Textos Artísticos que Geram Textos Artísticos: Uma Análise Semiótica de Motores Textuais de Rui Torres

Vinícius Carvalho Pereira

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MATO GROSSO
orcid: 0000-0003-1844-8084

 

 

I. Introdução

No bojo dos experimentalismos literários desde o último quarto do século XX até os dias de hoje, merecem destaque as empreitadas artísticas que lançam mão de tecnologias para produzir formas poéticas e/ou ficcionais indissociáveis da materialidade digital. Tais experimentações, advindas de uma série de mudanças estéticas, epistêmicas e sociais ocorridas nos últimos cinquenta anos, não podem ser compre-endidas fora da revolução tecnodigital que marca a era da informação.

Não há, no meio acadêmico, consenso quanto à nomenclatura utilizada para se referir a produções dessa natureza. A maioria dos autores, como Hayles (2007), Santaella (2012) e dos Santos (2003), utilizam de forma indistinta termos como “literatura eletrônica”, “literatura cibernética/ ciberliteratura” e “literatura digital”, opção também adotada neste artigo. Ainda que se reconheça que cada um desses adjetivos atrelados ao substantivo “literatura” denota a especificidade do campo por uma associação particular (respectivamente, ao eletrônico, em oposição ao elétrico; ao cibernético, por referência à comunicação entre máquinas; e ao digital, em oposição ao analógico), o conjunto de obras recobertas pelos três termos é praticamente o mesmo, o que justifica seu uso intercambiável neste contexto.

Haja vista a vastidão de tal campo, bem como a celeridade com que este vem crescendo, opta-se no presente artigo por uma análise mais vertical de um gênero específico da ciberliteratura: software gerador de poemas, isto é, uma máquina digital capaz de produzir textos poéticos inéditos por procedimentos de combinatória. Um apanhado do estado da arte sobre o tema facilmente identifica pontos reincidentes na abordagem dos pesquisadores: descrições técnicas do funcionamento dos sistemas; análise crítica de poemas aleatoriamente gerados; reflexões teóricas sobre a possibilidade de a poesia ser produzida por autômatos; experimentos com leitores tentando distinguir textos produzidos por escritores humanos daqueles gerados por máquinas; comparações com poéticas combinatórias anteriores ao advento da computação. Em linhas gerais, a maior parte desses estudos toma como artísticos os poemas produzidos pelo software, mas não os sistemas em si, os quais são frequentemente reduzidos à condição de ferramentas generativas.

Na contramão dessa tendência, o presente artigo, embora reconheça a possibilidade de atribuir valor literário a poemas produzidos por software, volta-se para a dimensão estética dos próprios sistemas, aqui considerados como textos artísticos que geram textos artísticos. Para tanto, não se realizará neste trabalho a exegese de poemas, operação crítica realizada em pesquisas prévias deste autor (Pereira, 2017; Pereira, 2018a; Pereira, 2018b). Em vez disso, proceder-se-á aqui à análise de três sistemas produzidos pelo artista e engenheiro português Rui Torres – Amor de Clarice (2005), Amor de Clarice – v.2 (2008) e Fantasia breve, a palavra-espuma (2016) –, a fim de lê-los como obras estéticas que ressignificam os poemas por elas produzidos, por meio de metamensagens do artista/desenvolvedor sobre modos de leitura dos textos automaticamente gerados. Dado que a área de Estudos Literários ainda não tem métodos específicos para a análise de software dessa natureza, recorre-se nesta pesquisa a conceitos e procedimentos da Semiótica aplicada à área de Interação Humano-Computador, assumindo que a interação entre usuário e sistema é um ato comunicativo mediado por signos em uma interface.

Na próxima seção, discute-se o que é e como funciona um software gerador de poemas, bem como por que este pode ser tomado em si mesmo como artístico, sobretudo se considerados aspectos semióticos particulares à sua constituição. Na seção seguinte, procede-se à análise dos três supracitados sistemas a fim de identificar evidências de sua instanciação como discursos artísticos em cuja interface figuram signos produzidos por Rui Torres a fim de ressignificar os poemas automaticamente gerados por suas máquinas. Por fim, apresentam-se as considerações finais deste trabalho, a que se acrescentam perspectivas de futuras pesquisas.

 

II. Software gerador de poemas: texto artístico que gera textos artísticos

De modo geral, pode-se dizer que um software gerador de poemas é uma máquina digital capaz de produzir textos poéticos inéditos a partir da seleção e combinação de elementos cadastrados a priori em seu bancos de dados. Segundo Torres e Barbosa (2000: 2), tal tipo de sistema constitui a «Literatura Generativa, que, mediante “geradores automáticos”, apresenta ao leitor um campo de leitura virtual constituído por infinitas variantes em torno de um modelo».

A depender do projeto de software e do projeto artístico (se é que se pode falar em projetos distintos neste caso), os bancos de dados com que essas máquinas operam incluem variadas regras de morfossintaxe, metrificação, isotopia semântica; palavras, expressões ou versos retirados de outros textos ou criados pela equipe de desenvolvimento; e elementos de multimídia, como sons, imagens, vídeos. Claro está, com a velocidade que caracteriza o desenvolvimento tecnológico contemporâneo, tais possibili-dades estão continuamente em revisão e expansão em novos experimentos.

Para Katherine Hayles (2007), “[n]a arte gerativa, [...] um algoritmo é usado ou para gerar textos de acordo com um esquema aleatório, ou para embaralhar e rearranjar textos preexistentes”. Isso significa que cada poema gerado é simultaneamente fruto da aleatoriedade (seleção randômica de elementos pela máquina) e de um conjunto de regras de combinação programadas pelo engenheiro de software.

Embora seja quase impossível precisar qual foi o primeiro gerador automático de poemas, haja vista a labilidade do registro dessas produções [1] em mídias digitais, adota-se convencionalmente como marco inicial o Stochastische Texte, desenvolvido pelo alemão Theo Lutz em 1959 (Block e Torres, 2007: 7). O sistema consistia em um banco de dados formado por dezesseis sujeitos e dezesseis predicados retirados do livro Das Schloß (em português, O Castelo), de Kafka. Tais sintagmas eram aleatoriamente recombinados em estruturas sintáticas pré-definidas – donde a referência à estocástica no nome do sistema –, gerando um número pequeno de variações gramaticalmente corretas na língua alemã.

