A interface como construção tecnológica e cultural

Gisele Noll

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
orcid: 0000-0001-7659-0156

 

O livro trata da relação entre arte e interface, partindo do pressuposto que as tecnologias contemporâneas (de mídia e de rede) devem ser discutidas como uma construção cultural, da mesma forma que a cultura na atualidade deve ser explorada em termos técnicos. Assim, a interface passa a ter grande relevância na produção de uma condição contemporânea, voltada ao fluxo de dados, captura de informações e vigilância constante.

Para tratar da estética da interface e sua relação com a cultura, os autores analisam práticas artísticas que dizem respeito a esta nova realidade, onde o desenvolvimento tecnológico altera as práticas culturais e cotidianas. Essa escolha se dá porque, historicamente, experimentações artísticas com computadores e software sempre foram consideradas inovadoras e, mesmo que não sejam criadas novas tecnologias a partir destes experimentos, há o empenho por parte destes artistas em demonstrar o valor cultural e estético das tecnologias.

Invisível e onipresente, a interface contemporânea está embarcada em objetos que se caracterizam por esconder trocas de informações com empresas de comunicação e informação, com a nuvem e com outros objetos, o que determina um novo paradigma de interface de serviços chamado metainterface, que desaparece no ambiente e nas práticas culturais cotidianas.

O ponto central da obra é a reivindicação de que, apesar de esconder a interface atrás de fluxos de informação em tempo real, na tentativa de fazê-la desaparecer, ela gradualmente ressurge: “Although the interface may seem to evade perception, and become global (everywhere) and generalized (in everything), it still holds textuality: there still is a metainterface to the displaced interface” (localização 319).  

Consequentemente, o conceito de metainterface apresenta três funções: a primeira é a descrição de um paradigma contemporâneo da interface, cuja especificidade é sua natureza onipresente e universalmente dispersa, que se transforma em interface para outras interfaces, conectada em uma rede global. A segunda está relacionada à indústria em volta da metainterface, que a apresenta como uma nova realidade de interação, mesmo que seus protocolos proponham a reconfiguração da produção diária, da distribuição e consumo cultural, renegociações do espaço urbano e mudanças relacionadas às infraestruturas materiais que também afetam a percepção de sentido em si. Já a terceira diz respeito à realidade produzida pela metainterface e como ela reconfigura uma série de domínios, desde a produção cultural aos espaços urbanos, assim como a percepção de um mundo globalizado.

A partir disso, os autores apresentam três tipos de simbolismo material ou tendências materiais relacionadas à metainterface: a capitalização semântica da linguagem, o controle territorial semântico e a virtualização das arquiteturas materiais da rede. Esses aspectos geram efeitos profundos na experiência da realidade, relacionadas com o nível estético da interface: “they are related at the level of the language and grammar of a new material textuality” (localização 349).

O livro aponta para a tendência de pensar a interface de serviços web como algo imaterial, contudo, é preciso lembrar que ela possui consequências materiais como, por exemplo, a poluição (com a emissão de dióxido de carbono). Essa poluição pode não ser sentida no ambiente em que o usuário abre o buscador do Google, ou o Facebook, mas ocorre em outro país, outro continente, onde a energia que mantém a nuvem e os computadores é adquirida. 

Tendo claro o que se caracteriza como metainterface, ponto de partida da análise proposta, os autores dividem a obra em cinco capítulos. O primeiro, “Interface Criticism: Why a Theory of the Interface?, aprofunda o conceito de metainterface a partir da interface. Já o segundo, “The Metainterface Industry: New Platforms for Culture, trata da automatização do processo de curadoria, além de como a computação se tornou cultural com a metainterface, caracterizando essa nova indústria. O terceiro capítulo, “The Urban Metainterface: Territorial Interfaces, explora o modo territorial da metainterface e como a semiotização do espaço é afetada pela nova indústria da metainterface, enquanto o quarto, “The Cloud Interface: Experiences of a Metainterface World”, aborda como a interface em nuvem interfere no senso de percepção do usuário. Por fim, o último capítulo da obra, “Interface Criticism by Design”, especula sobre o potencial da aplicação crítica em design de interface e como é possível refletir sobre as fissuras de produção no design de interface.

Ao longo do texto, os autores refletem sobre como a interface aparece a partir de uma perspectiva internalizada, que muda nossa concepção de mundo e a forma de experimentá-lo. Interfaces humano-computador estão relacionadas aos fluxos de sinais emitidos pelos usuários e, ao interagir com elas, pessoas se relacionam com outros computadores, redes e nuvem, com sistemas inteligentes e redes de dados. Estes dados são capturados e vendidos sem que os usuários se deem conta, ao usar um cartão de crédito ou débito, fazer uma compra na Amazon, buscar um tipo de informação específica ou utilizar um serviço de geolocalização. Essa onipresença da interface faz com que seja praticamente impossível evitar a interação com a rede de computadores hoje.

