Mira Schendel: signo e sigilo
Eduardo Jorge de Oliveira
UNIVERSIDADE DE ZURIQUE
orcid: 0000-0002-7232-4077
I. Vontade épica e vivência imediata
Mira Schendel tem muito a nos ensinar sobre a construção sensível do signo, pois ela o inscreve claramente sob um tipo de sigilo com uma clareza gráfica que unifica a letra manuscrita e o traço sobre o papel. É o que nos mostram pelo menos duas de suas monotipias que pretendemos analisar. Antes de iniciarmos a análise é preciso partir da definição de monotipia que abre o catálogo Monotypes: “monotipo, também chamado de impressão monocromática, em arte gráfica, é uma técnica que geralmente produz uma única boa impressão para cada prancha preparada.” (Schendel, 2015: 7). A partir desta breve definição, buscaremos entender como a escrita da Mira Schendel produz signos sensíveis, procedimento muito próximo de biogramas, isto é, o que gostaríamos de chamar de pequenas unidades de vida, seus traços, onde letra e linha estão em uma estreita relação com a própria vida e técnica de impressão. Feito este breve quadro que delimita o nosso campo interpretativo, a relação mais direta entre signo e sigilo está em duas monotipias da artista que fazem parte da série “Escritas únicas” (1964-65; Figuras 1 e 2) (Schendel, 2015: 55-58). Nas referidas monotipias texto e escrita são suplementos um do outro, sobretudo pela concisão com a qual a artista abre o espaço plástico: “ponto/ sonho/ curto/ sigilo signo signo/ signo sigilo sigilo/ ponto”. Na outra monotipia o texto permanece o mesmo, mudando sutilmente sua disposição na folha e as palavras “signo” e “sigilo” se proliferam em um determinado espaço da página.
Nas monotipias em questão, o próprio sigilo da escrita emerge plasticamente sob a forma de uma textualidade no espaço visual [1] de modo que a artista cria uma zona de impureza semântica na área pictórica. Por um lado, a distinção entre palavra e imagem se torna mais complexa, pois o traço da letra oferece um índice de presença utilizado contido na própria escrita. Ao imprimir palavras manuscritas e traços feitos à mão sobre o papel-arroz, Mira Schendel também estampa um ritmo sobre o papel onde as palavras e até mesmo cada letra marcam um convite à simultaneidade – entre continuidade e descontinuidade – do signo, do sigilo. Por outro lado, os termos signo e sigilo são contíguos, um pertence ao outro, contaminando-se um com o tempo do outro.
Figuras 1 e 2. Série Unique writings/Escritas únicas ca. 1964-1965. Óleo sobre papel-arroz ca. 47 x 23 cm (cada). Cortesia Hauser & Wirth, NY.
Não é uma tarefa simples, a de situar a obra da Mira Schendel na história da arte brasileira e talvez seja um atalho situá-la entre o concretismo e o neoconcretismo, o que traduziria de modo muito geral as tensões históricas no Brasil entre uma vontade construtiva e uma força sensorial. O que poderíamos afirmar é que Mira Schendel possui uma obra discreta e prestes a encontrar sua expansão pela força da letra; esta, no entanto, está posicionada entre as conquistas do construtivismo artístico, do existen-cialismo e da fenomenologia. A letra entra em uma disposição mimética do mundo que, antes de atribuir sentido, multiplica as origens. Mira Schendel talvez tenha conquistado no campo artístico um estado de balbucio da linguagem. Antes mesmo de caracterizar uma estética babel nas suas escritas, existiria uma ênfase ao balbucio, aquilo que Daniel Heller-Roazen recupera em termos de ecolalias, isto é, o estado de crianças que não falam ainda, mas que fazem barulhos e em tais barulhos existe a antecipação dos sons das línguas humanas com uma articulação capaz de ultrapassar a capacidade de adultos poliglotas (Heller-Roazen, 2007: 11).
Os breves elementos assinalados nos conduzem a um exercício hermenêutico de interpretação do signo e do sigilo como palavras que possuem a força de uma assinatura, isto é, que marcam o lugar da artista em relação à sua obra e que será a conclusão da leitura das duas monotipias. Signo, sigilo também é uma primeira abertura para ler o contexto da obra de Mira Schendel como uma parte do seu diálogo com poetas, intelectuais, artistas e, ao mesmo tempo, com o modo solitário com o qual ela elaborou uma sensibilidade dos signos pelo viés de uma “vida imediata”, de onde se desdobra o “presente como utopia” ou “o mundo como generosidade” (Rodrigo Naves, 2004, 2014), de uma “resistência ao presente” (Sônia Salzstein, 1995), no modo de “ativar o vazio” (Guy Brett, 1996), ou de “uma transparência misteriosa da explicação” (Paulo Venancio Filho, 1997), ou da “transparência” (Durchsichtigkeit,) propriamente dita (Vilém Flusser, 1992), para mencionar apenas cinco aspectos da obra que encontrarão ressonância em outros textos críticos. Tais aspectos possuem uma relevância para interpretações posteriores da obra de Mira Schendel.
Apesar de grandes exposições amparadas por instituições de renome internacional, como museu Serralves, no Porto, Reina Sofía, em Madrid, e Tate, em Londres, por exemplo, o catálogo que ainda melhor expõe a trajetória da artista data de 1996-1997, no vazio do mundo. Mira Schendel, com pesquisa e curadoria de Sônia Salzstein (Salzstein, 1996). No vazio do Mundo. Mira Schendel tornou-se uma matriz indispensável porque possui a combinação de materiais, textos e depoimentos sobre a artista que foram reproduzidos parcialmente em catálogos posteriores, uma cronologia rigorosa feita por Célia Euvaldo, além de uma entrevista feita com Haroldo de Campos pela própria Sônia Salzstein. Salzstein delimita o próprio “vazio do mundo” ao apresentar um caráter fenomenológico na obra da artista:
O trabalho se apresenta assim sob os contornos de um indeterminado campo fenomenológico, que não é privilégio do sujeito, mas algo percebido como território comum da empiria. Nele se revolvem conteúdos éticos, filosóficos e estéticos numa matéria pré-conceitual, sublime e vulgar, de tal maneira que só imperfeita e provisoriamente poderia se encaixar nos objetos acabados que costumeiramente se atribui a uma instituição (de) arte (Salzstein, 1996: 16).
