Máquinas Ruidosas
Tiago Schwäbl
UNIVERSITY OF COIMBRA
Quem és tu que me lês? I am — assim (de)termina a playlist de Shane Butler —, em repeat nesta máquina que ora vira páginas ora gira discos. O momento em que Thomas Edison conseguiu reanimar a voz foi indiscutivelmente um dos grandes milagres da humanidade; no entanto, o Autor chama-nos! a atenção para outro, anterior, aquele em que a voz expressa sendo impressa: o texto (não existe linguagem sem matéria. (…) …e do mesmo modo que podemos dizer que estes [textos escritos] “falam”, podemos igualmente dizer que eles têm “vozes”: phoné-grafos no sentido pleno da palavra, p. 54 [traduções minhas]). Do ponto de vista de um classicista, torna-se mais fácil relativizar os engenhos: o jovem fonógrafo é apenas mais um passo (um melhoramento no texto, p. 122), um aperfeiçoamento do processo de registo e reprodução da voz, incluindo os ‘ruídos irreproduzíveis’ — agramatoi psophoi (p. 55)— que ‘redemoinham’ em seu torno. Mas tal não se aplica apenas aos sulcos do vinil; o aparelho de 1887 serve de prancha a partir da qual Shane Butler mergulha nos textos de Petrarca, Cícero, Ovídio, Donato, Homero… com a consciência sónica de que (o texto é um artefacto vocal não redutível à linguagem, p. 56) há um coro encapsulado nas palavras herdadas, que por sua vez aguardam por uma leitura aliterativa, pela ‘reivindicação fonográfica’ (p. 13) que não depende da eletricidade para exumar as vozes dos antigos. Aliás, o Autor aplica um contra-exemplo, desafiando um arqueólogo do futuro (p. 125) a comparar gravações da Tosca, de Puccini, desbravando os remanescentes da ‘expressão operática’ que lhe aparecem em ‘meio impresso’, lidando com as distorções e supressões temporais da tradição e da performance. Esta é, no fundo, a metáfora paliativa para a possível frustração do ensaísta atual: saber que a riqueza atual se perderá, com a noção do muito que já desapareceu.
Circulando pelas Noites Áticas (séc. II) de Aulo Gélio, Shane Butler interroga-se (p. 90): a revivificação advirá da recordação dos versos, da sua anotação, ou da sua leitura depois de lembrados? Memória, escrita e leitura formam o pórtico do oráculo (leia-se signo), cuja projeção (leia-se representação) dependerá daquilo que já se conhece (p. 99) — esta associação [entre texto e música], por outras palavras, é uma questão de convenção, e parece irradiar toda a arbitrariedade do signo linguístico (p. 100). O capítulo/ faixa 3 é dos mais vibrantes na sua entoação — uma amplificação do sentido de perda do próprio autor (p. 91) —, precisamente pelo desvio enveredado: um caso particular do texto, o da notação musical (não há como deduzir um significado (musical) de um significante (verbal), p. 100). Curiosamente, o capítulo simultaneamente mais musical e assíncrono em relação ao método dos restantes (debruçados no debruar dos versos antigos) tem o seu pico nos antípodas, à laia de espelho temporal — sem Eco, digamos assim, não pode haver Narciso (p. 61) —, no período clássico Anni Domini (1787, mais precisamente, ano da composição de Eine kleine Nachtmusik, por W.A. Mozart, embora a obra retratada no ensaio seja a ópera coetânea, Don Giovanni) com ligação aos degraus, não de Parnaso, mas de Led Zeppelin (1971, Stairway to Heaven), comprovando assim a possibilidade de dois tipos de escada para chegar (leia-se registar) a voz — a voz é aquilo que lança o som de encontro à linguagem, e vice-versa (p. 115). Texto, notação, gravação constituem os casulos prolixos (p. 100) dos quais emergirá a borboleta-effabilis (não-inefável) que esvoaça na brisa arbitrária das convenções; a nós, resta-nos o fóssil, ou o parque jurássico das reanimações performáticas.
Butler aplica-se na leitura milimétrica dos versos, atento nas suas traduções ao intervalo acústico mais diminuto (coma [κόμμα], em linguagem musical); contudo, não se trata aqui da leitura em voz alta dos eruditos da Alta Idade Média, apesar de se aflorar essa prática (pp.38, 64), mas da captura do que poderá ter sido na época o(s) modo(s) de perceção e suas vocalizações: seja música “das” palavras ou música prevista num certo tipo de texto, não há como descortinar, no leitor antigo, quanta música lá falta (p. 108). No fundo, Shane Butler tenta apreender a própria convenção, servindo-se do fonógrafo como muleta para a compreensão do natural estranhamento humano perante os média propriamente criados e para a aproximação ou partilha entre duas descobertas (máquinas) que afinal se revelam análogas: gravação e texto — ao passo que a música e a notação musical desde há muito permitiam a escrita de uma canção muito antes de ser cantada, a invenção de Edison não efetuou um milagre análogo e oposto, ou seja, “escrever a voz” sem gravar a canção (p. 123). As duas máquinas, pejadas de som, pressupõem a ativação por parte de um corpo que medeie dois tempos, enfim, de um leitor. Mantém-se todavia o estatuto de remediação, num circuito fechado de elementos — inscrição, linguagem, voz —, sem que se clarifique qual deles veicula qual matéria, diluindo-se as impressões e expressões nas fontes imaginadas (p. 130).
O título — The Ancient Phonograph — sintetiza essa convergência que, não obstante o léxico formal — capítulos/ faixas, corpus/ playlist, introdução/ liner notes, traduções-adaptações/ covers —, não mitiga, por um lado, a frustração de uma certa inaudibilidade factual, ou melhor, da comunicação unidirecional irreversível, não retroativa. Por outro, também não ameniza um certo travo a redundância acústica no destaque da sonoridade do texto, que, segundo o próprio Autor, é em si matéria vocal e que, ao fim ao cabo, sempre esteve presente (p. 26) no lugar onde sempre existiu tudo: o corpo humano. Em última análise, de todas as vozes possíveis (a maioria anónimas), acabamos sempre por ouvir a nossa (repetindo-se ad aeternum a cada leitura…) ou, por contraste, uma voz única (no caso do gravador) congelada numa dada frequência para todo o sempre (assinaturas aurais, p. 108).
No entanto, este livro de Shane Butler — na senda de Adriana Cavarero, Mladen Dolar ou Paul Zumthor (realce-se o interesse e perspicácia dos medievalistas na perceção das revoluções das tecnologias de inscrição e recuperação)—, já de si valoroso no estilo e aprazível na frescura, estava ganho à partida (sem esquecer a pergunta derrideana de ovo-ou-galinha de quem surgiu primeiro, se a oralidade ou a escrita, p. 35) com um magistral ovo de Colombo: o texto é um registo vocal, tal como o fonógrafo o foi ‘um pouco’ mais tarde.
E aqui vai (em itálico, a minha voz) — ao estilo de Butler — uma bonus track:uma das melhores recensões que encontrei sobre o assunto, a cargo de Gregory Whitehead (1993): If a voice like, then what? Ora escuta:
© 2018 Tiago Schwäbl.
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