Respostas leitoras à literatura infantil digital, recursos sonoros e mediação

Giselly Lima de Moraes

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
orcid: 0000-0003-3313-6003

Dinéa Maria Sobral Muniz

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
orcid: 0000-0001-8973-0410

 

I. Introdução

A literatura digital, como forma literária emergente, está inserida em um complexo cenário cultural que acolhe novas e dinâmicas formas textuais, embora conviva com antigas demandas da cultura escrita. Enquanto as lutas pela formação de leitores da literatura impressa permanecem necessárias, as inovações literárias que emergem das novas possibilidades digitais já nos interpelam acerca de nossas aspirações e saberes no campo da mediação literária e dos propósitos educativos com a literatura. E, por não herdar o mesmo prestígio da sua predecessora, uma vez que ainda precisa garantir seu lugar nos estudos literários, a literatura digital necessita ser constantemente descrita e validada, sendo questionada sobre o que justifica seu estudo e sua presença na escola.

Nesse sentido, concordamos com Santos (2003), por entender que qualquer resistência ao novo na literatura não se justifica, pois a literariedade também se assenta no meio eletrônico, constituindo uma nova materialidade, com potencialidades até maiores do que as do papel para a realização do literário. A literatura infantil digital é aqui compreendida como um conjunto de obras de ficção voltadas para crianças, caracterizado pela presença da multimodalidade, da interatividade e de descontinuidades (Ramada e Turrión, 2019),  que se apropria dos recursos típicos do meio eletrônico, como a tecnologia háptica, os recursos sonoros e de reprodução de imagens em movimento, entre outros. Nessa perspectiva, ela amplia exponencialmente as possibilidades interativas e interpretativas que o leitor pode experimentar na leitura literária.

Todavia, como afirmamos acima, o cenário cultural em que tal literatura se inscreve não é simples. Tablets e celulares com conteúdos infantis despertam o interesse dos estudos da infância, que buscam entender seus efeitos no desenvolvimento e na socialização das crianças, visto que já protagonizam práticas culturais bastante disseminadas nas famílias de todo o mundo. Diante de uma forte desconfiança com respeito aos efeitos da utilização precoce de tais aparelhos, os estudos da linguagem, em especial aqueles voltados para práticas de leitura e escrita, dão conta de que a experiência digital desde a primeira infância já é uma realidade que dá impulso a investigações sobre como estabelecer critérios de qualidade e como ajudar na formação de mediadores para esse tipo de objeto de leitura (Margallo e Aliagas Marín, 2014; Correro e Real, 2014).

Incluímo-nos entre os pesquisadores da linguagem interessados em conhecer e favorecer os processos de mediação dessas obras, visando a atribuir, simultaneamente, maior qualidade às experiências digitais e literárias. Nosso olhar, nesse contexto, se debruça sobre os recursos sonoros (música, voz e ruídos) e seu papel na mediação entre o leitor e as narrativas de ficção, além de sua potencial contribuição para a experiência estética literária.

 

II. Uma experiência de escuta dos leitores

Embora este trabalho tenha origem em uma pesquisa de doutorado (Moraes, 2016) que buscou descrever os recursos sonoros de aplicativos de literatura para crianças, detendo-se em sua estrutura e suas características composicionais, nossa compreensão do literário não perde de vista a recepção dos leitores, o que nos levou, em determinado momento, a abordar o texto também no contexto de sua leitura. O entendimento que orientou essa prática é o de que as maneiras de ver e dar sentido aos aplicativos literários por parte das crianças, sobretudo em ambiente escolar, são indispensáveis para a compreensão da leitura digital no que tange às condições de realização de sua fruição e também de uma educação literária que não exclua as formas emergentes.

Contudo, devido à incipiência do objeto em estudo, ainda não nos comprometemos em estabelecer uma escuta das crianças acerca da leitura dos aplicativos muito além de uma experiência de natureza exploratória, uma vez que um estudo intensivo, detalhado e preciso necessitaria tanto de um avanço metodológico maior e de melhores condições de pesquisa quanto de dispor de equipamentos, obras em português e um maior número de estudos das práticas sociais que envolvem a leitura digital na infância. Dessa maneira, descreveremos, neste texto, uma das etapas da pesquisa de doutorado (Moraes, 2016), a qual se constituiu como uma investida pontual, sensível e aberta, em busca de respostas leitoras de seis crianças de seis a oitos anos a alguns aplicativos de literatura digital, com foco nas interações com os aspectos sonoros da obra.