A obra de Mira Schendel abre uma leitura fenomenológica que vai de Edmund Husserl a Maurice Merleau-Ponty, mas também de Henri Maldiney a Jean Gebser, sendo que com este último, autor de um livro de 1963, Transparente Welt, Mira Schendel manteve uma correspondência. Sem entrar neste detalhe que solicita um estudo à parte, lemos, no entanto, a questão fenomenológica na obra de Schendel pela própria Salzstein. Observamos o ponto de partida da artista pela “matéria pré-conceitual, sublime e vulgar”, a ponto que mesmo a sua escrita possui leveza e densidade desta matéria e de sua espiritualidade. O campo fenomenológico aberto pela arte de Mira Schendel vem de um conhecimento da matéria. Por isso, será um artista e escritor como Nuno Ramos que irá confirmar uma presença diante do “vazio do mundo”, quando ele transmite uma história contada por Mira Schendel, com a qual estabeleceu uma forte relação de amizade: “Certa vez, em Veneza, ela voltava para o hotel numa noite chuvosa e fria. A praça San Marco, encharcada, estava deserta, mas uma latinha de Coca-Cola, soprada pelo vento, se arrastava para lá e para cá” (Ramos, 2007: 213). Nuno Ramos descreve que todos os elementos na obra de Mira Schendel estão presentes nesta breve anedota contada com frequência por ela: “O campo vazio, mas pleno (a praça), e o individuo intruso, que o desperta (a latinha)” (Ramos, 2007: 213), acrescido da solidão de quem contempla a cena, além do divertimento ao contemplá-la. Em verifique se o mesmo, Nuno Ramos dedicou um novo ensaio à Mira Schendel, reforçando a ideia da passagem do campo fenomenológico à escrita: “O que importa não é tanto levar as linguagens ao esgotamento e à renovação, mas ativar o mundo fenomênico imediato, tornando-o sensível e, no limite, legível” (Ramos, 2019: 53). O ponto de partida de Nuno Ramos também é uma das monotipias da artista onde se lê: “Ah, come mi diverto!”. O título da monotipia em questão pode ser interpretado à luz do signo e do sigilo e, ao mesmo tempo, a frase expressa o prolongamento da análise do ensaio anterior de Nuno Ramos. A história contada a ele pela própria artista e que foi objeto de análise no texto escrito para o catálogo no vazio do mundo. Os termos signo e sigilo existem sob semelhante perspectiva de um divertimento que ganha uma expressão gráfica na medida em que também está expresso um espanto da artista com a contingência do mundo. A artista se espanta com o próprio mundo ao modo que este parece conduzir a sua mão a escrever: o movimento é infantil. Se o traço parece intruso no papel – ele se confunde com um traço do mundo – estrangeiro como as palavras por ela escrita em diversas séries de monotipias com uma mão simultaneamente infantil e poliglota, existe um convite ao divertimento em termos de uma descoberta permanente do mundo que se faz signo e das letras que, ao formarem palavras e frases, antes de serem acolhidas em termos semânticos, seriam uma abertura ao sensível: o mundo em plenitude.
De Nuno Ramos podemos destacar a observação atenta da transmissão de imagens de onde não se separa matéria, técnica e biografia para entender que a artista trabalhava expandindo os usos do papel, que existe uma ética da linha e do volume (como será o caso de obras tais como trenzinho [2] e droguinhas [3], Figs. 3 e 4) que compõe uma equação que desloca a própria Mira Schendel dos acentos do movimento moderno, pautados historicamente na relação entre a artista e a sociedade. Mira Schendel se pauta desta relação para fazer um uso lúdico do tempo em direção a uma transcendência sem substância de modo que o próprio papel atingirá a condição de signo como nas obras mencionadas.
Figura 3. Droguinhas – década de 1960, papel japonês retorcido, dimensões variáveis, col. particular, São Paulo. in: Geraldo de Souza Dias, 2009: 214.
Figura 4. Trenzinho, c. 1965, papel arroz e fio de algodão, dimensões variáveis, Mira Schendel State, São Paulo.
Existe um princípio de ação em Mira Schendel que não inscreve suas obras necessariamente na produção contínua do tempo. Peter Osborne, em The politics of Time – Modernity and Avant-Garde, mais precisamente em “Modernity, Eternity, Tradition”, analisa a perspectiva de Levinas que “o social aparece apenas como uma categoria de totalidade finita” (Osborne, 1995: 125-126), fruto de uma reflexão benjaminiana sobre história e messia-nismo. A pergunta que Osborne faz “Fora ou fim?” busca compreender aspectos de uma alteridade mais geral que, para acedê-la diretamente de Deus, salta-se a variedade das formas sociais e, com isto, a temporalização de tempos e espaços particulares. Em Mira Schendel estes tempos se misturam, eles estão entrelaçados sob a forma de signo, de sigilo. E isso é definitivo para entendermos que existem possibilidades infinitas da artista com o espaço exterior. O que é decisivo para elegermos um “fora” e não um “fim” para o campo gráfico ontológico e fenomenológico da artista.
