Combinar leitura e “leitura”: ler, extrair, interpretar, visualizar

Joana Rua

UNIVERSIDADE DE COIMBRA | CLP, BOLSEIRA DE DOUTORAMENTO FCT
ORCID: 0000-0001-6344-0028

 

Martin Paul Eve. Close Reading with Computers: Textual Scholarship, Computational Formalism, and David Mitchell’s Cloud Atlas. California: Stanford University Press, 2019. 272 pp. ISBN: 9781503609365.

 

Close Reading with Computers: Textual Scholarship, Computacional Formalism and David Mitchell’s Cloud Atlas foi escrito por um académico que dedicou os últimos anos ao estudo da literatura computacional e à pesquisa no âmbito da metaficção literária contemporânea. A obra mostra o que pode acontecer se as técnicas que o autor denomina “telescópicas” – técnicas computacionais utilizadas para analisar um conjunto vasto de obras e que geralmente são chamadas de técnicas de distant reading – forem utilizadas para realizar análises “microscópicas” – análises pormenorizadas que tipicamente utilizam recursos manuais de close reading.

Neste livro, Eve enaltece a importância das técnicas de análise computacional no âmbito da literatura, principalmente quando utilizadas para extrair informação de um número de livros tão elevado que torna a tarefa humanamente inviável, ou então quando a máquina é utilizada para facilitar o trabalho, como quando, por exemplo, consegue recolher dados a uma velocidade superior à conseguida pelo ser humano, com a mesma ou maior eficácia. Mostrando-se positivo relativamente a esta prática, Eve não deixa de salientar que nem sempre tal método é adequado: “It has saved me no reading labor using computational methods to study a single contemporary text that is under copyright”(18).

Questões relacionadas com a própria definição de literatura no século XXI e com o impacto que as tecnologias têm neste domínio são frequentemente levantadas no âmbito das Humanidades. Com o aparecimento do computador, do correio eletrónico e da World Wide Web surgiram novas formas de escrever e, consequentemente, surgiram novas formas de ler. A literatura encontra-se numa fase de transição em que tenta encontrar as melhores formas de expressão nos meios digitais sem perder a complexidade desenvolvida através de outros meios de inscrição. Todos os aspetos de um livro impresso – desde o formato ao tamanho e estilo da fonte – já foram alvo de estudo e são hoje aplicados da melhor maneira possível. Para que o mesmo aconteça no meio digital é necessário explorar as características e hipóteses do novo meio e não apenas passar diretamente os aspetos formais de um para o outro.

Por um lado, as tecnologias digitais podem ser encaradas como um instrumento epistemológico para alargar o campo das Humanidades e das questões que podem ser formuladas e respondidas; por outro, podem ser encaradas sob um prisma negativo e restritivo no qual a máquina é considerada como um utensílio que conduz as práticas de investigação a um novo formalismo. Deparamo-nos com diferentes atitudes relativamente à introdução de técnicas computacionais no campo das Humanidades. Para alguns estudiosos, a introdução de tecnologias nesta área implica importar métodos quantitativos para disciplinas que até aqui lidaram sempre com metodologias hermenêuticas. Martin Paul Eve reflete sobre a utilização de técnicas de close reading assistidas por máquinas e afirma que os Humanistas encaram esta situação de uma ou de outra forma, o que faz com que fiquem divididos em dois grupos – os proponentes e os detratores: “For proponents this yields new, ‘distant’ ways in which we can consider textual pattern-making. For detractors there remain worthwhile questions about the quantifying processes of digital humanities: should the humanities in reality always be qualitative in their approaches?” (1).

Dentro das Humanidades Digitais as tecnologias são utilizadas não só para criar formas especificamente digitais como para transformar as formas analógicas. Os meios digitais não estão a competir com os meios analógicos, mas antes a tentar encontrar formas de cooperação que permitam tirar partido do melhor de ambos. O advento do século XXI e a introdução das técnicas computacionais não impede que análises microscópicas continuem a ser realizadas. Cada técnica tem diferentes características e propósitos e existem situações em que é proveitoso usar uma e situações em que é vantajoso utilizar a outra. No caso da análise realizada por Martin Paul Eve sobre a obra Cloud Atlas, o estudioso combinou close reading com técnicas de análise computacionais, o que culmina, segundo o próprio, numa close reading with computers.

O trabalho de Martin Paul Eve apresenta soluções em que através da junção entre o analógico e o digital se consegue uma aprofundada interpretação literária que, por vezes, Eve acaba por transformar em simples mas claros objetos de visualização que permitem que se responda de forma inovadora a questões habituais. Esta obra mostra como é que ferramentas computacionais podem levar a práticas alternativas de análise, interpretação e apresentação de textos:

The digital component that I here introduce is a novel method for the visualization of differences between texts. In fact, close focus on the variations between the versions of a novel is precisely the type of narrow depth for which I would say that computational methods can be most helpful . (21)

Estas práticas alternativas não são necessariamente sinónimo de uma redução do trabalho levado a cabo pelos críticos literários, antes pelo contrário. Para analisar digitalmente Cloud Atlas, Martin Paul Eve digitou na íntegra a referida obra de forma a contornar leis de copyright que impediam a análise digital da edição Kindle por ele adquirida.

