dialógico entre tradição e renovação, entre passadismo e tendências futuras no seio da academia. Nesta primeira secção, de matriz relativamente ilustrativa e explicativa, os autores questionam os sucessos técnicos das humanidades digitais, pondo-os em relação com o halo de desconfiança para com a multimodalidade por parte dos académicos tradicionalistas (J. Sterne, cap. 1), ou com a perspetiva institucional no caso da reestruturação da educação e do trabalho intelectual consequentes à dita “virada digital” (A. Liu & W. G. Thomas III, cap. 2; N. Shah, cap. 7; C. N. Davidson, cap. 10). Também Todd Presner (cap. 4) fala de reestruturação quando analisa a mudança das metodologias de aproximação ao digital: se dantes as humanidades apresentavam metodologias sistemáticas e racionais, assentes na crítica interpretativa e até desconstrutiva, agora a digitalização propõe uma epistemologia materialista, baseada no design, no fazer e no construir; qual pode ser, portanto, a prática crítica das humanidades digitais?
As tecnologias apresentam-se por um lado como um labirinto misterioso, por outro lado como explicitação de um poder logístico e organizativo significativo (C. Mukerji, cap. 3) cuja capacidade de influenciar o público é de particular relevo. Não por acaso alguns artigos tratam o tema da identidade: a entrevista de Henry Jenkins a Sherry Turkle (cap. 5) fala da redefinição do humanista, interrogando como se pode determinar um estudante de humanidades num cenário tecnologicamente desenvolvido; Johanna Drucker (cap. 6) analisa a contratação da identidade, que depois de ter sido considerada prevalentemente individual passa agora a ser o resultado das interconexões das vozes singulares – à medida que o texto se torna um objecto iterativo e provisório, fruto de agregações e de (re)mediações algorítmicas. Mas qual é o compromisso ideológico das humanidades digitais? Ian Bogost (cap. 9) responde à pergunta expressando o desejo de que as humanidades digitais sejam mais ativas e comprometidas quer mundialmente, ultrapassando os limites geográficos e territoriais, quer secularmente, num movimento de reaproximação à pessoa. R. Siemens e J. Sayers (cap. 11) encorajam as novas tecnologias a comprometerem-se com as humanidades para obterem resultados não apenas culturais, mas também ideológicos e de justiça social. E, como a compreensão do passado é crítica para o desenvolvimento futuro do campo, a pergunta mais consequente desta primeira secção é feita por David Theo Goldberg (cap. 12) que interroga os seus colegas sobre “que tipo de humanistas escolhemos ser durante e para os nossos tempos” (p. 171, trad. minha), procurando uma forma e um modelo novos nas pesquisas humanísticas contemporâneas.
A segunda secção tenta responder a estas interrogações teóricas fornecendo um vasto leque de exemplos práticos para demostrar a abrangência das tecnologias na tentativa de renovar as humanidades. Aqui realiza-se com maior intensidade aquela intenção declarada na introdução geral de manter um olhar o mais interdisciplinar possível: cada área quer demostrar os efeitos (possíveis ou concretos) que a adaptação das tecnologias a outros saberes pode ter, e portanto as consequências positivas da recíproca integração de diversas disciplinas. Para muitos autores, a variação ao nível da materialidade que decorre da digitalização é um assunto relevante: o livro como memória objetiva – correlato objetivo material insubstituível (nobilitado por um ulterior valor sensorial) de uma dimensão passada que corre o risco de ser perdida (W. A. Trettien, cap.13) – em contraste com a remediação dos textos sagrados do cristianismo e a mudança na disseminação das obras (T. Hutchings, cap. 21), e paralelamente a revisão crítica da forma em que a história pode ser lida e estudada (J. Guldi, cap. 19; G. Heng & M. Widner, cap. 20). Pelo contrário, há domínios em que a tecnologia e a digitalização não contribuem senão a uma mais estrita interconexão com o objeto de estudo – como na arqueologia, em que se verifica um envolvimento multissensorial e multimodal a partir da experiência estética do espectador por intermédio das instalações digitais (C. Lindhé, cap. 14) ou uma revisão radical do conceito de interação espacial graças à arqueologia virtual (M. Forte, cap. 22). A tecnologia permitiu desenhar novas geografias e ocupar novos espaços – por outras palavras, forneceu o material para formular novos contextos a serem povoados por narrativas novas e inovadoras (L. Hjorth, cap. 17). Patenteia-se o papel desempenhado pela rutura e pela negação na abertura de novos sentidos e na criação de práticas e finalidades “outras” (J. Ng, cap. 16).