A partir da observação de Sônia Salzstein e de Nuno Ramos, além de outros textos onde a biografia da artista recebe uma característica ativa na relação que ela tem com a escrita, Schendel obedeceu a outra escala de tempo, a espiralar, o que permite, dentro de uma lentidão ou de uma espera ativa e espiritual, entender outra atuação política, esta mais próxima do uso de materiais, nos modos de interpretação do sagrado e da transcendência e de torná-los uma realidade presente dentro da própria obra, no diálogo com conceitos filosóficos que aparecem sobretudo por uma artesania das composições da artista. É notável o fato que Mira Schendel buscasse uma “vivência imediata”, situando-se mais próxima da fenomenologia e do empirismo diante dos eventos do mundo. Com tal posicionamento, atenta-mos para o caráter provisório que o campo simbólico poderia assumir para ela. Apenas o caráter mais imediato da vida poderia acioná-lo, deslocá-lo, animando-o de sopro, como se pode ler em um dos datiloscritos da artista, sem data, e publicado originalmente em no vazio do mundo:
Os trabalhos ora apresentados são resultado de uma tentativa até agora frustrada de surpreender o discurso no momento da sua origem. O que me preocupa é captar a passagem da vivência imediata, com toda a sua força empírica, para o símbolo, com sua memorabilidade e relativa eternidade. Sei que se trata, no fundo, do seguinte problema: a vida imediata, aquela que sofro, e dentro da qual ajo, é minha, incomunicável e, portanto, sem sentido e sem finalidade. O reino dos símbolos, que procuram captar essa vida (e que é o reino das linguagens), é, pelo contrário, anti-vida, no sentido de ser inter-subjetivo, comum, esvaziado de emoções e sofrimentos. Se eu pudesse fazer coincidir estes dois reinos, teria articulado a riqueza da vivência na relativa imortalidade do símbolo. Reformulando, é esta minha obra a tentativa de imortalizar o fugaz e dar sentido ao efêmero. Para poder fazê-lo, é óbvio que devo fixar o próprio instante, no qual a vivência se derrama para o símbolo, no caso, para a letra.
No começo pensava que para tanto bastava eu surpreender, em mim, esta urgência da vivência para a articulação, isto é: sentar-me a esperar que a letra se forme. Que assuma a sua forma no papel, e que se ligue a outras numa escrita pré-literal e pré-discursiva. Mas sentia, desde o início, que isto poderia ter êxito apenas se o papel fosse transparente. Agora sei melhor avaliar, porque tinha então aquela impressão: a letra, ao formular-se, deve mostrar o máximo de suas faces, para ser ela mesma.
Surgiu, no entanto, um segundo problema. A sequência das letras no papel imita o tempo, sem poder realmente representá-lo. São simulações do tempo vivido, e não captam a vivência do irrecuperável, que caracteriza esse tempo. Os textos que desenhei no papel podem ser lidos e relidos, coisa que o tempo não pode. Fixam, sem imortalizar, a fluidez do tempo. Por isso, abandonei esta tentativa.
Abandonei, porque descobri o acrílico, que parece oferecer as seguintes virtualidades: a. torna visível a outra face do plano, e nega portanto que o plano é plano; b. torna legível o inverso do texto, transformando portanto o texto em anti-texto; c. torna possível uma leitura circular, na qual o texto é centro imóvel, e o leitor o móvel. Destarte o tempo fica transferido da obra para o consumidor, portanto o tempo se lança do símbolo de volta para a vida; d. a transparência que caracteriza o acrílico é aquela falsa transparência do sentido explicado. Não é a transparência clara e chata do vidro, mas a transparência misteriosa da explicação, de problemas.
Não me dou por satisfeita. Não creio que acrílico seja a pedra da sabedoria. Comecei, simultaneamente, a experimentar com filmes. Mas se o trabalho apresentado tem algum valor, é este: apontar uma estação em um dos múltiplos caminhos possíveis rumo à articulação do valor e da meta da vida (Salzstein, 1996: 256).
Nesse texto, Mira Schendel parece resumir suas escolhas conceituais e materiais, seja na propriedade da escrita, seja na misteriosa transparência de um material como o acrílico e que foram modos encontrados por ela para dar forma ao efêmero. Se nela existe um excesso em termos da produção de séries, como enfatizou Rodrigo Naves, ou uma lentidão, como analisou Nuno Ramos, é porque Schendel organizou um combate da vida contra o campo simbólico. Combate que a artista compreendeu quando encontrou na Ilíada o episódio do retorno de Aquiles para a batalha, fato que lhe rendeu duas pinturas em meados dos anos sessenta: Achilles e A volta de Aquiles, ambos de 1964. Na primeira pintura há a citação em inglês com todas as letras maiúsculas em preto com o quadro em fundo escuro (Fig. 5). Ela ocupa a parte superior do quadro: “Froude and myself at the time: we borrowed from M. Bunsen a Homer and Froude chose the words in which Achilles on returning to the battle says: you shall know the difference now that i am back again.” [“Froude e eu na época: pegamos emprestado de M. Bunsen um Homero e Froude escolheu as palavras em que Aquiles, ao retornar à batalha, diz: você saberá a diferença agora que estou de volta”]. O contraste do texto está apenas com o nome Achilles, em bege claro. Já na segunda pintura há apenas a frase “Now that I am back.” Frase dentro de outra moldura negra pintada e com uma lança que atravessa a palavra “that” e dois escudos, um dentro e outro fora da moldura negra.
Figura 5. Sem título (Achilles), 1964. Tempera sobre tela. 93 x 132 x 3,5 cm.
Coleção Particular, São Paulo.
Se passamos da escrita em uma monotipia para uma superfície de outra natureza, a pintura, é para investigar a dimensão épica da migração dos signos, a começar pela seguinte pergunta: por que uma artista, em busca da vivência imediata, entre signo e sigilo ou, melhor, com signo e sigilo, se interessaria pela forma épica da escrita no poema fundador da literatura europeia, mais precisamente por um guerreiro como Aquiles? Interessar-se a ponto de utilizar o texto de modo pictórico, enfatizando o “retorno” à batalha. Trajano Vieira, na introdução à edição brasileira do poema, traduzido por Haroldo de Campos, observa que “o herói se torna persona-gem épico se aceita de antemão a brevidade da vida. O curioso no poema homérico é que é dada a Aquiles a liberdade de escolha entre ser ou não ser um personagem épico” (Vieira, 2001: 12). No momento em que Aquiles sai da batalha – e consequentemente do poema épico – ele deixa de ser personagem (Vieira, 2001: 11) para assumir uma função metanarrativa de ocupar o lugar daquele que canta a honra de um guerreiro. Aquiles se ausenta para experimentar a lira, mas não será como poeta e sim como guerreiro que ele alcançará a fama. Mesmo tendo uma experiência com poesia, sobretudo com toda a sua força (Vieira, 2001: 11), com práticas escriturais, Mira Schendel parece identificar um fio condutor da decisão em relação à luta das formas plásticas.