Ainda em termos de cronologia e evolução da literatura digital, convém ressaltar que Philippe Bootz (1999) compreende os geradores automáticos de poemas como uma segunda onda na história da ciberliteratura, dando continuidade à primeira, marcada por hipertextos narrativos; e antecedendo a terceira, em que se destaca a inserção de elementos de multimídia nas obras. Contudo, isso não quer dizer que uma onda tenha suplantado a outra, mas sim que, com o avanço tecnológico, novos gêneros ciberliterários foram sendo desenvolvidos e passaram a conviver com os que os antecediam.

Nesta seção, cabe ainda justificar a posição aqui adotada ao tratar um software gerador de poemas como obra literária em si. Em primeiro lugar, há que se notar que um sistema computacional não é uma máquina como qualquer outra: procurem-se-lhe porcas e parafusos, circuitos e tubos, e a busca será embalde. Um software é um construto sígnico escrito em alguma(s) linguagem(ns) de programação e, para funcionar, exige uma base material (o hardware) que o preceda e que pode influenciá-lo, mas que não o contém. O mesmo vale para qualquer texto produzido por um autor: conjunto de signos organizados por uma sintaxe inerente a determinada língua, os quais só se realizam em uma base material que os precede (seja uma superfície a ser grafada, no caso da escrita, seja uma massa sonora, no caso da fala), mas que com eles não se confunde. Ademais, como qualquer texto, um sistema computacional tem um ou mais autores [2], os quais imprimem ao projeto e à implementação um estilo próprio (na concatenação das partes ou na seleção das estruturas), oriundo da criatividade ou da intertextualidade (já que um sistema é frequentemente criado reaprovei-tando trechos de código de outros sistemas).

Aceito que um sistema computacional é produto de uma escritura, resta compreender em que medida determinados sistemas, como os geradores de poemas de Rui Torres, podem ser obras de arte, e não meras ferramentas (ou utensílios), a fim de que se possa dizer que se trata de software em si literário – literatura aqui entendida como convergência dos semas de “escritura” e “arte”. Para tal fito, expõem-se a seguir algumas ponderações de Heidegger (2010), que, em A origem da obra de arte, disserta sobre a relação intrínseca entre a arte e a verdade.

Em sua argumentação, o filósofo alemão se vale de uma distinção que cumpre retomar entre o utensílio e a obra de arte. Tomando como mote a imagem de um par de sapatos usados por uma camponesa e a tela O par de sapatos, de Vincent Van Gogh (1886), Heidegger (2010) assevera que ambos são coisas no mundo, produzidas pelo homem e definidas por um movimento dialético entre o fechamento da Terra e a abertura do Mundo [3], o que o discurso filosófico metafísico teria reduzido à dicotomia entre a resistência do material e a incisão da forma. Para o filósofo alemão, justamente nessa tensão residiria uma diferença fundamental entre o utensílio e a obra de arte.

No caso do utensílio, a forma, a substância e a relação entre ambas seriam condicionadas por uma finalidade, visto que toda ferramenta serve para algo e sua conformação tem implicação direta na eficiência de seu uso. No exemplo dos sapatos da camponesa, basta pensar que o trabalho na lavoura exige um calçado que seja estável e resistente, o que de pronto coibiria sapatos de salto ou com laçarotes, de tecido ou couro fino. No contexto de sistemas computacionais, não idealizado por Heidegger, mas relevante para a discussão ora desenvolvida, a função de uma agenda digital (software com fins práticos na condução “eficiente” da vida cotidiana; da ordem do utensílio, portanto) define requisitos formais a serem contem-plados por projetistas e desenvolvedores, como a associação a um calendário e a um relógio, a possibilidade de inserção de tarefas pelo usuário a qualquer momento etc.

Já a obra de arte, ainda que não prescinda de um suporte coisal e possa ser inserida na vida social, tem por essência o não pragmatismo e um fechamento em si mesma: a obra não serve a nada, porque não serve para nada. Nesse sentido, caso a tela O par de sapatos viesse a ganhar valor de uso, isso só se daria por violação do repouso ensimesmado que ela, como obra de arte, tem por essência (Heidegger, 2010).

Não estando, pois, submetida a um telos ou a uma causalidade, a forma da obra não é a que melhor se presta a um fim, mas aquela que revela sua verdade – única razão de ser da arte. Heidegger diz, a esse respeito, que quanto à obra não interessa sua origem, mas sim seu originário – essência e verdade que só se manifestam quando se deixa a obra repousar em si, não violada por um pensamento que lhe queira atribuir sentido ou uso. No caso de um software gerador de poemas, tomá-lo como obra de arte implica entendê-lo como sistema computacional desenvolvido sem funcionalidade fora dele mesmo, tal qual cada um dos poemas que essa máquina gera.

Sob esse diapasão, compreendem-se tanto o software gerador quanto os poemas gerados como sistemas de escritura  que têm a intransitividade (Barthes, 1970) como regime semiótico por excelência, em que a língua se volta sobre a língua e o texto se volta sobre o texto, para falarem de si, e não de um referente externo. Aliás, sob paradigma epistemológico bastante semelhante, já Jakobson (2008) chamara de poética a função das mensagens que focalizam a si mesmas, em sua organização interna autorreferente.

Tal menção a Jakobson torna-se ainda mais pertinente se considerarmos que os atuais estudos brasileiros de Semiótica aplicada a interfaces computacionais fundamentam-se majoritariamente nas concepções de língua, linguagem e comunicação do formalista russo. A teoria da Engenharia Semiótica [4], por exemplo, compreende que um usuário é o receptor de uma dupla mensagem assíncrona codificada em linguagem de interface, a qual é emitida pelo designer do sistema. Trata-se de dupla mensagem porque, além de ser canal de comunicação de determinado conteúdo entre designer e usuário, a interface de um sistema computacional precisa transmitir uma metamensagem, isto é, uma mensagem metalinguística que explique ao usuário como funciona a linguagem da interface e quais são as expectativas de comunicação por intermédio daquele sistema (de Souza, 2014).

