“E o verbo fez-se carne”: uma viagem erudita entre filologia e corporeidade da palavra

Marie Claire De Mattia

UNIVERSIDADE DE COIMBRA | CLP, BOLSEIRA DE DOUTORAMENTO FCT
orcid: 0000-0001-8457-6549

 

Um volume focado no tratamento da corporalidade do livro e na importância da sua materialidade não podia não produzir, por sua vez, um objeto livro esteticamente agradável. Trata-se de um volume perfeitamente manuseável, com uma paginação linear mas de boa qualidade (evidente logo na solução gráfica escolhida para a capa) e páginas consistentes, satisfatórias tanto ao tato como ao olfato. De facto, as páginas são encorpadas e perfeitamente lisas, de uma brancura cremosa que não fere o olhar, enquanto o papel emana uma fragrância leve mas persistente. Igualmente simples e imediata é a organização do livro: uma nota do autor para definir a lógica das notas de rodapé e das traduções, logo depois e sem ulteriores preâmbulos o desenvolvimento do argumento (repartido em sete capítulos), e para concluir os agradecimentos e os índices.

O primeiro capítulo («Elliptical Prolegomena») tem um cariz mais elucidativo, pois fornece a base teórica e conceitual que o autor adotará nas unidades a seguir. Explica aqui alguns conceitos fundantes, tais como philia, logos, biblio, body, flesh, e corpus, e indica o significado de “philology of the flesh” pondo-a em oposição à “philology of the body”. No segundo capítulo, «Before the Word», retoma e amplia a definição de filologia da carne até fornecer uma apologia da investigação e da razão filológicas em formato diacrónico, desde as suas origens (com uma particular atenção para o trabalho do humanista Lorenzo Valla) até à contemporaneidade mais estrita. No terceiro capítulo (intitulado «This Loved Philology»), Hamilton retoma a figura emblemática de Cristo para a equiparar à palavra: tão como o Filho de Deus, encarnado e humanizado, é fusão de espírito e de corpo e resume em si as funções de signo e de símbolo, de referente concreto e de referência metafísica – assim a palavra corporifica o significado, dá-lhe uma forma e uma substância, mediando duas dimensões opostas e apenas tangentes. Daí o cuidado especial para com as citações, como sublinhado no capítulo seguinte, «Implications of Citation»: citar um texto equivale a efetuar uma operação cirúrgica de remoção e transplante de uma ideia de um contexto para outro.

Esta prática não apenas estende a obra para outros suportes, mas também acentua a potencialidade da transubstanciação dos conteúdos e da reformulação da materialidade do meio “livro”. O quinto capítulo, «The Mountain and the Molehill», foca-se principalmente nos perigos de uma atividade filológica mal-executada; o questionamento contínuo da linguagem obstaculiza a transmissão de significados (nas palavras do autor, «a longing for the word at the expenses of the world» (130)) e determina não uma revivificação, mas uma petrificação do pensamento (125). Hamilton também não se esquece do conceito de aura formulado por Walter Benjamin – que resgata no capítulo a seguir, «Carnal Inscriptions», sublinhando a dupla natureza corporal do livro, ao mesmo tempo veículo transparente de significado e artefacto filho de uma história material e cultural (162). Considerando que o livro como corporeidade está sujeito à ação do tempo e à deterioração, a transmissibilidade dos seus conteúdos adquire maior importância. A carnalidade da página (Hamilton lembra-nos que os primeiros materiais usados para produzir as folhas dos livros eram peles de animais tratadas e curtidas: “text-bearing flesh” (179)) dissolve-se «into the acquisition of sense, knowledge, power – incorporated into the rational systems that constitute the modern subject» (180). No sétimo e último capítulo, «The Stillest Night», o tópico enfrentado é o da obscuridade da expressão conjuntamente à obstaculização da perceção do leitor para fomentar a sua coparticipação ativa e direta (ergódica, nos termos de Espen Aarseth) no desenvolvimento da experiência estética.

A nível teórico e argumentativo, os capítulos mais estimulantes são talvez os primeiros três, caraterizados inclusive por uma especulação mais clara e imediata. Nas unidades a seguir, pelo contrário, as referências a outras obras e as citações cruzadas de diferentes trabalhos literários ou filosóficos desnorteiam o leitor: o assunto específico tratado por cada capítulo perde-se numa rica panóplia de referências e de episódios intelectuais. É possível até que esse seja o efeito estético que o mesmo Hamilton produziu voluntariamente para realçar os conteúdos críticos propostos – porém, o resultado final é dispersivo e acarreta uma certa confusão.