No transcurso do trabalho, buscamos nos apoiar no que diz Rosenblatt (2002) sobre as respostas ao texto, ao afirmar que leitor e obra se complementam e que, a cada leitura, ocorre uma relação transacional. Tal relação se caracteriza por ser um evento singular, marcado por escolhas e atitudes do leitor frente ao texto, podendo ocorrer uma leitura mais ou menos literária, a depender de seus propósitos e de disposições pessoais.

Tendo em vista a novidade, para muitas crianças, que é ter nas mãos um appbook, objeto literário na forma de aplicativo digital disponível em celulares e tablets, como os usados por nós nesta pesquisa, interessou-nos conhecer aspectos dessa interação, evidenciando indícios da transação com a obra, sobretudo quanto aos sinais de uma leitura estética de tal objeto. Esses aspectos concerniam à percepção, interação e produção de sentidos a partir dos recursos sonoros, atentando para sua importância na recepção de uma narrativa literária multimodal, multimídia e interativa.

Constitui-se numa investida pontual, pois não se trata de uma imersão profunda na vida escolar ou na realidade leitora dos sujeitos, mas um pequeno recorte dessa realidade, que, aliás, introduziu uma prática que não fazia parte do cotidiano escolar e familiar, a da leitura literária digital, ainda que o contato com dispositivos digitais móveis fizesse. Dessa maneira, é preciso alertar para o olhar perspectivado e situado em um espaço-tempo determinado, ou seja, trata-se de uma experiência que ocorreu em cinco encontros, no período de três semanas, em abril de 2015.

Constituiu uma experiência sensível, porque privilegiamos a experiência estética da leitura, isto é, buscamos nos aproximar da relação particular de cada criança com o texto, ainda que em diálogo com a experiência das demais. Nesse contexto, recorremos a Rosenblatt (2002) e sua teoria das respostas leitoras para explorar essa relação das crianças com a obra, buscando escutar suas reflexões sobre a leitura estética, o que envolve aspectos emocionais e experienciais. Nesse processo, admitimos, como propõe a autora, que também pode ocorrer uma leitura eferente (do latim effere, conduzir para fora), que implica um trabalho cognitivo expresso que buscamos explorar por meio de conversas posteriores à apreciação das obras, com o propósito de colher alguns dados sobre o potencial formativo da trilha sonora na formação de leitores.

Trata-se uma metodologia aberta ao emergente, ao movimento das crianças, seus desejos e necessidades. Dessa maneira, o que estava planejado para acontecer em quatro encontros se deu em cinco, com duração maior do que a prevista, sobretudo pela adesão dos sujeitos e o desejo de permanecerem mais tempo na atividade. As oficinas estavam organizadas de modo a explorar a leitura em duplas, inicialmente sem mediação, e depois por meio de uma apreciação coletiva ou uma conversa para encaminhar a proposta do dia. Após a realização da atividade proposta, encerrávamos com uma roda de compartilhamento das experiências e uma conversa sobre a obra, com algumas perguntas sobre a trilha sonora.

 

Contexto e sujeitos da experiência

A escola onde realizamos a experiência com a leitura dos aplicativos é uma instituição pública da região da Catalunha, situada na província de Barcelona e que atende à educação infantil (até os seis anos) e à primaria (dos sete aos doze anos).

A seleção dos sujeitos da pesquisa foi realizada com a mediação da diretora e das professoras da primeira série da educação primaria, as quais nos ajudaram a escolher seis crianças entre os alunos dessas séries, a partir de critérios previamente definidos: ter entre sete e oito anos, evidenciar competências básicas de leitura e escrita concernentes aos primeiros anos do ensino fundamental, ser falante do espanhol, ter um perfil favorável a interações orais em grupo e produções em dupla, e, por fim, contar com a autorização dos pais ou responsáveis.