Ao sistema de comunicação jakobsoniano, a Engenharia Semiótica acrescenta, com base na semiótica de Peirce, uma proposta de interpretação dos signos que compõem a mensagem veiculada pela interface. Para tanto, classifica-os sob um modelo triádico que dialoga com as instâncias da primeiridade, secundidade e terceiridade, mas não se confunde com a tradicional divisão de ícone, índice e símbolo. De Souza e Leitão (2009) justificam que, para as especificidades semióticas de interfaces computacionais, é mais pertinente a adoção das seguintes categorias, também consideradas no presente artigo: signos estáticos (cuja representação é imóvel e persistente ao longo do tempo), signos dinâmicos (cuja representação se transforma ao longo do tempo, independente ou não da interação com o usuário) e signos metalinguísticos (que proveem ao usuário insumo para a interpretação de outros signos).

A Engenharia Semiótica ressalta também uma distinção fundamental entre as semioses computacionais e as humanas: um software só pode construir um único interpretante lógico para relacionar um objeto e um representamen, repetindo eternamente o mesmo processo semiótico; os seres humanos, por sua vez, associam objetos e representamens em interpretantes instáveis, haja vista que raciocinam por abdução, criando hipóteses interpretativas que podem ser questionadas ou refutadas toda vez que se mostrarem improcedentes.

Essa divergência estruturante entre o pensamento maquínico e o humano é tratada na teoria como potencial fonte de “mal-entendidos” no uso do software por usuários, já que estes não podem falar diretamente com o designer e negociar sentidos por movimentos abdutivos recíprocos. Em vez disso, têm de interagir com um preposto do designer, a interface, estando sujeitos a quebras de comunicabilidade (de Souza, 2014) e a fracassos no uso do software como ferramenta – falhas no design que devem ser consertadas por técnicas sistemáticas de redesign.

Todavia, tal paradigma de falha e conserto, comunicabilidade e ferramenta foi pensado para uma noção de software como utensílio, e não como obra de arte, se retomarmos a perspectiva heideggeriana. Assim, no contexto de software gerador de poemas, propomo-nos a ressignificar alguns postulados da Engenharia Semiótica a fim de entender tais descompassos entre semioses maquínica e humana não como falhas de comunicação a serem corrigidas, e sim como dinâmicas de opacidade, ruído, polissemia e instabilidade semiótica, elementos que as correntes pós-estruturalistas consideram inerentes à escritura literária. Do mesmo modo, as metamensagens (de Souza, 2014) veiculadas pelos signos das interfaces dos geradores de poemas não são neste trabalho entendidas apenas como mensagens de segundo grau que expliquem ao usuário como usar os sistemas. Em vez disso, postula-se aqui que se trata de discursos artísticos que ressignificam cada um dos textos gerados pelo software, estabelecendo com ele relações de sentido que propõem variados modos de leitura poética.

Partilhando do entendimento de computadores como máquinas semióticas, Philippe Bootz (2006) afirma que a experiência poética tradicional é diferente da que se dá por meio de um software gerador de textos porque, no primeiro caso, o leitor tem acesso direto ao produto que o autor materializou e registrou em uma mídia. Já no segundo caso, há uma incontornável lacuna semiótica (Bootz, 2006), de papel crucial na instanciação do sistema como obra de arte. Sob tal perspectiva, um autor de poesia digital escreve um texto A (no caso, o software), mas o leitor tem acesso a um texto B (os poemas gerados pelo software) para ressignificá-lo em um texto C (sua interpretação). Salta aos olhos o desencontro semiótico que há entre esses textos, imposto pelo processamento computacional: o computador é, afinal, uma máquina que lê (e processa) em primeira mão o texto do autor, para só então exibir o resultado dessas operações na interface, a fim de que o leitor possa lê-lo e interpretá-lo a posteriori.

Desse modo, um insidioso paradoxo assola a ciberliteratura: ao mesmo tempo em que não se pode ver uma relação de identidade entre o texto que o autor escreve e aquele que o leitor lê em um sistema gerador de poemas, tampouco é admissível dizer que um independe do outro. Há entre eles uma relação de flutuação controlada, mas imprevisível, considerando a aleatoriedade da seleção de elementos e a sistematicidade das regras que presidem à combinação dos mesmos. Fruto de uma tensão entre repetição e diferença, tal relação semiótica entre o que é escrito e o que é lido, mediada pelo sistema, é chamada por Bootz (2006) de signo performativo.

No encalço desses fenômenos semióticos, procede-se, na próxima seção, à análise de três geradores de poemas produzidos por Rui Torres: Amor de Clarice (2005), Amor de Clarice – v.2 (2008) e Fantasia breve, a palavra-espuma (2016), todos disponíveis no Arquivo Digital da Po.Ex - Poesia Experimental Portuguesa. De tal modo, objetiva-se identificar evidências de sua instanciação como discursos artísticos que propõem modos de leitura dos poemas automaticamente gerados.

 

III. Metamensagens dos sistemas analisados: proposições de leitura

 

Amor de Clarice

Lançado em 2005, Amor de Clarice foi uma das primeiras obras de Rui Torres registradas no Arquivo Digital da PO.EX, mas já antecipava algumas das características que viriam a marcar a produção ciberliterária torreana, sobretudo no que tange à estética do estranhamento (Chklovski, 1978) e à explícita intertextualidade com obras da literatura luso-brasileira. O projeto artístico de tal sistema dialoga com o conto “Amor” [5], de Clarice Lispector (1998), valendo-se basicamente de dois procedimentos dialógicos distintos para operar a desnaturalização da leitura: ora a repetição de trechos integrais do texto clariceano em arquivos de áudio e em ilegíveis sobreposições no plano de fundo das telas, ora o rearranjo de palavras extraídas do conto em inauditos sintagmas. Estes, como signos dinâmicos, vertiginosamente piscam, deslizam e se sobrepõem na interface, em direções e tempos distintos, como se vê na Figura 1, que representa uma captura de tela do sistema.

 


Figura 1. Tela inicial de Amor de Clarice (Torres, 2005).

 

Por sua vez, o leitor, enquanto assiste à deriva das palavras, pode também perpetrar desconstruções do texto verbal, tanto no estrato visual quanto no fônico. Para tal, pode arrastar suas frases para a direita ou para a esquerda com o cursor, criando novas associações ou sobreposições vocabulares, ou clicar sobre as palavras para que estas sejam pronunciadas novamente na leitura em off. Reiterando esse modus operandi para cada um dos 52 poemas que constituem a obra, Amor de Clarice convida o leitor a uma experiência dialética entre repetição e diferença do texto original, atualizado para o ciberespaço.