O ponto crucial é que Aquiles – que merece ser lido como uma força plástica – ao decidir voltar para o combate, posiciona-se pela escolha da brevidade da vida e pela promessa da sua imortalidade. Os dois momentos escolhidos por Mira Schendel estão mais direcionados para o primeiro momento da escolha de Aquiles: a brevidade da vida, a sua “vivência imediata” que ela gostaria de transportar para a imortalidade do símbolo. Essa é a escolha épica que ela resolve com simplicidade, solidão e diverti-mento. Assim, o fragmento datilografado sobre a vida e antivida por Mira Schendel não apenas apresenta a estratégia material para a realização de sua obra, mas o faz à luz de um poema épico, com a exceção que a glória imperecível (traduzido do grego por Haroldo de Campos por kléos áphthiton) não alcançou o seu horizonte, pelo menos no final de sua carreira, como a biografia da artista pode nos atestar, mas sobretudo, seus depoimentos que Nuno Ramos, entre outros de seus contemporâneos, ouvia frequentemente sobre a ausência de reconhecimento da sua obra. Esse critério, no entanto, é difícil de ser avaliado, pois Mira Schendel foi uma artista que realizou, em vida, diversas exposições dentro e fora do Brasil, muito embora seu nome tenha ganhado mais destaque muito tempo depois da sua morte.
Taisa Palhares menciona que as pinturas sobre Aquiles são de suma importância na obra de Schendel. Ela observa que “quase todos os signos nessa pintura reaparecerão, simplificados ou recombinados, em muitos de seus trabalhos. Isso nos leva a acreditar que os sentidos contidos na obra ultrapassam o escopo do próprio poema” (Palhares, 2014: 11). Ou da leitura do próprio poema em comparação com a obra de Mira Schendel, mesmo que a fonte da Ilíada para ela tenha vindo dos escritos de um cardeal que data de 1836, observado argutamente por Luis Pérez-Oramas em Léon Ferrari y Mira Schendel: el alfabeto enfurecido (Pérez-Oramas, 2010: 26). Difícil, no entanto – esse é um exercício de interpretação – é mostrar onde se situa o escopo do poema e onde os sentidos contidos na obra de Mira Schendel o ultrapassa, pois no entendimento da relação da artista com o poema homérico é que há uma relação imbricada conceitual e materialmente. O que existe talvez esteja mais próximo de uma operação de deslocamento entre signo e sigilo, o que nos faz compreender a proposta de Palhares quanto a uma eventual “ultrapassagem” do escopo do próprio poema. Ao deslocar uma palavra que é um corte preciso no tempo – ocasião, do vocábulo grego kairos – existe uma decisão que sustenta a épica não apenas para afirmar a força que vem do poema, isto é, o seu lado viril, mas o epos. Este epos pode ser compreendido como canto épico e persistência da voz no traço da letra, de um enunciado feminino que une a biografia e a força plástica e sígnica presentes do desenho à pintura, do mesmo modo que o canto épico tem suas variações. A obra de Mira Schendel também as trará. Será que esta épica plástica (signo) coexistente com um lirismo doméstico (sigilo) não teria sido um modo que a artista encontrou para dar sentido ao efêmero? Retornar a alguns aspectos da biografia de Mira, nesse sentido, seria muito mais um modo para entender as migrações da escrita e suas composições sígnicas do que se ater detidamente à sua vida.
II. Grafias da vida: uma plasticidade do bios, a contingência e a exposição de si.
Il migrante accenna alla possibilità di un mondo altrimenti concertato, rappresenta la deterritorializzazione, la fluidità del passaggio, l’attraversamento autonomo, l’ibridazione dell’identità (Di Cesare, 2017: 20).
A partir de Donatella Di Cesare, em Stranieri residenti, podemos imaginar uma filosofia da imigração de modo irrestrito no mundo dos signos, mas que tem suas origens no deslocamento físico de um ponto a outro. Essas origens por sua vez se multiplicam. Os signos são migrantes na obra de Mira Schendel: uma letra, por exemplo, possui um duplo estatuto: deslocada e isolada, partilha sua função com a de figura em uma paisagem. Durante a passagem é preciso cruzar uma ou mais fronteiras, mas de um modo não metafórico. Nesse sentido a própria migração de Mira ao Brasil nos interessa não estritamente em termos biográficos, mas pela experiência de uma fluidez da passagem da própria escrita. São diversas as passagens, onde algumas seguramente são mais fluidas que outras. A passagem de um país a outro, de uma língua a outra, de um material para outros, da letra ao papel pelo traço, pela própria letraset ou pelas formas de apresentá-las pela opacidade e pela transparência, da experiência fenomenológica e existencial até atingir o limite do vazio do mundo. O vazio coincide com a plenitude: Mira Schendel de certa forma recompôs uma escrita do mundo.
Sobre a superfície bidimensional do papel-arroz, os escritos possuem valores de instantâneos de anotações. Sendo bidimensional, o papel-arroz é diáfano: isto é, existe um grau de transparência que permite que as palavras e as linhas sejam vistas do outro lado da folha, o que não deixa de apresentar uma vontade de totalidade. Também há nelas uma estética da distração, da mão livre e decidida a anotar algo que lhe vem ao espírito, onde se inclui um lirismo fragmentário e elegíaco vindo da experiência da monotipia, que é um grande feito, pois nela coincide técnica e imaginação: os escritos de Mira Schendel talvez sejam parte de matrizes perdidas que, sob o suporte artístico, existem sob a forma de fragmentos. Se por um lado a experiência fragmentária pode ser associada diretamente aos deslocamentos da artista e ao seu contexto histórico, por outro, ela é um modo de se aproximar da utopia de uma totalidade, da vida imediata, pela quantidade de desenhos produzidos. Quanto à elegia, é bom percebê-la na confluência de diversas tradições, como nos lembra Jean-Michel Maulpoix em Une histoire de l’élégie – fúnebre, poesia erótica e galante, poesia sentimental, guerreira, épica, política, filosófica e moral (Maulpoix, 2018: 17). Embora a história deste gênero poético, que é a elegia, seja bem mais complexa, existe nela uma descarga lírica. Esta “descarga” pode ser entendida na sua indeterminação através da análise de Jean-Michel Maulpoix, em Du lyrisme, onde ele afirma que o lirismo é uma “energia em obra, uma pressão, um vôo, um movimento, uma chamada” (Maulpoix, 2018: 27). Assim, afirmar que existe um lirismo nas monotipias seria recuperar nelas a energia em obra, enfim, uma chamada que vem da experiência da artista.
