Gil Vicente: um zoom, aqui e agora
Nuno Meireles
UNIVERSIDADE DE COIMBRA | CLP, BOLSEIRO DE DOUTORAMENTO FCT
orcid: 0000-0001-5470-5741
A primeira interrogação será porque só agora vem a lume um volume assim. Como advertem os coordenadores, José Augusto Cardoso Bernardes (FLUC) e José Camões (FLUL), na Introdução (p.10), o modelo de Compêndio é já habitual para William Shakespeare e Molière. Cambridge e Oxford têm multiplicado as suas edições, reunindo especialistas e investigação atualizada. Portanto, com este Companion dedicado a Gil Vicente dá-se um primeiro passo assinalável. Edição conjunta da Imprensa Nacional/Imprensa da Universidade de Coimbra, é também sinergia entre dois centros de investigação: Centro de Literatura Portuguesa (FLUC) e Centro de Estudos de Teatro (FLUL). Sob a coordenação dos dois vicentistas mais pertinentes atualmente nos estudos e nas edições de Gil Vicente, 15 investigadores assinam os 22 capítulos ao longo de pouco mais de 600 páginas. Nas suas seis partes convocam-se perto de 380 referências bibliográficas. O índice final das obras de teatro citadas indica que, para se falar de um autor teatral, mergulhámos num universo de quase 160 obras de teatro. Uma enciclopédia vicentina, em múltiplos ângulos.
Na primeira parte, “Textos e contextos”, José Camões e João Nuno Sales Machado fazem um zoom documental sobre as identidades de Gil Vicente (I). A inserção vicentina no mais amplo teatro quinhentista português é apresentada por José Camões (II). Hélio Alves aponta a inscrição (ou ausência) do autor na historiografia do teatro europeu (III). Pere Ferré estabelece relações entre Gil Vicente e a cultura popular (IV) e José Camões detalha a fortuna editorial do dramaturgo, das centenárias compilações às mais recentes (e avulsas) edições escolares (V).
Na segunda parte têm lugar “Temas e formas”, em queo discurso (sobretudo lírico) vicentino ocupa Armando López Castro (VI), enquanto Cardoso Bernardes frisa, mais uma vez (para quem tem acompanhado os seus estudos), a chave genológica do teatro de Gil Vicente (VII). Isabel Almeida explora sugestivamente a importância da figura do cavaleiro (VIII) e José Javier Rodríguez Rodríguez mapeia os traços do pastoril (IX). Esta parte conclui-se com os capítulos dedicados ao uso e tipologia da sátira vicentina, por Cardoso Bernardes (X) e à singularidade religiosa no teatro de Gil Vicente (XI), a cargo de Maria Idalina Resina Rodrigues.
Na terceira parte informam-nos sobre as “Traduções” de Gil Vicente: para espanhol, analisa Manuel Calderón Calderón (XII) e para francês, escreve Christine Zurbach (XIII). Sebastiana Fadda fala-nos das traduções para italiano (XIV) e Patricia Odber de Baubeta sobre a tradução inglesa de Gil Vicente (XV). Na quarta parte, “Texto, imagem e palco”, pela mão de Jorge Alves Osório, lê-se a Compilação vicentina à luz da estrutura e oficina dos cancioneiros (XVI). José Camões destaca em seguida o papel da música no teatro vicentino (XVII). Tatiana Jordá Fabra evidencia, a partir das didascálias implícitas e explícitas, a técnica do ator vicentino (XVIII). Termina a parte numa leitura iconográfica deste teatro, por João Nuno Sales Machado (XIX).
Na quinta parte aborda-se a “Investigação e ensino” de Gil Vicente. Inteira-nos José Augusto Cardoso Bernardes do estado dos estudos vicentinos, retrospetiva e prospetivamente (XX). Amélia Correia relata, por fim, a diminuição do lugar do dramaturgo no cânone escolar, identificando ao longo do tempo os paradigmas com que se tem dado a conhecer o dramaturgo na escola (XXI).
Na última e sexta parte é-nos reservada a surpresa de um texto de “Gil Vicente por editar”: umas trovas descobertas e apresentadas pela primeira vez em edição moderna, por Telmo Verdelho (XXII).
