A figura incerta do antilivro
Rui Silva
UNIVERSIDADE DE COIMBRA | CLP, BOLSEIRO DE DOUTORAMENTO FCT
orcid: 0000-0002-4721-5733
O fim do livro tem sido utilizado pela produção livreira como um presságio vantajoso. Desde que foi apregoada a iminente extinção do livro e a sua substituição por um artefacto digital, foram tomadas todas as medidas necessárias para salvaguardar que não faltassem extensas reedições e reimpressões de clássicos e outros tantos livros que documentam e problematizam o seu iminente desaparecimento. Há que preservar a memória do livro antes que ele caia em esquecimento e é, portanto, normal que se combata o desaparecimento do códice exponenciando a sua produção para números nunca antes vistos. O livro Anti-Book: On the Art and Politics of Radical Publishing de Nicholas Thoburn pode enganar pelo título, mas felizmente não encerra nem um discurso predicativo sobre a iminente obsolescência do livro, nem mais um manifesto de ativismo medial. Enceta, isso sim, uma problematização do livro como objeto autorreflexivo (p. 1) e discute um possível fim: a perceção de um limite para o livro – questão que estará na génese do antilivro.
O primeiro capítulo, “One Manifest Less”, dedica-se quer a predicar o que é um antilivro, “um trabalho de escrita e edição que interroga criticamente a sua forma medial e que testa, problematiza e as leva ao limite da sua materialidade total” [1] (p. 1), quer a excluir formas equívocas de distinção, “Anti-Book não é um manifesto … uma forma textual usurpadora, apropriada das instituições do estado e da igreja onde servia para disseminar prescrições apoiadas pela força” (p. 26). Thoburn considera que a materialidade do antilivro é intrinsecamente política e que está assente num conceito-miragem que se revela essencial: o antilivro como uma forma de edição e escrita comunista, no sentido mais abstrato, ou menos qualificado do termo. Esta materialidade expressar-se-ia por uma consciência imanente no texto do suporte tecnológico que o medeia, a sua forma de inscrição – o que Katherine Hayles designa por tecnotexto e Rosalind Krauss por Self-deferring medium. Este texto que expressa uma consciência do seu medium – conceito que deve ser aferido não como uma especificidade tecnoconstrita mas como uma prática aberta associada a uma tecnologia – é uma característica partilhada com o livro de artista, embora adquira uma materialidade política no antilivro. O antilivro afasta-se da estetização do livro como forma – a bookishness – e do livro como objeto aurático.
A matriz política do antilivro, segundo Thoburn, assenta numa crítica bastante pertinente do capitalismo comunicativo, recorrendo a edições que se demarcaram pela sua materialidade, como o ubíquo livro vermelho de Mao Zedong ou o adstringente livro lixa de Asger Jorn e Guy Debord, sem deixar de procurar «alternativas críticas, aquelas que por norma estão localizadas no domínio do “pós-digital”, adjacentes aos media digitais» (p. 38). É neste sentido que a expressão da materialidade política no antilivro se identifica em três possibilidades, não exclusivas e conciliáveis entre si, que o autor desenvolve entre os capítulos dois e quatro: o livro como uma não-mercadoria, o livro-rizoma e a política do anonimato como prática criativa.