A primeira parte de tal experiência sempre nos apresenta um perigo necessário, o da biografia. Nascida em Zurique no dia 7 de junho de 1919, filha de uma mãe judia, Ada Saveria, Myrrha Dagmar Dub inicia seus estudos em filosofia na Faculdade Católica do Sagrado Coração, em Milão, em 1936. Mesmo convertida ao catolicismo, seus estudos foram interrompidos por causa de um decreto de Mussolini que não permitia a matrícula de estudantes de ascendência judaica. Durante os anos de guerra, sua vida estava dividida entre a Suíça, a Áustria, a Itália, a Bulgária e a ex-Iugoslávia – onde ela encontra seu primeiro marido e adquire o sobrenome Hargesheimer –, depois ela regressa para a Itália e migra para o Brasil, em 1949. Talvez seja possível imaginar seus contínuos deslocamentos pelos nomes Myrrha, Myrha, Mirka, Mirra até chegarmos ao mínimo Mira. Eles podem compor uma cartografia pessoal presente no espírito de letra, onde um indivíduo possui aquilo que lhe é mínimo e próprio, o nome, em plena transformação ou trânsito. Já casada e pouco antes de partir ao Brasil, Mira Hargesheimer permanece em Roma entre maio de 1947 e julho de 1949, onde ela trabalha na International Refugee Organization. Nessa organização ela se familiariza com os protocolos administrativos no que concerne aos trânsitos para a emigração com o estatuto recém-criado displaced persons (pessoas deslocadas). Conhecendo os mecanismos de pedido de imigração, o casal Hargesheimer prepara algumas solicitações para partirem à América Latina, e a Comissão Brasileira de Imigração foi a primeira a aceitar o pedido. Com a resposta afirmativa, Mira embarca no navio Protea que partiu de Nápoles no dia 27 de julho de 1949 para chegar no Rio de Janeiro no dia 13 de agosto. Chegando ao Brasil, ela terá a nacionalidade iugoslava. Do Rio de Janeiro ela partiu para Porto Alegre, onde existia uma comunidade significativa de imigrantes alemães. Depois de ter trabalhado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN, Mira pôde constatar que tanto na Europa quanto no novo mundo existem povos entregues a uma precariedade testemunhada em uma carta escrita em italiano e enviada ao jornal Correio do Povo. O jornal encarregou-se da tradução, publicando-a no dia sete de janeiro de 1950. Na primeira carta estão expostas as filas de espera, as hostilidades vividas, a sujeira e a promiscuidade dos abrigos temporários. O diretor do jornal responderá à carta na edição seguinte, contestando os argumentos de Mira, cujo título é “o imigrante de ontem é o brasileiro de amanhã”. Mira responde com outra carta: “o imigrante de hoje e os brasileiros de amanhã.” Mira Hargesheimer não deixa de expressar que “a situação é a mesma”, e chega a escrever que “não podemos estar eternamente deslocados, até no Brasil.” Em ambas as cartas o caráter imediato da vida é ressaltado (Dias, 2019), para utilizarmos novamente o termo de Peter Osborne, uma “política do tempo”. Mira foi bem atuante entre a vida e a letra, talvez por isso o seu nome expresso pela assinatura “Mira Schendel” seja o resultado de deslocamentos do corpo e do signo.
Se há um termo que pode explicar, pelo menos por instante, essa condição mais imediata da vida e da letra, ele vem do filósofo de origem tcheca que também encontrou um solo no Brasil, Vilém Flusser, Bodenlos. Significando literalmente “sem solo”, “sem chão”, “falta de fundamento”, Bodenlos pode aceder a vários significados, da botânica, da astronomia, da lógica e, sobretudo da existência, onde “é possível atestá-la, de maneira direta, autobiograficamente: na esperança de que tal atestado sirva de espelho para outros. A própria vida pode tornar-se laboratório para outros” (Flusser, 2007: 21). A própria introdução do livro de Flusser, “Atestado da falta de fundamento”, com variações feitas a partir da “falta de funda-mento”, pode aproximar-se quase simetricamente da reflexão filosófica que Mira Schendel realiza com sua obra, afinal, a artista dá forma à vivência imediata, transformando-a em símbolo. Assim, a existência intensiva, de Flusser, e a vivência imediata, de Mira Schendel, são duas formulações que chamam a atenção para aquilo que está fora de campo, onde a existir também por ser interpretado como “viver por fora” (Flusser, 2007: 22), tanto do texto quanto da obra, muito embora participem dele através da força da “significação” do que é insignificante. Letra e papel acolhem o insignificante e a fragilidade que são essencialmente a sensação de duração – efêmera – de cada obra. Flusser descreve ainda uma obra de Mira Schendel, esta situa-se na época em que a artista utilizou placas de acrílico para suspender monotipias em papel-arroz no final dos anos sessenta, de onde podemos mencionar os “objetos gráficos” da artista expostos na 34ª Bienal de Veneza. Na perspectiva do filósofo:
O observador vê a sala por entre o texto, e como a prancha balança no vento, o observador vê o texto dinamicamente no seu contexto. Se passa a ler o texto, vai descobrindo mensagens em várias direções: em linhas horizontais, em linhas verticais, em linhas diagonais, e em linhas de profundidade. Vai distinguindo vários tipos de mensagens: palavras, imagens, formas. As palavras podem ser de diversas línguas, mas o leitor suspeitará que foi ele, e não Mira, quem formulou as palavras. [...] Não importa em que direção o leitor avança, sempre descobrirá algum significado. Mas a totalidade do texto é obviamente isenta de significado (Flusser, 2007: 249).