Foram selecionadas quatro meninas e dois meninos de perfil culturalmente diverso, pois duas delas são filhas de imigrantes, uma chinesa e uma sul-americana, e o restante pertencente a famílias de origem europeia.

Em busca de uma pesquisa eticamente orientada, escolhemos identificar os sujeitos apenas pelas iniciais e tomar o cuidado de apresentar imagens que não os expusessem, ainda que tenhamos obtido autorização prévia de seus responsáveis para o uso de suas imagens e identidades para fins de pesquisa acadêmica.

A maioria dos sujeitos demonstrou vir de famílias com hábitos leitores de texto impresso, pois M, M2, T e H fizeram referências a algumas práticas de leitura em família. O uso de recursos digitais para ler foi mencionado por M, T e P, sem, contudo, se referirem a práticas de literatura infantil digital no ambiente familiar.

Planejamos, inicialmente, quatro encontros para a realização de oficinas literárias de uma hora e meia, com a realização de entrevista individual na meia hora subsequente. Todavia, nem sempre foi possível realizar as entrevistas, pois as oficinas se estenderam para além do tempo previsto. Acabamos realizando cinco encontros para a realização das oficinas e destinamos mais um encontro para a realização de entrevistas.

As situações, reflexões e respostas à experiência de leitura dos aplicativos foram registradas em vídeo e áudio, além de registros esparsos em diário de campo, bem como em desenhos e atividades de colagem realizados pelos sujeitos durantes as oficinas. Nossa leitura desse material se deu através de um olhar atento para os indícios dos efeitos da trilha sonora nesses leitores a partir de suas produções, como também da análise de suas opiniões e reflexões sobre elementos da trilha sonora expressas nas falas, que transcrevemos e, posteriormente, analisamos, tendo como referência a base teórica aqui apresentada.

No experimento, utilizamos três iPads nos quais foram instalados quatro aplicativos selecionados de um corpus geral de 40 appbooks. Por cuatro esquinitas de nada (Ruillers, 2013) constitui a história de um quadradinho que chega para brincar com um grupo de figuras redondas. Ao acabar a brincadeira e voltarem para um espaço que remete à escola, Cuadradito não consegue passar pela porta redonda. A tentativa de resolução desse problema constitui a intriga da história. O aplicativo se destaca pela trilha sonora dinâmica e adaptada a cada situação e por ilustrações animadas com elementos gráficos e coloridos que respondem ao toque do leitor. Rita la lagartija (Grau, 2011) trata de uma lagartixa que pensa que é um camaleão e que pode se camuflar. A trama da história gira em torno da descoberta da identidade de Rita e de como seus amigos vão ajudá-la com isso. Também é uma história que recorre muito aos recursos hápticos e lúdicos para promover a interatividade do leitor com a obra. La manzana roja (Oral, 2014) é quase um livro ilustrado digitalizado, trazendo apenas a voz e ruídos sutis como recursos sonoros, e conta a história de uma maçã cobiçada por vários animais que não conseguem alcançá-la. Es así (Valdívia, 2011) conta, de forma não linear, sobre mortes e nascimentos. Nos recursos sonoros, se destaca a trilha musical que amarra uma narrativa sobre uma menina que vive a experiência da perda de uma pessoa próxima e a chegada de um bebê. A interatividade desse aplicativo é mais limitada, mas se destaca pela articulação desses recursos com as ilustrações e o som.

 

III. Respostas leitoras, mediação e objetivos

Rosenblatt (2002), signatária da teoria transacional e filiada à teoria das respostas leitoras (reader-response criticism), de enfoque recepcional [1], compreende que um leitor pode transitar dentro de um continuum que se dá entre uma leitura eferente e uma leitura estética, deixando-se, dessa forma, afetar mais ou menos pela atmosfera afetiva do texto ou voltar-se para o aspecto informativo e analítico. Dessa maneira, a leitura literária, assim como uma educação com o propósito de formar leitores literários, envolve a construção de uma determinada atmosfera afetiva e de procedimentos leitores de diferentes naturezas, do cognitivo ao sensível. Segundo a autora,