Amor de Clarice pode ser dita uma obra de gênero híbrido, haurindo elementos das já mencionadas três ondas da ciberliteratura: a hipertextual, a generativa e a animada com elementos multimídia. Isso porque, em termos macroestruturais, o software de Rui Torres é um compósito de poemas verbivocovisuais animados em Flash, entre os quais se pode navegar de maneira linear ou aleatória, à escolha do leitor. Essas duas possibilidades de rotas de leitura acabam por sugerir que cada um dos poemas do sistema seja interpretado de maneira dual, ora como um universo semântico autossuficiente, ora como parte de uma estrutura poética maior: o conjunto da obra. De todo modo, como o sistema se desenrola de maneira variável de acordo com a interação promovida pelo leitor, estabelece-se sempre uma errática relação de flutuação controlada entre o potencial programado por Torres e a materialidade atualizada pelo leitor, em consonância com o conceito de signo performático de Bootz (2006).

Logo na primeira tela de Amor de Clarice (reproduzida na Figura 1), o leitor é defrontado com um elaborado compósito de signos metalinguísticos que o convidam a entender a obra e cada um de seus poemas como repetição e diferença, intertextualidade e estranhamento. Nesse sentido, observe-se que, no primeiro plano da interface, leem-se fragmentos de frases da mais emblemática cena de “Amor”: a epifania da personagem Ana após ver um cego mascando chicletes, momento em que a protagonista tem abaladas as certezas de sua vida pacata e dolorosamente aguçadas suas experiências sensoriais do mundo.

Por sua vez, no plano de fundo dessa mesma tela, entreveem-se camadas superpostas, à guisa de palimpsesto, de um texto verbal; trata-se de excertos teóricos sobre o Formalismo Russo, em que a primeira palavra que se lê, no canto superior à esquerda, é o antropônimo russo Chklovsky. Dado que este é sabidamente o nome do pensador que desenvolveu, na Teoria Literária, o conceito de “estranhamento” para referir-se à desautomatização dos sentidos que a literariedade opera, tal signo onomástico se soma ao fragmento da cena de “Amor” para denotar o que faz cada um dos poemas de Amor de Clarice: o adensamento da percepção de quem vê não um cego a mascar chicles, mas um sistema computacional a mastigar trechos de um texto literário e recriá-lo por expedientes multimídia em breves poemas animados.

Por sua vez, em cada um dos poemas se replica a sobreposição visual de camadas de signos, reiterando a ideia de intertextualidade como palimpsesto e conotando a estruturação de todo software como um artefato de escritas em diversos níveis: a linguagem de programação, a linguagem da interface, a linguagem multimídia... Para tanto, 26 dos poemas são exibidos sobre um plano de fundo composto por fragmentos estratificados de “Amor”, como no exemplo da Figura 2, ao passo que os outros 26 se dão a ler sobre vídeos de objetos turvos e pulsantes em loop, os quais remetem a elementos do conto de Clarice, tais quais uma xícara, um vaso de flor ou um relógio, como na Figura 3.

 

 


Figuras 2 e 3. Respectivamente, telas aleatórias da primeira e da segunda série de vídeos de Amor de Clarice (Torres, 2005).

 

Cumpre ainda ressaltar um último ponto crucial de Amor de Clarice no que diz respeito às formas pelas quais a arquitetura do software propõe modos de leitura dos poemas que o compõem: seus paratextos digitais. Antes de iniciar o percurso pela obra, o leitor acede, ao clicar no link para o sistema, a uma interface diagramada no mesmo estilo de Amor de Clarice, com textos estriados no plano de fundo, mas esta apresenta elementos verbais de natureza distinta no primeiro plano. Um conjunto de frases informa que “O poema Amor de Clarice é inspirado num conto da autora brasileira Clarice Lispector” (Torres, 2005); que foi produzido conjuntamente por Rui Torres, Nuno M. Cardoso, Carlos Morgado, Luis Aly e Ana Carvalho; que está dividido em duas séries de 26 poemas cada uma, entre as quais o leitor deve navegar linear ou aleatoriamente usando botões; e que a interação inclui a possibilidade de clicar em palavras na tela e arrastá-las.

É curioso pensar que, muito embora a constituição semiótica de todo o sistema jogue com as experiências da vertigem, do estranhamento e da labilidade (dos sintagmas moventes e dos sentidos movediços), em consonância com o conteúdo dos poemas e o motivo central da narrativa de Lispector, essa tela paratextual prima por uma opção radicalmente distinta: a explicação clara e algo didática do funcionamento da obra por meio de signos metalinguísticos explícitos. O tom injuntivo, sobretudo nas orientações para navegação por meio de botões, dá-lhe um ar de manual de instrução, caro ao utensílio e estranho à obra de arte. É como se, ainda que já concebesse um de seus primeiros produtos ciberliterários como artístico, Torres ainda estivesse à procura de um equilíbrio entre o estranhamento e a legibilidade, apostando, pois, na redação de uma metamensagem que esclarecesse ao leitor como este deveria ler a obra (ou mesmo usá-la, mantendo-se o campo semântico do utilitário manifesto nesse paratexto).

 

Amor de Clarice – v.2

Após a produção de Amor de Clarice, Rui Torres desenvolveu novo projeto ciberliterário centrado na intertextualidade com o conto de Lispector, lançando em 2018 Amor de Clarice – v.2. Embora o título sugira tratar-se de uma segunda versão do sistema anterior, o que há, na verdade, é um produto bem distinto, com menor hibridização de diferentes gêneros de literatura eletrônica. Amor de Clarice – v.2 lança mão de menos elementos de multimídia e de navegação hipertextual, enfatizando em sua constituição o processo generativo randômico de textos. A obra se constitui como um motor textual, isto é, um software gerador de poemas por procedimentos de seleção e combinação de palavras e sintagmas do conto “Amor”, com programação em Flash, Actionscript 3, Perl e PHP.