Flusser não hesita em passar do observador ao leitor. Se existe toda esta virtualidade da leitura, a concreção do objeto e a força móvel da placa existe nas monotipias e esses aspectos podem ser reelaborados a partir do signo e do sigilo. Primeiro pela fragilidade proposta nos limites da transparência e da opacidade, que pode ser resultado de uma teologia material e fenomeno-lógica, pois letra e papel possuem um ritmo comum, forte e denso, ao mesmo tempo que leve e rápido. Se transpuséssemos esse aspecto para as condições fonéticas da língua, seríamos capazes de ouvir as hesitações de algumas palavras, levemente fora de sincronia de suas respectivas imagens acústicas, que em termos práticos viria no acento, marca estrangeira da fala da artista em português, tal como foi descrito por Nuno Ramos (Ramos, 2007: 208). A imagem apresentada pelo artista expressa mais uma agilidade para captar algo fugaz e sutil do que a tendência de uma realização impecável. Nesse sentido, existe algo da ordem do inacabado que permanece em uma dinâmica entre a palavra dita e a palavra escrita. Esse ritmo estava na mão de Mira Schendel, determinando precisões na folha de papel-arroz como é o caso da inscrição de palavras na série de monotipias “escritas”, tais como “aqui”, “ici”, onde tanto em português quanto em francês a escrita está em comunicação direta com o lugar, assinalando uma presença das palavras assegurada semanticamente, mas que resiste na folha por uma instabilidade ou fragilidade plástica, palavras soltas que estariam hipoteticamente “sem fundamento”, “sem base” se não houvesse a condição material da página, sua opacidade, literalmente atravessada pela escrita.
Figura 6. A trama. Década de 60. Decalque de óleo sobre papel-arroz, 45,1 x 62,2 cm. The Museum of Modern Art, Nova Iorque.
A escrita em Mira Schendel considera ainda as condições materiais da letra na sua diversidade que vai do manuscrito ao desenho industrial passando pela letra-decalque e o uso da fonte “Futura”, usualmente utilizada na publicidade. A letra encarna uma busca visual entre a abstração e a figuração e, sobretudo, entre o espírito e o corpo. Dito de outro modo, o espírito torna-se corpo por toda a absorção de um tempo de ordem religioso. Em um primeiro momento porque a transparência buscada por Mira Schendel possui etapas dentro da sua obra: antes de chegar à letra, ela pintou objetos à mão, tesouras, objetos perfurantes, tinteiros; depois chegando ao papel-arroz, ela propaga com a letra um efeito de silêncio, balbucio, enfim, de rumor. A letra, muito próxima do gesto, assume a realidade imanente que a artista havia formulado no seu diário: “o outro mundo é este”. Observando outra dos suas monotipias “A trama”, da década de 60 e que pertence à coleção do MoMa, parecemos escutar e ver um testemunho da artista: “é cansativo”, “pena”, “que nada”, “rasgou outra vez” (Fig. 6). Perece que o passado de uma pessoa deslocada ganha uma nova presença quando a artista luta delicadamente contra a fragilidade do papel. O procedimento artístico mostra um princípio de delicadeza: é cansativo, rasga, mas é preciso recomeçar.
Apesar da resistência em nomear sua prática segundo as disciplinas artísticas como a escultura, a pintura, o desenho ou mesmo uma técnica como a monotipia (Naves, 2014), Mira Schendel produziu objetos a partir da ação de dobrar e de realizar torsões em folhas de papel-arroz. O desenho ganha volume para dar forma a objetos orgânicos que existem apenas pela ação de gestos praticamente involuntários de dobrar, enrolar e dar nós. Em carta endereçada ao crítico Guy Brett, em 1965, a artista escreveu:
Eu comecei uma nova obra, talvez a mais importante para mim. “Escultura” no mesmo papel-arroz utilizada para os desenhos. Algo tecnicamente primário e muito fácil de fazer. De um ponto de vista ocidental, essas “esculturas” (que termo insensato!) podem ser vistas sob a perspectiva de uma fenomenologia do ser e do ter. De um ponto de vista oriental, elas estão em relação com o Zen... (Meu novo trabalho) em grande oposição a tudo o que é permanente e possível (Salzstein, 1996: 49-55).
Impermanência e impossibilidade estão na base da noção de vivência imediata em Mira Schendel. Geraldo Souza Dias, por exemplo, ao analisar as droguinhas, afirma que elas são “essencialmente desenhos no espaço, a linha tornando-se matéria, formas tridimensionais, sem, portanto, ocupar o espaço” (Dias, 2008: 216). Talvez por um viés antropológico, mais precisamente pelas palavras de Nadia Seremetakis, possamos entender a relação que a artista tem com o espaço é uma relação ontologicamente femi-nina: homens ocupam lugares, mulheres se tornam espaços (Seremetakis, 1991: 96). Essa observação – que também é uma operação de deslocamento – nos ajuda a compreender o volume de desenhos em monotipias, as droguinhas e uma instalação de Mira Schendel para a décima bienal de São Paulo, Ondas paradas de probabilidade, de 1969, com a qual concluiremos essa leitura da obra de Mira Schendel, a mostrar que, entre signo e sigilo, a escrita se tornou espaço, fluindo da letra à linha, do texto à transparência.
Continuando por droguinhas, as torções e formas de ser espaço mostram que elas portam a memória dos gestos de Schendel ao mesmo tempo que elas transportam certo humor. Na mesma carta remetida a Guy Brett, ela escreveu que droguinhas lhe trouxe alegria. “Você também vai rir” (Salzstein, 1996: 49-55), escreveu a artista para o crítico inglês. Com humor, Schendel alcançou um novo grau de abstração gráfica a partir da presença do papel e da ausência da letra. Dobras e nós estão sob o regime da escrita, expondo não apenas uma textualidade racional e abstrata, mas visceral e inacabada. Enfim, aos que acusaram a obra da artista de cerebral, droguinhas pode ser uma resposta bem-humorada, na qual o cérebro também é víscera.
Retornando às monotipias, trabalho que a artista nunca deixou de lado, em janeiro de 1967, ela retorna à Europa, desta vez a Stuttgart, convidada por Max Bense para expor na Studiengalerie der Technischen Hochschule. No breve catálogo da exposição existe um poema de Haroldo de Campos traduzido para o alemão por Elisabeth Walther e um texto de Bense, republicado em Pequena Estética. As letras retornam sob a forma de figura-bilidade da “redução gráfica” para “suspender a estrutura linguística” e, assim, migrar para o espaço pictórico. “Redução gráfica” é um termo utilizado por Bense quando afirma que “sua redução gráfica suspende a estrutura linguística a favor da pictórica”, ao que ele continua: “uma letra comporta-se como um ponto, a cadeia das letras como uma linha, e várias letras-linhas determinam superfícies, contornando-as ou abrindo-as de plano no espaço” (Bense, 2003: 225).