Martin Paul Eve aplica uma série de ferramentas computacionais que facilitam a execução de uma close reading do romance Cloud Atlas. Eve expõe esta obra perante abordagens analíticas que permitem testar a dicotomia entre close e distant reading. A leitura da obra de Mitchell não é um requisito à apreciação e compreensão da análise realizada por Eve. O estudioso explica aspetos relativos a Cloud Atlas que permitem ao leitor entender o que está a ser examinado e porquê, sem que este necessite de ter conhecimentos prévios sobre o objeto de estudo.

Apesar de controversa, a “leitura” computacional de obras literárias já não é uma novidade. Eve encara a “leitura” computacional de forma pragmática ao defender a sua utilização como uma forma de economizar tempo e trabalho, e sempre que é necessário ler mais do que o humanamente possível. Para Eve, mesmo que o computador tenha efetivamente a capacidade de “ler”, neste contexto o termo “ler” não tem exatamente o significado associado ao ato de leitura humano: “This is not “reading” as humans perform it. It is instead a mode under which we can delegate repetitive labor to the machine and then expend our interpretative efforts on the resultant quantitative dataset” (2). Colocar a máquina a “ler” cria uma espécie de barreira que separa o humano da leitura – o humano pode deixar de ler a obra e passar a ler a leitura levada a cabo pela máquina –, ou seja, a máquina é um intermediário até aqui inexistente.

No primeiro capítulo da obra – “The Contemporary History of the Book” –, Martin Paul Eve identifica as variantes encontradas em várias edições da obra Cloud Atlas e informa que ao longo da sua análise se vai focar especialmente em duas edições: a edição britânica de capa mole e a edição digital americana para Kindle.

Chegando ao segundo capítulo – “Reading Genre Computationally” –, Eve apresenta o estudo digital realizado sobre Cloud Atlas e parte de uma análise estilométrica na qual analisa o estilo autoral de Mitchell segundo a linguagem utilizada e a frequência relativa de palavras da obra. A maior parte das ferramentas utilizadas por Eve para levar a cabo esta análise foram, segundo o próprio, desenvolvidas pelo Computational Stylistics Group. A utilização de ferramentas preexistentes na análise digital de obras literárias corresponde a um reaproveitamento de recursos que permite a redução do tempo habitualmente investido nas etapas de produção e implementação de ferramentas. Esse tempo pode depois ser utilizado, como acontece com Eve, na análise dos dados digitalmente extraídos e na produção de textos e artefactos de visualização que os exprimem e que servem de suporte de apresentação a um público-alvo.

Na terceira parte – “Historical Fiction and Linguistic Mimesis” –, Eve examina através de ferramentas digitais a precisão histórica das palavras utilizadas por Mitchell partindo do argumento de que a precisão linguística não é necessária para estabelecer o sentido de historicidade ficcional.

Eve baseia-se nos métodos computacionais e tradicionais de close reading para oferecer interpretações generalizadas sobre Cloud Atlas: “In many ways Cloud Atlas is a novel about textual scholarship and historiographic interpretation, parodying the ways in which texts are received, corrupted, remediated, and circulated over time on the historical scale” (144).

O autor tanto aprendeu a utilizar software preexistente para levar a cabo as análises pretendidas, como desenvolveu o seu próprio software. Além disso, fez um esforço considerável na interpretação dos dados extraídos e destacados pelos métodos computacionais. O facto de ser utilizada uma máquina para extrair, encontrar e/ou salientar informação num texto não significa que o crítico literário esteja obsoleto. O computador apenas possibilita novas abordagens críticas e estas continuam entrelaçadas com os métodos tradicionais de análise literária. Isto significa que, para se realizar uma close reading with computers, é primeiro preciso adquirir conhecimentos relativos a métodos de análise tradicionais geralmente utilizados por críticos literários experientes.

O trabalho desenvolvido por Martin Paul Eve inclui a criação de gráficos que expressam visualmente dados extraídos do livro Cloud Atlas. Esses gráficos são incluídos em Close Reading with Computers, mas alguns não têm qualidade suficiente para poderem ser lidos em suporte impresso. Eve disponibiliza versões digitais de alta resolução destes elementos, bem como dos ficheiros utilizados para os gerar e de outros arquivos que justificam argumentos apresentados no decorrer do livro.

Ao escrever e publicar Close Reading With Computers, Eve dá continuidade ao trabalho que tem desenvolvido na área das Humanidades Digitais, mais especificamente dos Estudos Literários Computacionais, e sustenta a utilização hábil da máquina como complemento da close reading. O autor salienta o carácter controverso derivado da hibridez do método, o que faz com que este se situe no limbo entre o analógico e o digital, tornando praticamente impossível a existência de um consenso entre os detratores e os proponentes. Eve não está a restringir a utilização da máquina nos Estudos Literários Computacionais apenas como complemento do manual. Pretende sim mostrar que, ainda que polémica, essa é uma das muitas possibilidades abrangidas dentro deste campo disciplinar e deve ser assumida como tal.