Diferente de Amor de Clarice, a v.2 não apresenta poemas com forte apelo óptico: sua interface é bastante sóbria, sendo o fundo dominado por escalas de cinza e trechos sobrepostos do conto de Clarice sem contraste cromático que os realce, ao passo que, no primeiro plano, leem-se os poemas de letras brancas sem efeitos de movimento. A predominância de signos estáticos sobre os dinâmicos em uma escala cromática de preto e branco nesse sistema sugere ao leitor uma experiência poética com bem menos recursos no plano visual, de modo que este deve concentrar seus esforços exegéticos nos demais estratos quando da interação com cada poema. Considerando ainda que a tônica do conto de Lispector é o estranhamento advindo de uma epifania e que as frases referentes a tal estranhamento são justamente as escolhidas por Rui Torres para compor os textos de ambos os sistemas, a desnaturalização ensejada pelos poemas de Amor de Clarice – v.2 deve ser lida como de outra ordem: não da experiência sensorial, mas sim da verbal.

Ademais, se Amor de Clarice apostava numa experiência da desorientação por meio da possibilidade de navegação aleatória entre os poemas, a v.2 nos convida a ler os textos sob outro diapasão. Os dez poemas-base com que o leitor pode interagir já estão todos disponíveis na interface, bastando descer a barra de rolagem para visualizá-los verticalmente alinhados no centro da tela. Tal disposição simultânea dos signos verbais sugere não mais uma relação dialética entre as partes (poemas isolados) e um todo (o conjunto de poemas formando o sistema), mas sim uma quase equivalência entre os dez poemas disponíveis.

Também as formas de interagir com os poemas são diferentes nesse sistema, em comparação com o anterior. Se, em cada texto de Amor de Clarice, o que podia o leitor fazer para alterar a materialidade discursiva era arrastar as palavras ou clicar nelas para repetir sua prolação no áudio, na v.2 as possibilidades são outras. O leitor não pode aí fazer as palavras deslizarem na tela, mas, ao clicar sobre um verbo, substantivo ou adjetivo, dispara sua substituição randômica por outro termo de mesma classe gramatical no banco de dados, como se pode notar no contraste entre as Figuras 4 e 5. Abaixo de cada um dos poemas, vai sendo dinamicamente atualizada a cada clique a quantidade de “poemas possíveis”, de que se subtrai um a cada nova permuta lexical. Da impermanência da materialidade discursiva e da aleatoriedade com que esta é alterada na interação entre o usuário e a máquina, advém o estranhamento verbal na experiência artística que Amor de Clarice – v.2 proporciona.

 

 


Figuras 4 e 5. Telas de Amor de Clarice – v.2 (Torres, 2008).

 

As faltas de título, letras maiúsculas, sinais de pontuação ou métrica regular funcionam como índices que reforçam a ideia da aleatoriedade constitutiva dos poemas, sugerindo que estes não têm suas partes concatenadas em um todo coeso. De tal maneira, replica-se para a dimensão individual de cada texto a organização macroestrutural da interface por simples justaposição de elementos e define-se, por extensão, que o estranhamento por que passa a personagem Ana, no conteúdo de cada poema, é fruto de um acidente, um acaso, tão aleatório quanto as permutas que o software engendra.

Como consequência desse fato, a noção de autoria subjacente aos poemas de Amor de Clarice – v.2 torna-se também bastante distinta da que vigia na primeira versão, o que afeta os modos de compreender a produção de sentidos no sistema. Em Amor de Clarice, restava patente que todos os poemas tinham seus elementos verbais definidos por Torres, a partir do conto “Amor”, cabendo ao leitor apenas movimentar as palavras na interface e navegar entre diferentes poemas usando os botões definidos nos signos metalinguísticos do paratexto explicativo. A seu turno, em Amor de Clarice – v.2, complexifica-se a relação entre escritor e leitor, na medida em que este pode afetar a seleção lexical dos dez poemas-base compostos por Torres com excertos de Lispector, tornando-se, pois, escrileitor (Barbosa, 2003) desses textos. Conquanto na parte superior da interface haja um paratexto designativo das fontes sobre as quais se constitui o banco de dados (“Amor de Clarice: a partir de textos de Rui Torres e Clarice Lispector”), a locução prepositiva “a partir de” figura aí como signo metalinguístico a abrir a leitura dos poemas para uma diversidade que parte de – mas não se limita a – textos desses autores.

A fim de explicitar mais uma dobra nesse sistema de autoria compartilhada, cumpre também notar que Amor de Clarice – v.2 está atrelado a outro sistema: o Poemário, um editor online de poesia combinatória programado por Rui Torres e Nuno Ferreira. Tal software permite ao artista a definição de padrões estruturais dos poemas gerados, segundo algoritmos para organização frasal, métrica e acentual; a escolha de palavras que podem ser mobilizadas na produção dos poemas (agrupadas em categorias morfossintáticas previamente definidas); e a mobilização de recursos audiovisuais para exibição dos poemas na tela. Contudo, a despeito do alto grau de controle sobre as regras de geração dos poemas que podem ser programadas no Poemário, o artista jamais vem a conhecer o texto final que o usuário lerá ao interagir com Amor de Clarice – v.2, dada a aleatoriedade do processo generativo e as imprevisíveis escolhas do leitor quanto aos termos que devem ser permutados por seus cliques. Analogamente, também não pode o leitor ver o texto que o artista escreveu ao programar o sistema; mostra-se-lhe apenas o produto do que a máquina leu, processou e produziu, estabelecendo-se, novamente, a dinâmica do signo performático.

Ainda no que tange à intrincada questão da autoria a influenciar os modos de ler os poemas de Amor de Clarice – v.2, há que se notar uma funcionalidade que esse sistema apresenta, embora deveras incomum em um software generativo: a possibilidade de salvar um poema gerado. O leitor é aqui tão instado a ler como cocriações suas os poemas transformados por seus cliques que o sistema até lhe oferece um botão para compartilhá-los em um blog específico. Reconhecendo como parcialmente seus esses textos, o leitor pode preservá-los do olvido e da deleção (destino esperado para textos gerados sem mais esforço que alguns cliques). Assim, o que é aparentemente puro movimento e mudança pode ter sua leitura revestida por um cariz de permanência, através de um botão que transforma o poema dinâmico em signo estático a ser compartilhado em uma rede social. No entanto, como o próprio blog está em permanente transformação, oriunda da colaboração de outros leitores, à subsistência dos poemas vem atrelada sua ressignificação pelos demais que constantemente se lhe somam, reafirmando a dialética entre dinamismo e estaticidade que pauta a leitura dos textos de Amor de Clarice – v.2.

