O livro enquanto objeto, conteúdo, ideia e interface
Ana Sabino
UNIVERSIDADE DE COIMBRA | CLP, BOLSEIRA DE DOUTORAMENTO FCT
orcid: 0000-0002-6143-9426
The Book é um dos títulos da coleção The MIT Press Essential Knowledge Series, que se propõe sintetizar o essencial acerca de temas pertinentes na atualidade. Destina-se a um público geral, com o intuito de informar de maneira acessível e esclarecedora. Mas, como seria de esperar de uma editora universitária, revela uma problematização séria, não apenas superficial. Esta obra corresponde bem a essa intenção: o seu texto será fácil de entender mesmo para quem não esteja familiarizado com os estudos do livro, mas não deixa de ser um importante documento para quem estuda esse tema, não só, mas também, porque nos traz uma boa sistematização de vários aspetos diferentes, habitualmente tratados separadamente.
Percebemos isto quando olhamos para a sua estrutura. O texto é divido em quatro partes: trata-se, sucessivamente, do livro enquanto objeto, enquanto conteúdo, enquanto ideia e enquanto interface. À primeira vista, isto seria correspondente a uma divisão conceptual do livro. Mas ela corresponde também a uma divisão temporal. A hábil correspondência entre estes dois planos, o histórico e o conceptual, parece-me ser um dos pontos fortes e sem dúvida mais originais deste livro.
Em “The book as object”, a autora traça a história do livro enquanto objeto, desde os seus primórdios. Neste caso, isso significa abrir o escopo para a história da cultura de uma forma mais lata, e focar especificamente a maneira como a necessidade de fixar e fazer circular informação se foi materializando em vários objetos e formas de inscrição. A autora sublinha que a história do livro não começa com o advento do códice, e faz um inventário dos vários tipos de objetos portadores de conteúdo que o precederam, numa perspetiva global, sempre evitando a narrativa teleológica na qual uns substituiriam os outros consecutivamente.
“The book as content” começa a sua descrição aquando da Renascença, com o advento da impressão com tipos móveis. A autora argumenta que neste momento a percepção daquilo que é um livro se alterou, passando agora a ser visto como conteúdo: “The printing press thus changed the book by both facilitating its proliferation and separating the idea of the book from the object” (p. 76). Quando um livro passa a poder ser reproduzido mecanicamente, ele desvincula-se do objeto que o suporta; o livro passa a ser considerado o texto que o objeto contém, e a cópia do livro impresso não personifica o livro. Previamente, quando cada cópia era reproduzida manualmente, não existia a ideia de um livro fora daquela que era a instanciação material presente perante nós, e a própria noção de autoria era bastante distinta da que temos hoje. Neste momento, em que se separa o livro-texto do livro-objeto, surgem por exemplo as discussões em torno dos direitos de autor, que são direcionados para o texto que o objeto contém. Os livros digitais vêm ainda aprofundar esta separação, como será descrito na última secção.
A terceira parte, “The book as idea”, retoma a história do livro no momento em que ele começa a ser explorado como forma artística, e as suas possibilidades se tornam virtualmente infinitas. Paradoxalmente, é chamando a atenção para o livro enquanto objeto, nas suas possíveis variações, que o livro se torna uma ideia mais do que um objeto contentor. O livro enquanto ideia não precisa de ser encadernado: ele pode ser maior do que um adulto médio, ou pode destruir-se no momento em que se abre. Esta é a secção mais longa do texto, o que se deve a uma valorosa listagem e vívida descrição de vários livros de artista representativos de diferentes abordagens à ideia de livro. Após uma descrição mais detalhada de obras seminais para a definição do campo do livro de artista, como as obras de Ed Ruscha ou os escritos de Ulises Carrión, os exemplos descritos são agrupados segundo o tipo de abordagem à ideia de livro, ou pela maneira como o livro sai para fora de si mesmo, e se apropria de outro tipo de linguagens, como em “The book as ephemeral” ou “The book as cinematic space”.
Passamos então para a secção “The book as interface”, onde se trata de uma nova fase a nível histórico, que acompanha e responde a uma nova conceção do livro. Os livros eletrónicos vêm prosseguir a história do livro como interface com um pensamento, no sentido de tornar a ligação do conceito de livro com o objeto no qual o lemos ainda menos óbvia. A ideia mais comum, na qual um livro é equivalente a um códice, torna-se cada vez mais esfumada. O conceito de livro transporta-se para o eBook, como ficheiro de texto preservado num servidor remoto, mas também para a sua interface, o aparelho com o qual a ele acedemos: o livro eletrónico, enquanto ficheiro de texto, pode ser lido numa panóplia de interfaces diferentes, as quais a autora analisa.