Esta visão panorâmica tem a virtude de complementar qualquer visão mais parcelar, numa ampliação de ângulos em que reside o valor principal deste Compêndio. Pode mesmo acontecer, lido o volume, que o leitor se interrogue se não estará perante múltiplos autores tendo em comum o nome Gil Vicente e uma mesma atividade teatral. Creio, no entanto, que o espanto dará também lugar a um outro sentimento. Acompanha este plural retrato a perceção de que Gil Vicente ainda não ocupa na atualidade um lugar proporcional à sua importância. Lemos as trovas descobertas e editadas por Telmo Verdelho, acompanhamos a leitura da Compilação como cancioneiro por Jorge Alves Osório ou o modo como se faz a transmissão da cultura popular e oral em Gil Vicente, por Pere Ferré. Percebemos diálogos com estudos anteriores, como a revisão da documentação existente sobre Gil Vicente poeta e ourives, em que José Camões e João Nuno Sales Machado dialogam criticamente com Anselmo Braamcamp Freire. Vemos a leitura religiosa de Maria Idalina Resina Rodrigues em perfeito contraponto com a muito anterior leitura da estética dos Autos de Devoção, de António José Saraiva. Lemos ainda o papel da música em Gil Vicente, por José Camões, em articulação com os prévios trabalhos de Manuel Morais ou de Albin Eduard Beau. Acompanhamos a importância em ler Gil Vicente com a chave dos géneros teatrais europeus de que fala José Augusto Cardoso Bernardes, em complemento com ensaios de Margarida Vieira Mendes e (antes desta) de António José Saraiva. Sobre os géneros surpreende, aliás, o que evidencia o trabalho lexical de Telmo Verdelho: Deus, vida e amor são as palavras mais frequentemente usadas por Gil Vicente (n576). Não será esta a melhor síntese (respetivamente) de Moralidade, Farsa e Comédia?
Ainda assim, penso poder ler-se uma certa nota de descontentamento. Vemos isso no (diminuto) lugar de Gil Vicente na historiografia do teatro europeu, segundo Hélio Alves. Ou no preocupante empobrecimento de Gil Vicente no cânone escolar nas conclusões de Amélia Correia. Também percebemos um desassossego no estado das traduções para as abordadas línguas estrangeiras. Conclui-se que ainda falta muito para fazer justiça à importância europeia (e nacional) do autor. Neste âmbito, de inserção no aqui e agora, há dois aspetos que o Compêndio refere em modos que merecem discussão: o hispanismo de Gil Vicente e o espetáculo teatral vicentino. Estes dois aspetos poderão dilatar positivamente tanto o aqui como o agora vicentinos, se vistos de outro modo. Sobre o primeiro aspeto, ainda que no Compêndio em geral se vá num sentido oposto, creio que será proveitoso tirar partido dessa involuntária fama castelhana de Gil Vicente pelos seus autos em espanhol. Cultivando mais assiduamente os textos castelhanos de Gil Vicente teremos, provavelmente, uma projeção muito maior aqui e no exterior. No próprio Compêndio, a Tragicomédia de Dom Duardos, integral e brilhantemente escrita em espanhol, é a segunda peça mais citada (67 vezes), sendo superada apenas pela Barca do Inferno (104 vezes). Seria oportuno replicar o estudo de Amélia Correia aplicando-o ao cânone escolar espanhol, ou inverter a perspetiva sobre as traduções relevando os critérios e resultados das versões para português dos autos em castelhano. A questão da tradução para português de Gil Vicente não estará longe dos propósitos de edições futuras, que José Augusto Cardoso Bernardes desenvolve como preocupação prioritária, apresentando os seus critérios e estratégias (pp. 505-509).
No outro aspeto, o do espetáculo teatral, as representações vicentinas são referidas, mas de modo pretérito, como (incontornavelmente) no caso do estudo de Jorge Alves Osório ou no de Tatiana Fabra. A abordagem iconográfica de Sales Machado ou as aferições de Pere Ferré apoiam-se num repertório comum (iconográfico e de cultura popular) entre Gil Vicente e o seu público. Os diferentes géneros teatrais europeus realçados por Cardoso Bernar-des assentam em propósitos claros e ações imediatas sobre a sua audiência (veja-se o moralizador e admoestatório da Farsa e Moralidade). Importa discutir que Gil Vicente se representa agora em números superiores a Molière ou a Shakespeare. De acordo com a base de dados CET base, os 347 espetáculos registados traçam um retrato alentado. Gil Vicente faz-se ouvir nos palcos portugueses em número superior à soma das representações dos nobelizados Harold Pinter, Samuel Beckett e Dario Fo. Como será lido Gil Vicente (e em que textos, suas edições ou lições) por quem leva hoje os autos vicentinos à cena?
Neste Compêndio seguiu-se a mais recente edição em livro das Obras de Gil Vicente, editadas em 2002 pela INCM sob a direção científica de José Camões. Também se citou pela base de dados textual Cet-e-quinhentos.com, do Centro de Estudos de Teatro (igualmente com direção de José Camões), onde encontramos os textos vicentinos com uma centena de outros textos de teatro quinhentista português. Dá-se o caso de, entretanto, se terem esgotado os volumes I e II da edição citada. Não há neste momento edição vicentina impressa sem ser no mercado alfarrabista. O acesso mais global ao texto de Gil Vicente (em leitura autorizada) é, de momento, digital. Pelo que se torna premente, de modo óbvio, empreender (desde já) uma nova edição do Livro das Obras vicentino, assim como uma reflexão sobre as potencialidades do meio digital para ampliar o aqui/agora de Gil Vicente.
© 2019 Nuno Meireles.
Licensed under the Creative Commons Attribution 4.0 International (CC BY 4.0).