 

Fantasia breve, a palavra-espuma

Tal como Amor de Clarice – v.2, Fantasia breve, a palavra-espuma é um motor textual construído com base no sistema Poemário, gerando poemas inéditos pela seleção e combinação de elementos de um banco de dados. Em consonância com os demais projetos artísticos de Rui Torres, Fantasia breve, a palavra-espuma também tem evidente proposta intertextual, visto que a matéria-prima verbal com que o sistema opera consiste em versos, sintagmas e palavras extraídos de poemas de variados livros de Ana Hatherly.

Assim como o enredo e a imagética do conto “Amor” eram definidores das formas de ler os poemas gerados pelos dois primeiros sistemas sob a lente do estranhamento, da repetição e da diferença, o diálogo com a poesia de Ana Hatherly é também um signo metalinguístico que norteia os percursos exegéticos dos textos gerados por Fantasia breve, a palavra-espuma. Sendo a obra da poetisa experimental marcada mormente pelas temáticas da linguagem, da busca pela poesia e do ato da escrita, tal tônica se reflete na proposta estética do sistema de Rui Torres, que convida à leitura dos poemas gerados pela máquina como reflexões metapoéticas sobre o experimentalismo fundante da ciberpoesia. Tal fito é alcançado por dois expedientes: a) pela mensagem veiculada por cada um dos poemas gerados pelo sistema – todos marcados por evidente temática metalinguística, haja vista a premência do léxico relacionado à escrita e à linguagem nos poemas de Hatherly recombinados pelo motor textual; e b) pela arquitetura da interface, repleta de signos que aludem a um entendimento do ato da escrita como processo serial automático.

Em um paratexto em PDF que acompanha a tela de acesso ao sistema, Rui Torres chega a referir-se a Fantasia breve, a palavra-espuma como um anagrama, escolha lexical que instaura uma metamensagem intencionalmente ambígua entre os semas da tecnologia e da literatura: por um lado, denota o funcionamento do sistema por operações combinatórias; por outro, brinca com a similaridade entre o prefixo grego ana- (indicativo do sema “repetição”), o primeiro nome de Hatherly e o onoma da protagonista de “Amor”.

Ainda nesse paratexto, denominado por Torres como “manifesto” e construído como signo metalinguístico a descrever o sistema e suas etapas de desenvolvimento, outras informações sobre a obra são oferecidas ao leitor, sugerindo-lhe modos de leitura a partir de algumas escolhas semióticas do artista. Não se trata, porém, de simples manual de uso, como o encontrado no paratexto explicativo de Amor de Clarice. Em Fantasia breve, a palavra-espuma, o introdutório preâmbulo é redigido com uma dicção bastante poética, marcada pelo emprego expressivo de marcas tipográficas, pelo encadeamento heterodoxo das sentenças e pelo reiterado uso do algarismo 9, que dá ares cabalísticos ao texto: “o quê: 9 poemas infinitos, 9 superfícies sobrepondo esses poemas, 9 minutos. reiniciar. i.e.: 9 textos em metamorfose, fantasia breve. 9 poemas em indeterminação, palavra-espuma. Portanto: não se trata de um vídeo, ou de uma animação: trata-se de um gerador textual” (Torres, 2016).

Como bem se nota, nove é um algarismo quase profético para Fantasia breve, a palavra-espuma, o qual pode ser lido como referência indireta ao livro Nove incursões, de Hatherly (1962), em que a autora explora, entre outros temas, o poder encantatório da palavra. Nove é um número estruturante dessa obra de Torres, haja vista que o software está programado para produzir, a todo novo acesso, nove poemas sequencialmente, cada um deles durando um minuto (donde o arco de tempo de nove minutos para a experiência estética proporcionada pelo sistema).

No entanto, conforme bem indica o excerto supracitado, não se trata de um vídeo a repetir em loop a constituição dos mesmos textos; o que o leitor vê incessantemente na tela é a formação letra a letra, verso a verso (Figuras 6 e 7), em ritmo constante, de nove poemas distintos, mas sem poder influenciar o resultado desse processo. Diferente de Amor de Clarice – v.2, em que o leitor é cocriador daquilo que lê, Fantasia breve, a palavra espuma postula, por meio de seus signos dinâmicos, cadenciados à revelia do usuário, um leitor voyeur. Este só assiste à máquina aleatoriamente escrevendo novos poemas, por meio da recombinação serial automática de versos de Ana Hatherly – aliás, em funcionamento semelhante ao da imagem que dá título a Um calculador de improbabilidades (Hatherly, 2001).

 

 


Figuras 6 e 7. Telas de Fantasia breve, a palavra-espuma (Torres, 2016).

 

O ar maquinal dessa produção infensa à ação do usuário do sistema é intensificado pelo leiaute da obra – em escala de cinza, conotando as cores de materiais inorgânicos – e pelo modorrento ritmo em que os caracteres vão aparecendo para constituir os versos – indicando o processamento serial constante que caracteriza a semiose computacional. Também não desprovida de intencionalidade artística é a opção, na diagramação da interface, pela superposição de cada novo poema ao anterior, que vai esmaecendo ao final de um minuto. Contudo, se, em Amor de Clarice e em Amor de Clarice – v.2, o recurso à metáfora visual da estratificação dos textos de Torres e Lispector visava a ressaltar as relações intertextuais entre o conto brasileiro e os poemas gerados pelo artista português e seu software, o efeito é outro na obra Fantasia breve, a palavra-espuma. Nesta última, a superposição visual dos poemas gerados pelo sistema torna ainda mais estranha a impressão de ver o sistema a gerar novos poemas. Afinal, estes não são apresentados como prontos ao leitor após um clique; desenrolam-se diante de seus olhos só para se acumularem uns sobre os outros, como produtos do trabalho de ininterrupto autômato.