Ao pensar no sistema como um todo, os autores afirmam ser difícil imaginar alternativas para ele. Um sistema inteligente baseado em processos de machine learning, que prevê o que as pessoas querem. Ele não apenas analisa dados, faz previsões. Deste modo, interfaces inserem atores e ações nesse sistema inteligente em que os humanos não estão sempre conscientes de sua ação, “they inscribe the human in a system with a grammar where they are not always in control or conscious of writing but nevertheless can leave signs for human interpretation and critique” (localização 927).

No entanto, o livro reforça a ideia de que a crítica da interface pode ser feita nos níveis éticos, lógicos e estéticos, mas sua indústria também pode servir como oportunidade para artistas de software – o que traz problemas e desafios. Aparentemente as novas plataformas empoderaram o usuário e o produtor, contudo, “the new model for cultural production, distribution, and consumption that comes with the metainterface embeds technocratic protocols that disguise particular perspectives on culture” (localização 1254).

A metainterface é uma nova indústria cultural, muito diferente da indústria de massa. Esse novo sistema de produção afeta a linguagem, transformando o sistema de produção de leitura e escrita que, ao mesmo tempo que representa uma série de possibilidades, implica um novo regime de controle que afeta as atividades de linguagem comuns. Essa nova indústria interfere na forma como uma determinada cidade é experienciada e organizada. Uma boa nota em determinado aplicativo faz com que mais pessoas se reúnam e ocupem os espaços urbanos, o que altera a significação e o uso da cidade como um todo. No entanto, essas metainterfaces urbanas são como caixas pretas e, “the more the interface opens up the city and becomes adaptable to diversity, the more it needs to monitor the users and their milieu, and process these data” (localização 2458).

Esses dados ficam armazenados na nuvem e podem ser acessados pela internet através de qualquer dispositivo. A nuvem é a base para a indústria da metainterface, fundamentada na produção e no consumo cultural, ao mesmo tempo em que auxilia no processo de reorganização do espaço urbano e das práticas culturais. Ela traz um senso de abstração de dados e software. Não sabemos onde efetivamente nossos dados estão, pois eles estão “escondidos” nela. Como destacam os autores, «“The cloud” is a signifier for the computer networks of the metainterface industry” (localização 3516).

O termo foi popularizado em 1996 por Eric Schmidt, CEO da Google, para descrever estratégias usadas por empresas de tecnologias como Amazon, Yahoo! e eBay para manter seus serviços de dados em servidores. Tecnicamente, os autores explicam que a nuvem necessita de um banco de dados NoSQL, bancos de dados não relacionais, massivamente escalonáveis e que suportam atividades de trabalho mais extremas que bancos de dados relacionais (como o SQL). Isso significa que o armazenamento e o poder de processamento não estarão mais no dispositivo do usuário, mas em outro lugar: na nuvem. No entanto, esses dados podem ser acessados pela internet, o que traz um senso de abstração ao usuário, que não precisa mais saber como um determinado software funciona ou onde estão localizados seus dados pessoais: “This allows for slim design, mobility, and flexibility, […] it also forms the basis for a new consumer industry: a metainterface industry based on the production and consumption of culture, and that reorganizes cultural practices as well as urban space” (localização 3526).

Os autores enfatizam que empresas de hardware e software produzem plataformas de consumo cultural que fazem surgir uma nova atividade cultural que envolve escrita, arquivamento e compartilhamento, um novo tipo de realidade produzida pelas metainterfaces e controlada por plataformas como Facebook, Apple, Amazon e Google: “The metainterface has become habitual, and all aspects of life seemingly have become permeated with its grammar” (localização 4563).

Ao refletir sobre arte, cultura, plataformas digitais e cidades conectadas na lógica da metainterface, os autores fazem um interessante uso de trabalhos artísticos que não apenas servem como exemplos das transformações vividas nos últimos anos, mas revelam aspectos da metainterface e sua relação com usuários e como ela transforma o mundo e a cultura cotidiana. O livro apresenta uma crítica importante sobre a realidade de uma sociedade cada vez mais monitorada e analisa como a metainterface atua como uma linguagem com uma gramática tecnológica. Desta forma, torna-se uma importante referência para a análise de software e interfaces na contemporaneidade, principalmente ao problematizar a nova indústria cultural emergente.