Em função de prossecução e extensão da lição de Marshall McLuhan de que “the medium is the message”, é claro que no presente volume a entidade “livro” (enquanto objeto, isto é, enquanto códex, mas também enquanto conteúdo imaterial) vai ser reformulada e rematerializada consoante critérios mais carnais e “carnudos”. Hamilton afirma em plúrimas ocasiões que a palavra é logos ensarkos, quer dizer, emanação pura e sincera de um ente superior que ganhou concretude. Esta entidade indagada pela filologia não é apenas corpus em análise, mas é também corpus, corporeidade, no sentido de uma parte de um sistema maior e mais articulado e complexo capaz de veicular e transmitir conteúdos, «an embodied identity that communicates authoritatively» (40-41). A palavra tem de ser analisada não apenas na sua corporeidade, mas também na sua imediata carnalidade, na sua essência mutável (porque reinterpretável), perecível e singular, unidade mínima de significado: «we do not “have” a body; rather, we “are” bodily. […] the incarnate word is not a mere medium or vessel; it is not a body that contains some detachable, incorporeal message; rather, the word-as-flesh communicates itself» (58-59). A filologia surge aqui ao lado da análise literária e filosófica para estruturar e consolidar a vitalidade da palavra, o perene renascimento do logos graças à reinterpretação do significado e a sua reproposição no alvo da escrita (nas palavras de Hamilton, «revivify the past to revivify the present», 30). A força da filologia e do filólogo reside na tentativa de, ao mesmo tempo, «finding the most suitable words to deliver the divine message» (37), manter a transparência do texto, e encontrar um equilíbrio entre as duas forças opostas de corruptio e de correptio nos processos de transmissão.

Fundante é também a relação de Philology of the Flesh com a teologia cristã. Em múltiplas ocasiões o autor faz referência a passos dos salmos, da Bíblia ou dos Evangelhos, evidenciando os fortes laços que há entre a dimensão religiosa e os argumentos filológicos. Interessante é, a este propósito, a formulação da proporção “texto : conteúdo = corpo : alma”. O texto impresso na página é a corpo-realidade contingente, material; a palavra escrita é, porém, o veículo de um conteúdo abstrato, impalpável, facilmente associável ao conceito de espírito ou alma. A leitura («incorporation of the word into a body of sense», 6) faz com que os conteúdos da página sejam continuamente excarnados para serem reincarnados na mente e na memória do indivíduo legente – à semelhança dos processos de des- e rematerialização das narrativas nas comunidades insurgentes de Fahrenheit 451 de Ray Bradbury.

Portanto, a página é «a material form that contains an immaterial sense within» (42) e indagá-la de forma atenta e pormenorizada para procurar o seu sentido mais intrínseco implica um processo de aproximação a uma Verdade total: «knowledge inheres in the word» (47). E mais, a leitura faz com que a própria consciência seja momentaneamente removida para ser relocada – procedimento este que o autor vê como um acontecimento místico e sagrado, uma superação do Eu baseada num ato de cega confiança, um transbordar quase mágico do Eu e da consciência individual para um universo invisível mas não menos veraz. Nesta transmediação, a palavra-como-corpo é sacrificada e desmaterializada em palavra-significado, absorvida e digerida pelo leitor, enquanto o livro passa a ser uma extensão do espírito-lente, uma unidade transcendental e palpitante (de facto, «you are inside [the book]; [the book] is inside you; there is no longer either outside or inside», 93). Esta evolução é comparada pelo autor à transubstanciação da corporeidade real de Cristo para uma dimensão mais abstrata e vivificadora, até levar a um sentimento de fusão pânica numa união hipostática: «the flesh of the page is made to dissolve into the acquisition of sense, knowledge, power – incorporated into the rational systems that constitute the modern subject» (180). Isto é, pela leitura e pela aprendizagem, o sujeito leitor imerge-se no medium “escrita” até chegar à amálgama plena e total com as palavras, que assim transcendem a sua corporeidade concreta atingindo o simbólico.

Na esteira deste raciocínio, Hamilton introduz uma série de paralelismos entre a palavra ou o livro e a figura de Cristo enquanto Logos materializado num invólucro de carne peritura. A relação de Cristo com a sua corporalidade humana equivale, para o autor, à relação da palavra como signo concreto com a natureza transcendente do símbolo – a palavra vive e respira enquanto incarnação do Verbo no poeta e como excarnação da experiência direta que ele viveu e transpôs no papel (77).

Assim, a palavra poética deixa já de ser uma materialidade objetiva e objetificável para ser uma entidade senciente homóloga a um ser humano. E mais, a carne de Cristo funciona como sacramento capaz de alimentar a salvação espiritual e como carne sacrificial; a palavra respeita as mesmas lógicas, isto é, é uma substância descartável constantemente sacrificada no ato da leitura em prol da salvação espiritual e intelectual de quem a encara e estuda. Esta vivificação da palavra emerge poderosamente da análise da poesia de Emily Dickinson, onde os efeitos de presença à la Gumbrecht sugeridos pelas experiências estéticas que as palavras veiculam se alternam à consciência da efemeridade dessas mesmas experiências, e à inatingibilidade fundamental do prazer da leitura, da captura e da cristalização da imediação no esforço e na constante tensão da absorção de conteúdos mediados.

John Hamilton consegue fornecer uma demonstração amplíssima e consistente da proposição bíblica “e o Verbo fez-se Carne”, ilustrando aspetos inéditos e originais seja da essência do Divino, seja da natureza da linguagem. A riqueza de exemplos filosóficos e literários, funcionais para desenredar a metáfora da incarnação (desde os já citados Lorenzo Valla e Emily Dickinson até Augustino, Friedrich Nietzsche, Frantz Kafka, Immanuel Kant, Charles Baudelaire e Paul Celan, entre outros), espelha e resume à perfeição o caminho do autor – reputado comparatista norte-americano, musicólogo e crítico literário. Um livro nada fácil de encarar, mas extremamente rico e estimulante, e capaz de fornecer novas perspetivas sobre a linguagem e sobre a sua unidade fundamental, a palavra.