Do mesmo modo, enquanto Amor de Clarice e Amor de Clarice – v.2 sugeriam ao leitor uma poética do estranhamento por meio, respectivamente, da movimentação ininterrupta de recursos visuais e de inusitadas combinações vocabulares, Fantasia breve, a palavra-espuma lança mão de outros expedientes, sobrelevando a extravagância de uma poética automática. É sob tal perspectiva, sugerida pela arquitetura da interface, que o leitor pode interpretar os poemas gerados, como produto de operações eletrônicas de reiteração, encaixamento e simetria.

Para cada poema, o processo que se desenrola na tela é o mesmo: durante um minuto, o texto vai sendo gradativamente formado por blocos que têm todos a mesma estrutura sintática, mas cujos termos lexicais (substantivos, adjetivos, verbos e advérbios) são substituídos aleatoriamente por outros do banco de dados, oriundos de poemas de Hatherly. A manutenção da sintaxe, em tensão com a permuta de palavras das classes supracitadas, faz com que cada novo texto gerado funcione como duplo signo: mensagem lírica e metamensagem sobre uma poética automática de regras e acasos, realizada de maneira distinta da que se fizera nos dois sistemas analisados anteriormente neste trabalho.

Tal ideia é confirmada por outro paratexto da tela de abertura, o qual funciona também como signo metalinguístico a conotar o modus operandi da máquina torreana. Lê-se nessa tela uma lapidar sentença: “metamorfoses (fantasia breve) & indeterminações (palavra-espuma)” (Torres, 2016). Operando habilmente com sinais de pontuação, Torres aí desmembra o título [6] de sua obra, substituindo a vírgula por um ampersand (&) e justapondo os sintagmas “fantasia breve” e “palavra-espuma” como apostos de “metamorfoses” e “indeterminações”, entre parênteses. Assim, indica ao leitor que cada poema gerado pela máquina é apenas uma tremeluzência fugaz (“metamorfoses”) que se transforma, incessantemente, em séries aleatórias (“indeterminações”).

A ininterrupção que preside à formação dos poemas – visto que, ao final do nono texto gerado, o ciclo se reinicia – só pode ser encerrada se o usuário sair do sistema. Nem mesmo a tecla F5 cessa a semiose maquínica, posto que apenas desencadeia nova reiteração do processo generativo. Tal fato evidencia a inescapável disrupção entre o paradigma da serialidade, que caracteriza a semiose maquínica, e o da abdução, pelo qual os humanos atribuem sentido – sempre instável e temporário – aos dados que lhe chegam pelos órgãos da percepção. Tal desencontro, manifesto no desconforto frente à experiência de poemas que aparecem e somem antes de poderem ser de fato interpretados, é evidenciado no “manifesto” de Torres quando este se refere a um número finito de poemas, mas que acaba por parecer infinito diante das dimensões de um dia na vida humana: “feitas as contas, com o filtro do tempo (abrandar, a lei), por dia serão criados 14.600 poemas, entre uma miríade de miríades de miríades de textos possíveis” (Torres, 2016).

 

IV. Considerações finais

Textos artísticos que geram, por procedimentos automáticos de combinatória, outros textos artísticos: esta é a concepção de software gerador de poemas adotada no presente artigo.

Que sistemas dessa natureza são eles mesmos textos resta patente na exposição teórica apresentada no início deste trabalho, confirmada pelo já sabido, mesmo entre leigos, que um software é um pedaço de discurso constituído em linguagens artificiais, isto é, linguagens de programação. Que pode gerar outros textos, por meio de algoritmos de seleção e combinação articulados a um banco de dados, também não é algo novo: para além dos milhares de sistemas que geram textos dos mais diferentes gêneros e pelos mais variados processos, a ideia já se realizara bem antes em suporte impresso, por exemplo com Raymond Queneau em Cent Mille Milliards de Poèmes. Que os poemas gerados por tais máquinas podem ser considerados artísticos – se programados para tanto –, é uma afirmação controversa, mas não particularmente inovadora: abundam estudos sobre o tema desde a década de 60, conforme exposto anteriormente neste artigo. O que aqui se propôs como contribuição à discussão é a perspectiva de que o software que gera tais textos pode ser ele mesmo obra de arte, se projetado não para executar uma função pragmática, mas sim para postular formas de ler e ressignificar os poemas aleatoriamente produzidos.

A fim de captar os recursos mobilizados para a instanciação artística de software dessa sorte, optou-se aqui por um recorte analítico que privilegiasse sua interface – dimensão do sistema a que tem acesso imediato o usuário (ou o leitor dos poemas, como queira a perspectiva adotada). Para tanto, adotaram-se algumas das premissas epistemológicas da Engenharia Semiótica, teoria da área de Interação Humano-Computador que descreve interfaces computacionais como sistemas sígnicos que funcionam na condição de prepostos do designer na comunicação com os usuários no momento da interação.

De tal modo, procedeu-se a uma análise semiótica pormenorizada das interfaces de três obras do artista Rui Torres – Amor de Clarice, Amor de Clarice – v.2 e Fantasia breve, a palavra-espuma –, a fim de verificar os diferentes expedientes artísticos por meio dos quais os sistemas veiculavam metamensagens que sugeriam modos de leitura dos textos verbais compostos a partir de operações intertextuais algorítmicas com o conto “Amor”, de Clarice Lispector, e com poemas de Ana Hatherly. Como resultado, pode-se notar que, além da engenharia do banco de dados e dos algoritmos responsáveis pela geração de poemas, Torres tem uma clara proposta estética para as interfaces de seus sistemas, nas quais compõe metamensagens que definem diapasões sob os quais os poemas devem ser lidos. De tal sorte, o artista ressignifica os textos produzidos pelas máquinas, projetando sobre o ato da leitura uma dimensão humana e autoral, em que convida os leitores a diferentes experiências de desnaturalização e estranhamento da poesia.