Aquilo a que referem os signos e as sensações, sentimentos e associações que estimulam estão sempre na consciência do leitor. Daqui surge o fato de que para que uma obra – literária ou não literária – seja produzida, deve-se prestar atenção não só às ideias, como também às sensações, emoções e atitudes que rodeiam as ideias, cenas e personalidades que estão sendo concebidas. Você deve, portanto, consciente ou inconscientemente, selecionar que tanto de atenção se atribuirá a cada aspecto. (6)

Sob essa perspectiva, é na relação entre leitor e texto que a obra se concretiza como literatura, ou seja, como experiência estética ou não. Nesse sentido, a trilha sonora, como elemento da obra literária, também é passível de uma leitura estética em maior ou menor grau, sendo parte da experiência sensível e intelectiva da obra que se (re)constrói pela leitura. Desse modo, não podemos desconsiderar que a formação do leitor digital requer nossa compreensão de que a literatura eletrônica (com recursos sonoros) exige dele uma determinada atitude frente àquilo que o som comunica para que a leitura possa se realizar plenamente.

A teoria das respostas leitoras nos ajuda, portanto, a conhecer aspectos dos significados que o leitor constrói na interação ou transação com o texto. Embora não tenhamos o propósito de seguir essa proposta como método estrito de investigação, inspiramo-nos em aspectos dessa teoria para explorar as respostas das crianças à leitura dos aplicativos digitais.

As respostas do leitor ao texto, segundo Rosenblatt (2002), implicam, inicialmente, significados ora de caráter mais público (lexical, analítico e abstrato), ora mais privado (experiencial, afetivo e associacional). É certo que, na leitura estética, a tendência é que as respostas se situem, de forma predominante, no âmbito dos significados privados, sendo esses os que buscamos explorar em maior grau, ainda que, em alguns momentos, tenhamos buscado conhecer os significados compartilhados pela cultura, a partir dos quais as crianças atribuem sentido a determinado elemento da trilha sonora.

O segundo momento da leitura implica, segundo a autora, a organização e a síntese dos significados através de respostas expressas, em que o leitor interpreta os próprios significados evocados pela interação com a obra.  Nesse processo, o leitor se movimenta entre uma leitura estética e uma eferente, em que expressa aspectos singulares de sua interpretação, mas que pode, pelo trabalho colaborativo nas discussões em grupo, incorporar outras interpretações de caráter mais amplo, sem perder a validade de sua leitura particular.

As oficinas literárias, como afirmamos, tinham como propósito identificar aspectos dessa relação transacional entre obra e leitor, com enfoque nas implicações da trilha sonora nesse processo. Demos, assim, destaque ao papel dos recursos sonoros nessa experiência, buscando conhecer através de conversas, desenhos e da proposta de “brincar de produzir uma trilha sonora para um aplicativo”, o modo como percebiam e que sentidos atribuíam a esses elementos naquele contexto.

Também foi realizada uma breve entrevista do tipo semiestruturada, com três dos seis sujeitos da pesquisa, em que buscamos, a partir de uma segunda leitura, aprofundar questões relativas à experiência das oficinas. Questões de força maior e a exiguidade do tempo que disponibilizamos para essa etapa não nos permitiram entrevistar todos os sujeitos.

As interações orais, mediadas por uma das autoras, nas oficinas e nas entrevistas, basearam-se na proposta de Aidan Chambers (2007), cujo enfoque, exposto no livro Dime,postula que as conversas sobre a experiência de leitura, quando mediadas por perguntas adequadas, podem favorecer o avanço dos estudantes quanto à sua competência para ler textos literários. Vale ressaltar que as perguntas de Chambers se apoiam na ideia de que o professor pode ajudar o leitor, na interação com os demais, a perceber certos aspectos da narrativa e a aprofundar sua interpretação no momento em que expressa suas próprias respostas leitoras e as confronta com as respostas de outrem.