A negação da mercadoria no livro, a antimercadoria, é o tema que percorre o segundo capítulo, “Communist Objects and Small Press Pamphlets”, que abre com uma citação contundente de Aleksandr Rodchenko: “Os objetos que nos passam pelas mãos devem ser nossos semelhantes, camaradas” (p. 61). O autor propõe aplicar esta proposta ao antilivro através de uma afirmação da materialidade política do artefacto e da remoção da abstração sedutora que está impregnada na mercadoria. Deste modo, a principal ferramenta para transformar o livro numa antimercadoria seria a negação do seu fetichismo. Este processo, embora seja pouco exequível numa sociedade capitalista, é posto à prova por Nicholas Thoburn recorrendo: à teoria de objetos de utilidade comunal de Boris Arvatov em “Everyday Life and the Culture of the Thing”; à defesa do colecionismo de Walter Benjamin em The Arcades Project; e à demonização da atividade publicitária de Theodor Adorno em “Bibliographical Musings”. Se Arvatov propõe um desígnio não individualista para os artefactos, de modo a combater a alienação e relevar o coletivo, Benjamin defende que o desenvolvimento de uma relação afetiva com os livros, em conjunto com a organização de uma coleção, permite desagregar o fetichismo do objeto. Finalmente, Adorno declara que a publicidade deformou as qualidades intrínsecas dos livros banalizando-os como mercadorias. Qualquer um destes três argumentos é extremamente permeável ao seu contrário, atestando a dificuldade de extrair o fetichismo da mercadoria, como verifica Thoburn no final do capítulo: “foram precisamente as propriedades normativas da tecnologia de impressão que permitiram que o livro de Gutenberg desse o exemplo para a mercadoria moderna e se convertesse no primeiro objeto uniforme produzido em série” (p. 106). Todavia, terá faltado concluir que as três propostas debatidas têm a materialidade como ponto comum e que esta se constitui como a principal ferramenta para desmontar a abstração que sustenta o fetichismo da mercadoria.
O conceito de livro-rizoma, enunciado por Gilles Deleuze e Félix Guattari em A Thousand Plateaus: Capitalism and Schizophrenia, ainda não terá recebido, segundo Nicholas Thoburn, uma atenção crítica relevante, apesar de constituir o pensamento moderno mais desenvolvido e persuasivo sobre o livro. Neste sentido, o autor propõe justapor o livro-rizoma ao antilivro ressalvando que, embora aquele tenha sido conceptualmente aprofundado por Deleuze e Félix Guattari, permanece pouco elaborado nas formas concretas e materiais do livro e da edição (p. 111). O livro-rizoma é útil ao antilivro porque é acêntrico e não-hierárquico e porque exerce um contraste directo com o livro-raiz, o livro ordenado e sequencial que se desenvolve numa progressão linear na procura de uma “significação total” (p. 114) – uma entidade que se confina numa materialização entre a capa e a contracapa. A quebra da hierarquia e a organização acêntrica são propriedades instanciadas no antilivro rizomático, e não se manifestam apenas como um mero deslocamento espaciotemporal onde o centro e a linearidade seriam removidos para um local contíguo ou transformados numa progressão arrítmica.
O autor apresenta três exemplo maiores de possíveis livros-rizoma: os livros dos Futuristas Russos, um caso singular de “materialismo háptico” (p. 145) – edições em série com variações nos materiais, técnicas de impressão e no alceamento de cada unidade –, “uma interminável combinatória de fragmentos, um movimento recursivo de páginas montadas e remontadas como um movimento descontínuo do mais rizomático dos órgãos” (p. 145); os feitiços de Antonin Artaud, que tecnicamente não são um livro mas um conjunto de cartas enviadas pelo artista, conjurando feitiços através da mistura de pictografia e de texto, e que Nicholas Thoburn associa ao conceito de corpo sem órgãos de Deleuze e Guattari; e finalmente Mémoires, de Asger Jorn e Guy Debord, concebido como uma provocação aos outros livros (está encadernado em lixa) e um potlatch, uma oferenda faustosa que desafia o seu recetor a superá-la. Seria pertinente questionar se Mémoires não estaria melhor inserido como um exemplo de antimercadoria, uma vez que as suas propriedades rizomáticas resultam da crítica do capital e são aferidas pela sua materialidade. O exemplo avançado no capítulo quinto, a Mute Magazine, é porventura o que mais se aproxima do livro-rizoma, porque não está constrito a um formato ou a um medium e faz fluir a sua produção – seja impressa, seja digital (ou as duas) –, mediante o conteúdo e o contexto em causa.