 

 


REFERÊNCIAS

BARBOSA, Pedro (2003). “Ciberliteratura: o computador como máquina semiótica.” Ciberscópio, Universidade de Coimbra. 30 ago. 2018. http://www.ciberscopio.net/artigos/tema2/clit_06.pdf
BARTHES, Roland (1970). Crítica e Verdade. Tr. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva.
BLOCK, Friedrich, e Rui Torres (2007). “Poetic Transformations in(to) the Digital.” ePoetry 2007, Paris, Université Paris 8. 22 jul. 2018. https://po-ex.net/pdfs/blocktorres.pdf.
BOOTZ, Philippe (1999). “Alire: A Relentless Literary Investigation.” Electronic Book Review. 22 jul. 2018. http://www.electronicbookreview.com/thread/wuc/Parisian.
BOOTZ, Philippe (2006). “Digital Poetry: From Cybertext to Programmed Forms.” New Media Poetry and Poetics. Leonardo Electronic Almanac 14.5-6. 20 ago. 2018. https://www.leoalmanac.org/wp-content/uploads/2012/09/04Digital-Poetry-From-Cybertext-to-Programmed-Forms-by-Phillipe-Bootz-Vol-14-No-5-6-September-2006-Leonardo-Electronic-Almanac.pdf.
CHKLOVSKY, Viktor (1978). “A arte como procedimento.” Teoria da Literatura: Formalistas Russos. Ed. Boris Eikhenbaum. Porto Alegre: Globo. 39-56.
DE SOUZA, Clarisse Sieckenius, e Carla Faria Leitão (2009). Semiotic Engineering Methods for Scientific Research in HCI. São Rafael: Morgan & Claypool.
DE SOUZA, Clarisse Sieckenius (2014). “Semiotics.” The Encyclopedia of Human-Computer Interaction. Eds. Jonas Lowgren et al. Hershey: IGI Publishing. 30 out. 2018. https://www.interaction-design.org/literature/book/the-encyclopedia-of-human-computer-interaction-2nd-ed/semiotics.
HATHERLY, Ana (1962). Nove incursões. Lisboa: Sociedade de Expansão Cultural.
–––––––––– (1980). Poesia 1958-1978. Lisboa: Moraes Editores.
–––––––––– (2001). Um calculador de improbabilidades. Lisboa: Quimera.
–––––––––– (2003). O pavão negro. Lisboa: Assírio & Alvim.
HAYLES, Katherine (2007). “Electronic Literature: What is it?” Electronic Literature Organization. V1.0. 17 jul. 2018. http://eliterature.org/pad/elp.html.
HEIDEGGER, Martin (2010). A origem da obra de arte. Tr. Idalina Azevedo e Manuel António de Castro. São Paulo: Edições 70.
INWOOD, Michael (2002). Dicionário Heidegger. Tr. Luísa Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
JAKOBSON, Roman (2008). Linguística e comunicação. Tr. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix.
LISPECTOR, Clarice (1998). “Amor.” Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco.
PEREIRA, Vinícius Carvalho (2017). “Uma estética da deriva digital em Mar de Sophia, de Rui Torres.” Navegações 10: 12-22.
–––––––––– (2018a). “Intertextualidade e estranhamento em Amor de Clarice, de Rui Torres.” Texto Digital 14: 126-138.
–––––––––– (2018b). “Releitura, transformação e impermanência em Amor de Clarice - v.2, de Rui Torres.” Revista Eletrônica Araticum 17: 127-143.
SANTAELLA, Lucia (2012). “Para compreender a literatura digital.” Texto Digital 8.2: 229-240.
SANTOS, Alckmar Luiz dos (2003). Leituras de nós: Ciberespaço e literatura. São Paulo: Itaú Cultural.
TORRES, José Manuel, e Pedro Barbosa (2000). “Sintext-Web: um gerador de texto automático como instrumento computacional de criação literária.” Revista da Universidade Fernando Pessoa 5. 22 set. 2018. http://homepage.ufp.pt/jtorres/publica/artigo_sintextweb_revista_ufp_setembro_%202000.pdf.
TORRES, Rui (2005). Amor de Clarice. 25 out. 2018. https://telepoesis.net/amorclarice/.
–––––––––– (2008). Amor de Clarice – v.2. 22 out. 2018. http://telepoesis.net/amorclarice/v2/amor_index.html.
–––––––––– (2016). Fantasia breve: a palavra espuma. 20 out. 2018. http://www.telepoesis.net/palavra-espuma/.

 

 


NOTAS

[1] Outro fator que dificulta a definição do primeiro gerador automático de poemas é o fato de experiências de escrita combinatória também terem sido realizadas em suporte impresso por escritores experimentalistas. Ainda no contexto da década de 60, por exemplo, destaquem-se do autor oulipiano Raymond Queneau o livro Cent Mille Milliards de Poèmes, publicado em 1961, e o conto-ensaio “Un conte à votre façon”, de 1967. Ampliando-se as noções de “geração automática” e “combinatória”, o problema complexifica-se ainda mais, pois passam a integrar o rol de tais experimentalismos textos muito variados, como os labirintos barrocos e os anagramas latinos.

[2] Pode-se objetar que há software não produzido por humanos, mas sim por outro software, mas, em vez de enfraquecer o argumento ora defendido, essa colocação o reforça, na medida em que radicaliza a associação entre intertextualidade e generatividade que orienta esta discussão.

[3] Como uma explicação detalhada dos usos idiossincráticos de “Terra” e “Mundo” na teoria heideggeriana fogem ao escopo deste artigo, sugere-se a consulta às respectivas entradas no Dicionário Heidegger (INWOOD, 2002).

[4] Teoria de Interação Humano-Computador criada no Brasil por Clarisse Sieckenius de Souza e seu grupo de pesquisa, SERG – Semiotic Engineering Research Group, que visa ao estudo da comunicação entre designers e usuários mediada por interfaces computacionais.

[5] Publicado pela primeira vez em 1960, na coletânea de contos Laços de família, “Amor” é um dos textos mais célebres de Clarice Lispector, analisado em vasta fortuna crítica sob diferentes perspectivas, desde as mais imanentistas até às voltadas para questões do feminino e da psicanálise.

[6] Não se pode deixar de notar que o título da obra, também um paratexto, faz referência direta a dois poemas de Hatherly. A expressão “fantasia breve” consta no texto “Um ritmo perdido” (Hatherly, 1980), em que se lê: “nuvem, / luz e sombra, / forma e movimento, / fantasia breve de ânsia de infinito…”. Por sua vez, “palavra” e “espuma” co-ocorrem na primeira estrofe de “As palavras aproximam” (Hatherly, 2003): “As palavras aproximam: / prendem-soltam / são montanhas de espuma / que se faz-desfaz / na areia da fala”.