As perguntas sugeridas pelo referido autor se dividem entre básicas, gerais e especiais. As perguntas básicas buscam evocar uma conversa informal sobre as experiências estéticas, apoiando-se na experiência singular do leitor, nos seus gostos pessoais, tais como: “De que você mais gostou?”, “De que não gostou?”, “O que estranhou?”, dentre outras que ajudam o leitor a confrontar o sentido geral do texto, bem como na percepção de padrões, inovações e incoerências em sua leitura. As perguntas gerais buscam confrontar o leitor com sua própria experiência de leitura, fazendo-o pensar sobre a obra a partir de suas experiências prévias e construir uma crítica pessoal com base na própria situação de leitura. Algumas perguntas desse tipo – “Você já leu esse livro antes?” Se sim, “Foi diferente desta vez?”, entre outras. Por último, as perguntas especiais se centram em aspectos mais específicos da narrativa, abordando tanto o que conta a obra como também a forma como é contado. As perguntas enfocam questões de tempo, espaço, voz narrativa, etc. Por exemplo: “Em quanto tempo transcorreu a história?”, “Quem estava contando ou narrando a história? Sabemos? Como sabemos?”, dentre outras (Chambers, 2007: 117-122).

É importante sublinhar que o autor adverte que as perguntas não constituem uma prescrição rígida, e as listas não devem ser seguidas literalmente ou na mesma ordem, mas podem ser adaptadas e se incorporarem a uma situação de conversa sobre uma obra lida pelos estudantes. Trata-se, portanto, de uma proposta de interação oral, não de um exame.


O que dizem as crianças

Nosso interesse pelo que as crianças expressaram de sua leitura dos aplicativos se centrou não apenas no que elas percebiam, ou não, da trilha sonora, mas também no que elas percebiam, ou não, em relação aos recursos narrativos. O interesse era, sobretudo, saber se a mediação da trilha sonora poderia contribuir para ampliar o olhar para os recursos narrativos e, assim, mostrar-se um recurso auxiliar da educação literária. Dessa maneira, apresentaremos os dados organizando-os em dois blocos: o primeiro que trata de aspectos gerais sobre a interação com os aplicativos, e o segundo que trata das respostas sobre a relação entre trilha sonora e narrativa.

Sobre os aplicativos

A dinâmica das oficinas implicou deixar que as crianças interagissem com os dispositivos livremente, por um tempo determinado. Fazíamos uma roda de abertura, em que se explicava a proposta do dia, e elas liam em dupla os aplicativos. Depois, fazíamos uma roda de conversa sobre a leitura e era encaminhada a proposta de produção do dia (desenhos, colagem e a produção de uma trilha sonora para o aplicativo La manzana roja). Durante a leitura livre, elas não se limitaram a explorar o aplicativo e mostraram muita curiosidade a respeito do dispositivo. Inicialmente, esse interesse foi maior do que pelo aplicativo, pois algumas crianças deixaram de ler para tirar fotos, ver os outros apps instalados e explorar os demais recursos do ipad. A curiosidade se estendeu para todos os aplicativos literários disponíveis, porém, algumas vezes, foi preciso limitar o acesso a alguns aplicativos, com os quais íamos trabalhar nas oficinas seguintes, uma vez que tínhamos em mente desenvolver atividades dirigidas para observação dos momentos de leitura e posterior análise. Nos demais encontros, além do aplicativo do dia, voltavam aos aplicativos anteriores, revelando uma forma hipertextual de ler, em que saltavam de um texto a outro, poucas vezes se detendo em um só aplicativo.

Na leitura dos apps, o primeiro interesse era pela interatividade tátil, buscando tocar nos elementos da ilustração tentando perceber efeitos de toque e abrir hiperlinks. Isso fica explícito na fala de M2, quando pergunta, com ar de frustração, diante da interação com o aplicativo da La Manzana Roja: “Não tem nada pra tocar!?” Ou quando, justificando o fato de gostarem do aplicativo Rita la lagartija, afirmam que o apreciaram porque “Há muitas coisas que tocar”. 

Durante a interação em dupla, em geral, as crianças tocavam a tela do ipad ao mesmo tempo e, como isso, muitas vezes aconteciam tentativas de negociar quem tocava a cada vez, para não inviabilizar a leitura. Na entrevista com H, ela revelou que não compreendeu a história de Rita la lagartija na primeira vez que leu, pois estava em dupla com M, que queria tocar todos os elementos, enquanto ela queria ler. Isso ilustra o fato de que os modos de ler das crianças foram diversos: umas realizaram uma leitura de forma menos linear que outras. O mais comum, quando estavam em dupla, não era fazer uma leitura linear, mas ir, vir, tocar, acionar um recurso, desativá-lo, voltar à página anterior e assim por diante. Todavia, à medida que o contato com o aplicativo foi ficando mais estreito, fixavam-se mais na narrativa e menos nos recursos táteis, ou seja, faziam uma interação mais próxima da leitura do que da experiência de jogar.