O quarto capítulo, “What Matter Who’s Speaking? The Politics of Anonymous Authorship”, prossegue a crítica da função-autor, definida por Michel Foucault como um processo de individualização e de demarcação de propriedade aplicado a um discurso que se realiza a partir do século xviii. A função-autor opera como um sistema de produção de escassez (p. 170) que circunscreve uma ideia unificada de obra aplicada a uma entidade constrita, o autor. A obra institui-se como um espaço interior que se insere dentro de um espaço discursivo público de significação valorada. As diferentes obras e os seus autores em confronto entre si geram múltiplas diferenciações de valor. Contudo, a afirmação da função-autor não é apenas o resultado de um desejo aspiracional de asserção de uma autoria associado à financeirização do verbo, mas também uma consequência de uma necessidade institucional de responsabilização/criminalização do uso da palavra, a obrigatoriedade da presença da assinatura nos textos dos periódicos franceses do século xix, e da fixação de textos contra duplicações erróneas ou contrafações imprecisas.
O antilivro, como objeto crítico do capitalismo comunicativo, problematiza a função-autor recorrendo ao anonimato ou à autoria transindividual, o “singular plural” (p. 179). Para demonstrar o potencial criativo do anonimato, Nicholas Thoburn apresenta o caso de Luther Blissett, um autor em “nome coletivo” – uma “função enunciativa” – (p. 177), utilizado como uma entidade unificada, com direito a um retrato fabricado, embora fosse composto por uma comunidade de centenas de colaboradores ocasionais. Luther Blissett é um “múltiplo singular”, que não se limita ao resultado de uma enunciação associativa – um coletivo artístico agregado em torno de uma designação – e oferece um exemplo de um “anonimato construído ativamente” (p. 181). Luther Blissett teve uma atividade prolífica, criando histórias falsas e sucessivas partidas dentro do mundo da arte, culminante na edição de Q,um romance autorreflexivo sobre autoria e anonimato passado durante a Contrarreforma. Em 1999 dá-se o desaparecimento de Luther Blissett por intermédio de um harakiri simbólico, cometido pelos colaboradores mais regulares, e surge a outra entidade anónima coletiva com participantes definidos, Wu Ming, que reúne quatro dos autores de Q. Wu Ming é, de resto, o tema do sexto capítulo – “Unidentified Narrative Objects: Wu Ming’s Political Mythopoesis” – que, embora perca algum do fôlego inicial, não deixa de analisar o potencial estético-político do uso do culto da personalidade e do mito numa entidade coletiva anónima.
Os seis capítulos de Anti-Book estão extensamente documentados com múltiplas referências, um verdadeiro metalivro em potência, que se articulam de forma eficaz com os exemplos apresentados e demonstram um equilíbrio afortunado entre teoria e prática. Porém, apesar do potencial apresentado para a construção do conceito de antilivro, persiste uma certa dificuldade em alcançar uma definição constrita – compreensivamente, tendo em conta a complexidade do tema. Menos claro é o vínculo entre comunismo e antilivro, se pensarmos que as afinidades assinaladas não parecem exclusivas, antes sintomáticas de um mutualismo igualmente aplicável a outro modelo político. Não é evidente que o antilivro seja necessariamente um objeto comunista, no entanto, Nicholas Thoburn consegue demonstrar que o antilivro é um artefacto político que subsiste por si só.
Não sendo possível determinar uma definição do antilivro que não comporte outras tantas – a antimercadoria, o livro-rizoma, o anonimato como prática criativa – permanece a dúvida sobre a figura que melhor representa o antilivro em Anti-Book. Será um paradoxo? Um objeto que caminha para uma contradição permanente? Será uma hipérbole? Uma extrapolação excessiva sobre os limites do livro? Esta incerteza sobre a figura que melhor se adapta ao antilivro é um dos muitos benefícios que este livro traz para o seu leitor e o início de um longo debate.
NOTA
[1] As citações de Anti-Book: On the Art and Politics of Radical Publishing foram traduzidas da língua inglesa para a língua portuguesa com o objectivo de facilitar uma fluência argumentativa entre os dois discursos e são da responsabilidade do autor da recensão.
© 2019 Rui SIlva.
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