Através da migração da letra, a artista criou zonas mais pictóricas, onde ela também produz contágios linguísticos, não mais para manter uma oposição entre ambos, mas para buscar uma equivalência de espaços e de tempos para a força da presença de um “aqui” marcado e indicado por setas – abstração da indicação da passagem de um lugar a outro –, a questão ontológica e religiosa resolvida por Schendel. A potência do significante Preist den Herrn (“Louvemos o Senhor”) de uma monotipia de 1964-1965 não é meramente pictural. Ela nos ajuda a entender o valor de imanência da língua que incide no tempo instaurado no instante da frase, onde esta última marca um lugar da presença do significante “Senhor” no espaço pictórico. De modo suplementar, a escrita ocupa outra relação com o espaço, isto é, ela nos ajuda a manter os pés sobre a terra, como no exemplo de outra monotipia, graças à força com a qual ela segue com a parte inferior da letra T da palavra alemã “Zeit” que denota tempo. Neste caso, a linha do T que tanto pode passar por Zeit e por Tempo. A qualidade de tal presença ocorrerá em parte pelo movimento das linhas na instalação que Mira Schendel fará para Ondas paradas de probabilidade. Ligada diretamente a uma temática bíblica, atestada pelo subtítulo, “Antigo testamento, Livro de Reis, I, 12-13”, a obra é composta por uma centena de fios de náilon suspensos no teto e que descem até o chão. Em uma carta remetida no dia 26 de junho de 1969 ao filósofo Jean Gebser, a artista expõe a finalidade da obra: a transparência. Apesar da décima Bienal de São Paulo ter sido polêmica por causa da recusa de diversos artistas em participar, pois estávamos em plena ditatura civil-militar (1964-1985), Mira Schendel monta a instalação mesmo que a obra em questão não seja contestatária em primeiro grau.
O uso da citação bíblica, o modo como ela ou melhor, a obra, conseguiu tornar-se espaço a partir da reunião de materiais simples, concretiza a conquista do espaço e será uma nova passagem para a artista: da instalação o acrílico será incorporado ao seu repertório e vocabulário. Com esta instalação, Mira Schendel consegue tornar o signo, sigilo e o sigilo, signo. Ela afirma de modo simples que o outro mundo é este. Como atesta na mesma carta enviada a Gebser, comentando a escolha dos materiais da obra: “no que concerne o orçamento, a obra custará menos de 10 francos suíços” acrescen-tando ainda “não há nada para destruir”. De modo preciso, a história e a biografia da obra se cruzam de tal modo que a artista encontrou uma forma de dar carne à transparência, isto é, uma forma fenomenológica de expor o que não pode ser destruído. De modo geral, história e biografia também encontram na transparência formas materiais, pois esta, além de ser uma conquista, é algo da ordem do vivido: uma forma paradoxal da exposição de si, combinando neste campo os corpos dos visitantes de Ondas paradas de probabilidade em silhueta. Estes, no entanto, não adquirem o estatuto de participantes, marca incontestável de artistas neoconcretistas e pós-neoconcretistas.
Através da combinação de signo e de sigilo ela deu carne ao vazio do mundo. Vazio observado e analisado por críticos como Guy Brett e Sônia Salzstein, em Mira Schendel, não pode ser entendido como o espaço do não-ser. Talvez seja melhor nos situarmos mais próximos da análise de Mário Schenberg, isto é, que este vazio seria um “Nada devorador”, o que revela uma “experiência do romântico, que [a artista] vivera tão intensamente em sua juventude lombarda” até seguir em transformação por uma “paisagem ontológica” (Salzstein, 1996: 258), explorando signo e sigilo nas mais imperceptíveis qualidades do espaço.
A transparência em Mira Schendel não pode ser resolvida com definições filosóficas, pelo menos se esta não estiver ligada intrinsecamente a uma vontade material que mostra uma energia da fragilidade. Do mesmo modo, ela não pode ser resumida ao material utilizado pela artista no momento posterior a Ondas paradas de probabilidade. Isso implica que existe uma dinâmica entre o aspecto simbólico da letra e a matéria do papel. Dinâmica que exige um movimento lento de ocupação da mente e do corpo da artista para ocupar os vazios possíveis situado entre ambos.
Signo e sigilo não são correlatos necessários e justos do corpo e do espírito, ou da matéria e do pensamento. Eles são geradores de uma lentidão que a artista investia para a transparência em duas variações: a importância do vazio significante e da imanência vital. Vilém Flusser havia observado que a transparência é a consequência da capacidade do olhar humano de penetrar a superfície das coisas (Flusser, 2007: 246). Esse olhar, segundo Flusser, se bifurca, ele é brutal e disciplinado. O primeiro – o brutal – seria fenomenológico, artístico ou místico e o segundo – o disciplinado – seria o olhar analítico, formulado em termos de pesquisa científica que, em progressão, vai revelando estruturas e estruturas de estruturas cada vez mais transparentes. Flusser se preocupa com a perda da concretude do mundo. Mira Schendel, nesse sentido, estaria mais preocupada com formulações da concretude do vazio do mundo. Nela o olhar fenomenológico não é distinto do disciplinado. Suas setas apontam para outra direção: da pintura ao desenho, da escultura à instalação – isto é, em meio a esse vocabulário artístico que se aproximaria do termo Bodenlos, mas para em seguida afastar-se e, enfim, designar um fazer pleno de interrogações em torno de uma vivência imediata, “nel tempo troppo lieve”, na força da sua fragilidade, nos signos que seguem em direção a múltiplos espaços com migrações sigilosas.