No primeiro contato com o aplicativo Rita la lagartija, perguntei a M2 e a P, que liam juntas, se o aplicativo era uma história ou um jogo. P respondeu que se tratava de um jogo, enquanto M2 afirmou que era uma mistura dos dois. Essa dupla, aliás, revelou um tipo de interação lúdica inusitada com o aplicativo, pois interagiam com os elementos com efeitos de toque, como quando interagem com um brinquedo físico, fazendo usos imaginativos do jogo, sem se prenderem a uma função preestabelecida. M2, por exemplo, fazia ruídos com a boca quando acionava efeitos na tela.

A leitura fragmentada e hipertextual nos levou a pensar que M2 e P não compreenderiam a história, pois se detinham muito nos elementos de jogo. Todavia, P, uma das crianças que mais exploraram os elementos interativos e parecia não estar atenta à narrativa, sobretudo por sua fala anterior, surpreendentemente, nos dois momentos da roda de conversa sobre a leitura, demonstrou ter compreendido a narrativa e expressou uma interpretação coerente da obra lida. Já H teve sua leitura completamente afetada pela fragmentação causada pela intervenção de M, necessitando de uma segunda leitura, como vemos na entrevista [2]:

Pe – Esta leitura lhe pareceu, então, melhor que a primeira? Por que pareceu melhor? Porque sei que M estava todo o tempo...
H – Sim.  
Pe – Mas é que você gosta de escutar ou tocar o cenário, só para ler…
H – Eu não me importo de estar com outra pessoa que também está tocando, mas não que esteja tocando enquanto está falando ou enquanto estou lendo.
Pe – Tá.
H – Porque, senão, não entendo… E simplesmente é como ver um filme que não tem voz. Mas eu vi uma e, pelo menos, descrevi o que passava.
(Tradução nossa)

Isso nos leva a refletir sobre a forma como a compreensão leitora é construída na interação com esses dispositivos e sua diferença em relação à leitura no papel. Pode ser que H tenha buscado, na interação com a literatura digital, usar as mesmas estratégias da leitura do impresso, e isso tenha afetado sua compreensão, ou simplesmente porque, sendo a leitura um ato individual, que requer um acordo íntimo entre leitor e texto, a intervenção de M tenha sido demasiado grande para que H seguisse interagindo com a narrativa. Diante desse fato, resolvemos evitar a dupla M e H, pois as duas não conseguiam negociar bem a leitura em parceria como faziam M2 e P, que leram juntos, interagiram muito com os recursos de jogo e compreenderam bem a narrativa.

O aplicativo que apresentou maior facilidade de leitura foi, sem dúvida, Por cuatro esquinitas de nada. A leitura mais difícil pareceu ser Es así, que resultou em diferentes interpretações sobre a obra. Nas entrevistas, T e M puderam aprofundar um pouco mais a compreensão a partir das perguntas feitas sobre a narrativa, sendo M a que construiu respostas leitoras mais articuladas com a temática do nascimento e da morte, trazendo experiências pessoais para ajudar a expressar sua compreensão e demonstrando articular esses sentidos a partir de elementos de imagem, texto e som. No fragmento a seguir, M fala das experiências de morte em sua vida, depois de dar sentido para o texto, que fala dos “que partem” e dos “que chegam”.