Percorrendo todo o livro, e destacadas em “letras gordas” sobre fundo preto, estão várias tentativas de definição de livro, por vários autores, em vários contextos e sob várias perspetivas, tão diversas como a curta e enigmática “A book is a knot”, de Dieter Roth (p. 214), e a proposta de Katherine Hayles, que possivelmente terá influenciado a divisão conceptual deste livro: “We are not generally accustomed to think of the book as a material metaphor, but in fact it is an artifact whose physical properties and historical usages structure our interactions with it in ways obvious and subtle” (p. 204). Ou ainda outra, de Guglielmo Cavallo e Roger Chartier, que demonstra um ponto de partida fundamental para o programa em Materialidades da Literatura: “We should keep in mind that no text exists outside of the physical support that offers it for reading (or hearing) or outside of the circumstance in which it was read (or heard). Authors do not write books: they write texts that become written objects – manuscripts, inscriptions, print matter or, today, material in a computer file” (p. 29).
Este texto é ainda complementado por alguns paratextos de grande utilidade, cujo elevado rigor científico é condizente com a obra que os precede. Abre com uma cronologia de eventos que influenciaram a história do livro, como a data de criação da primeira biblioteca pública, em Roma (39 a.C.), das edições de Aldus Manutius (1501) ou da criação do arquivo digital Project Gutenberg (1971). Segue-se um glossário de termos técnicos e específicos dos estudos do livro (boustrophedon, colophon, intaglio, pugillares…), seguido das notas referentes ao texto, dedicadas exclusivamente às referências bibliográficas. Inclui ainda uma secção de “Further reading”, com sugestões bibliográficas adicionais, e de “Further writing”, onde a autora incita à prática de criação de livros, e direciona o leitor para instituições e eventos que promovem as artes e ofícios do livro.
A abrangência desta análise revela que o MIT fez uma escolha acertada ao encomendar a Amaranth Borsuk a escrita deste livro. Trata-se de uma excelente académica – lecciona na School of Interdisciplinary Arts and Sciences, na Universidade de Washington Bothell, onde dirige o mestrado emCreative Writing and Poetics –, mas também uma notável criadora de livros. Especificamente, de livros que brincam com o livro enquanto objeto, conteúdo, ideia e interface: Between Page and Screen, desenvolvido em conjunto com Brad Bouse, é uma das obras que mais eficazmente explora as especificidades do meio digital, em interação com o formato códice, e o seu mais recente projeto, Abra, descrito no website da autora como “an exploration and celebration of the potentials of the artist’s book in the 21st century”, recebeu uma bolsa Expanded Artists’ Books Grant atribuída pelo Center for Book and Paper Arts da Universidade de Columbia, Chicago. A sua motivação e a sua perspetiva particular fica, aliás, clara desde o texto introdutório: “As a poet, scholar and book artist working at the intersection of print and digital technology, I have long been fascinated by the book as a malleable medium for artistic inquiry and by writing technologies as spurs to authorship” (p. xii).
É de sublinhar a sua sensibilidade poética, presente no tom do texto e na abordagem aos temas, demonstrada por exemplo na página 125, onde descreve Un coup de dés jamais n’abolira le hasard de uma forma memorável: “the page is not a vessel, but an ocean; and the text, tossed on its waves, is a shipwreck in language that draws the reader’s eye across its shimmering surface”.
Gostaria ainda de fazer uma nota em relação a este livro enquanto objeto. O responsável pela coleção refere como objetivo o de produzir um conjunto de livros que sejam bem feitos também a este nível, quando os descreve como “accessible, concise, beautifully produced pocket-size books on topics of current interest”. Esse objetivo foi também conseguido: o papel é adequado, o texto está bem composto, o volume é agradável de manusear e de ler. Na capa, uma representação do próprio livro em mise-en-abyme recorda-nos a particularidade de se tratar de um livro sobre o livro; não o primeiro, não o último, mas um pertencente a uma linhagem, dentro da qual merece um lugar de destaque.
© 2019 Ana Sabino.
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