Depois de ter fornecido as bases teóricas para explicar o conceito “humanidades digitais” (portanto mantendo uma posição mais tradicionalista) e de ter ilustrado pragmaticamente as mais variadas aplicações concretas das tecnologias no presente académico, o cume da pirâmide surge na terceira e última parte. Essa desliga-se da atmosfera pragmática para voltar a um contexto mais especulativo e virado para o futuro, pois analisa as condições da produção cultural, e as expectativas relativas à remodelação das infraestruturas e da renovação das modalidades educativas. Por isso, lemos a proposta de Patrick Svensson (cap. 24) de um humanistiscópio, ou seja de um instrumento que reencaminha quer a sensibilidade crítica do humanista, quer as ideias correntes e a imaginação criativa, com o objetivo de atingir aquela completude dada pela coparticipação de objetos e sítios materiais e media proposta por Lisa Parks (cap. 25). A digitalização dos conhecimentos afeta inúmeros aspetos da mentalidade e das práticas académicas: as infraestruturas e as plataformas de que os humanistas precisam, o relacionamento com a herança histórico-cultural, os processos de produção e de difusão do saber por parte dos estudiosos, que depois da intersecção com as tecnologias parecem-se mais com cientistas do que com a imagem tradicionalmente aceite do humanista renascentista (M. Kirschenbaum, cap. 26; B. Nowviskie, cap. 27; A. E. Earhart, cap. 28; K. Fitzpatrick, cap. 33). Também o aspeto e a forma de um sítio fulcral como a biblioteca sofrem uma variação radical: de facto, ela acaba por ser deslocalizada para um não-lugar virtual – acontecimento esse que determina a alteração das modalidades de transmissão e da formação do sentido crítico seja dos académicos, seja de um público alargado (M. Dahlström, cap. 34; T. McPherson, cap. 35). Para além das plataformas, muda também a maneira de estudar, e assim se verifica a transformação das pedagogias; porém, na perspetiva de Elizabeth Losh (cap. 31), é possível aspirar à realização de pedagogias antes utópicas que visam uma inclusão igualitária e democrática – visando portanto não uma revolução das técnicas de ensino e de aprendizagem, mas sim a renovação e o rejuvenescimento do sistema.
Este tópico constitui precisamente o ponto de partida da provocação do trigésimo sexto e último capítulo da obra, da autoria de N. Katherine Hayles, que vale como conclusão aberta do caminho começado quinhentas páginas atrás. Aí, a autora não apenas se queixa das posições assumidas correntemente pelos atuais humanistas, mas também os desafia a libertarem-se do ceticismo e do desdém quase aristocrático para se atualizarem e alcançar a mentalidade renovada do ser humano atual, crescentemente conectado às tecnologias e ao digital.
O facto de a obra ser fruto de um trabalho coletivo não é de modo nenhum um defeito ou uma fraqueza; muito pelo contrário, a multivocalidade permite de conduzir o olhar do leitor a uma perspetiva multifocal. A fusão dos pontos de vista singulares é favorecida pela linguagem usada, que é sempre clara e homogénea, permitindo assim que a totalidade do livro seja percetível e fruível por um público diversificado, desde os iniciados até aos especialistas. Simples e linear é também a estética do objeto livro que apresenta uma composição gráfica desprovida de outros elementos, a não ser algumas fotografias para pôr em relevo os assuntos tratados – o resultado é um design claro, imediato e intuitivo sob todos os pontos de vista.
Resumindo, temos nas mãos um livro que merece ser lido em virtude da sua abordagem inclusiva e extensiva, graças à qual recebemos um ótimo input para lermos de forma diferente aquilo que já conhecemos e para melhor avaliarmos as novas estratégias e formas de conhecimento que povoam o mundo tecnologizado atual. Sobretudo, graças a ele percebemos finalmente que a tecnologia não é apenas o estímulo que está a favorecer o desenvolvimento de uma nova conceção de humanidades, mas sim uma aplicação técnica dotada de uma autonomia e de uma autoridade próprias, e que tais características devem ser reconhecidas criticamente.
© 2017 Marie Claire De Mattia.
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