Sabendo que “sigilo” é uma pequena marca, podendo ser um selo que garante uma circulação segura de uma carta entre duas pessoas, ou de uma mensagem para algumas pessoas, as duas palavras não deixam de apresentar uma equivalência com a assinatura e talvez de um método. Giorgio Agamben, em Signatura rerum (sobre o método), se serve da epistemologia de Paracelso para afirmar que “nada é sem signo” (Agamben, 2008: 37) (nichts ist ohne ein Zeichen), afinal, a natureza emite uma assinatura localizando-a em um ponto preciso, marcando a singularidade de cada pedra, de cada animal, de cada planta, não por categorias, mas pela presença única no mundo, que para Paracelso seria a Kunst Signata, sendo esta, segundo Agamben, “o paradigma de toda assinatura” (Agamben, 2008: 37). Segundo Agamben, “que o arquétipo da assinatura, a Kunst Signata por excelência seja a língua obriga a ouvir esta semelhança não como algo da física, mas segundo um modo analógico e imaterial. A língua, que guarda o arquivo das seme-lhanças imateriais, é também o baú das assinaturas” (Agamben, 2008: 40). Deslocando a assinatura de Paracelso, Giorgio Agamben chama a atenção para a marca produzida no mundo e para a ação adâmica de marcar a linguagem, sendo que este não possuía marcas. Fazendo um movimento de Agamben para Mira Schendel, podemos entender que a artista não assinava apenas o seu nome para marcar a condição autoral, seja quando mantinha palavras manuscritas nos monotipos, datilografadas que depois ficam suspensas entre placas de acrílico, seja pelo uso que ela fez de letras industriais. Entendendo a partir de Agamben que a assinatura não é uma relação causal, a assinatura, em Mira Schendel, se assemelha a um modo de estabelecer relações materiais e espirituais com o mundo, ela é signo, sigilo. Existe na assinatura um fenômeno da transmissão, algo que Walter Benjamin nomeia através da linguagem como a comunicação de “conteúdos espirituais” (Benjamin, 2000: 142). O ensaio de Benjamin, “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana” pode ser considerado um texto precursor para o ensaio de Agamben, dado que o filósofo alemão evoca a questão do método nas primeiras linhas. Para Walter Benjamin, “no interior de toda criação linguística reina o conflito entre o expresso e o exprimível de uma parte e, de outra, o inexprimível e aquilo que não é expresso” (Benjamin, 2000: 151). Por intermédio de signo e sigilo, Mira Schendel mobilizou duas palavras que dão estabilidade ao espiritual e ao verbal. Simultaneamente, a artista põe as palavras em movimento não para criar uma instabilidade, mas, pelo contrário, para multiplicar a estabilidade, pois afinal, é preciso – para concluir – situar o movimento proposto na monotipia a partir – literalmente – de dois pontos. A palavra “ponto” aparece duas vezes nas monotipias, acima e abaixo. Logo abaixo da primeira palavra “ponto” que se presume na condição de título lê-se “sonho/ curto”. A tentação seria associar o sonho ao inconsciente a partir da perspectiva de Sigmund Freud (Freud, 2010). No entanto, do “sonho” e “ponto”, dito de modo breve, estariam duas aberturas para a condensação e a pausa, um modo de delimitar – no sentido físico do sonho e no sentido gramatical do ponto, pois, afinal, ambos assumem a condição de signo – um movimento que, por sua vez, não tem fim. Como gostaríamos de demonstrar com a leitura das monotipias de Mira Schendel, a assinatura para ela e na sua obra se ramificaria para além do nome próprio, tendo ainda uma concepção de desenho através da letra e do traço, revelando uma escrita do mundo em termos de uma vida imediata: em uma passagem elegíaca da vida ao símbolo. Para ilustrar essa passagem, podemos concluir com outra obra da artista. Trata-se de um desenho sem título feito a nanquim em meados dos anos sessenta. Nele há uma seta que ultrapassa uma densa moldura pintada em preto. Depois que a seta cruza a moldura, lê-se o imperativo “passe”, o que nos abre permanentemente o campo para novas interpretações da escrita da artista [4].
REFERÊNCIAS
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BENJAMIN, Walter (2000). “Sur le langage en général et sur le langage humain”. Œuvres 1. Paris, Folio.
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FLUSSER, Vilém (1992). Bodenlos: eine philosophische Autobiographie. Düsseldorf: Bollmann.
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OSBORNE, Peter (1995). The Politics of Time: Modernity and Avant-Garde. Londres: Verso.
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NOTAS
[1] Rodrigo Naves, em “Mira Schendel, o mundo como generosidade” nos ajuda a compreender uma cisão com a qual nos deparamos, a de forma contra a significação e vitalidade: “Hoje, quando a noção de forma passou a ser tratada como um obstáculo à significação e à vitalidade da arte, me parece importante recordar a generosidade com que grandes artistas modernos lidavam com a matéria do mundo. E era assim que as discretas intervenções de Mira procuravam revelar a interdependência entre os fenômenos: justamente pela afirmação recíproca entre eles.” Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/noticias/artes,mira-schendel-o-mundo-como-generosidade,346551. Último acesso: 1 de julho de 2018.
[2] Trenzinho, nas palavras de Geraldo Souza Dias, seria uma variante de droguinhas: “fio de náilon no qual são penduradas folhas de papel japonês branco, como roupas no varal. Essas folhas irradiam uma energia primordial e liberam certa excitação metafísica, algo ainda sem peso ou substância, tempo em estado puro, espaço em estado puro. O título contribui para a visualização de uma sequência de unidades impressionantemente simples, porém significativas, que formam um todo” (Dias, 2009: 216).
[3] Poderíamos interpretar a afirmação de Geraldo Souza Dias sobre droguinhas, primeiro, a partir da força do desenho e, segundo, pela dinâmica entre signo e sigilo: “suas vibrações visuais sutis provocam no espectador o desejo análogo de decifrar seu processo oscilatório, seus silenciosos múrmuros. Conviver com elas exige a abertura de nossas reservas ocultas, para que possamos fruir essas estruturas inéditas” (Dias, 2009: 216).
[4] Parte deste estudo foi apresentado sob a forma de aula inaugural na Universidade de Zurique no dia 7 de setembro de 2017 sob o título Mira Schendel: a vida imediata e faz parte de um estudo em elaboração sobre a obra da artista.
© 2019 Eduardo Jorge de Oliveira.
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