Pe – Algo que aconteceu no conto e que aconteceu com você ou com alguém que você conhece?
M – Com minha vida?
Pe – Sim.
M – Hum... Não acho.
Pe – Não aconteceu nada que se passou na sua vida ou de alguém que você conhece?
(pausa)
L – Em minha vida, sim.
Pe – Sim.
M – Porque há um familiar meu que morreu.
Pe – Hum...
M – Eu não sei se ainda...
(cochichos e fim da música)
M – Eu não sei... Eu não sei se na... Sim! Parece que nasceu um... um bebê.
Pe – Sim e você tem uma irmã menor, não? Então, com certeza, nasceu alguém em sua casa em sua vida (risos)
M – (riso) Sim, mas tenho muitos... Como se chama?
Pe – Primos?
M – Sim primos, tenho muitos primos. Tenho um montão.
(Tradução nossa)

Sabendo da complexidade maior dessa narrativa, quisemos explorar as respostas das crianças quanto às questões abordadas sobre a vida e a morte e como compreendiam os recursos narrativos que estavam articulados pela multimodalidade da obra, tais como questões de espaço e tempo, relação entre autor e narrador, personagens e intriga. Ficou evidente que algumas reflexões sobre os recursos narrativos passavam ao largo da leitura das crianças. Quando questionadas sobre em quanto tempo se passava a história da Rita la lagartija, tivemos um pequeno debate, em que o grupo pensou de forma parecida com M2, que afirmou que a história se passava em cerca de três minutos, mas que, para uma lagartixa, isso significava muito tempo. Foi necessária uma intervenção nossa para que refletissem sobre os diferentes espaços em que a história é contada (praia, floresta, casa do vizinho, etc.) e mudassem de ideia sobre o tempo da história, já que se baseavam no tempo da leitura. Do mesmo modo, no aplicativo Es así, a reflexão sobre o espaço e o tempo foi bastante interessante, uma vez que há várias narrativas envolvidas. No entanto, quanto à história-moldura, T teve muitas dúvidas, até afirmar que se passava em muito tempo, pois narrava a morte da “avó” de menina e que “a menina crescia” ao longo da história. Vejamos:

Pe – Você acha que passou muito tempo? Por exemplo, tem uma menina na história. Para essa menina, quanto tempo você acha que passa?
T – Muito
Pe – Muito?
T – Porque, quando era pequena, como nós demoramos um pouco a crescer e sermos grandes.
Pe – E o conto conta desde quando a menina era pequena até que fique grande? Ou não cresce, não fica adulta?
T – Sim...  Depois ficava adulta como sua mãe, antes.
(Tradução nossa)

Houve um diálogo parecido com M:

Pe – Agora me diga, o que você acha sobre o tempo dessa história, em quanto tempo passou essa história?
M – Não sei, mas eu poderia cronometrar.
Pe – Não, esse tempo é o do tempo da leitura, quero dizer da história que aconteceu com a menina, por exemplo, como essa senhora que morre... em quanto tempo se passa isso? Um dia na vida da menina?
M – Do escritor ou do conto?
Pe – Do conto.
M – Ou...
Pe – Da história que conta o aplicativo.
M – Poderia ser um dia.
Pe – Um dia, tudo isso aconteceu você acha... do... isso do gato...isso da senhora...?
M – Ah não! Não, não, não...
Pe – Ou da menina...
M – Não... não poderia ter passado, por exemplo, em uma semana.
Pe – Tá.
M – Por exemplo, a mãe vai comprar no mercado só um dia.
Pe – Mas ela está grávida...
M – Quando estão... Bom, é que podia ter passado tranquilamente um ano.
(Tradução nossa)

Esse tipo de conversa sobre o texto, baseado nas perguntas propostas por Chambers (2007), revela-nos aspectos da relação entre os recursos narrativos, a compreensão e a fruição literária. O aspecto temporal da história está estreitamente ligado com a intriga e com a linha narrativa, ou seja, a compreensão de T está estreitamente ligada à ideia sobre quanto tempo se passa a história. No caso do aplicativo Es así, é possível fazer interpretações distintas da temporalidade diegética e pensar que tudo se passa no presente da menina ou, de forma diferente, pensar que se passa ao longo da sua vida, pois as mulheres, personagens de diferentes idades, podem representar tanto a menina em distintas fases da vida, como sua mãe e avó. Nesse dilema interpretativo é que se encontram T e M. Por outro lado, quando M perguntou se queríamos saber do tempo do escritor ou do conto, deu indícios de que tentava fazer uma distinção entre a forma como se conta e aquilo que se conta numa narrativa.

Sobre a trilha sonora e a narrativa

A compreensão de que há uma relação entre o modo como se percebem os elementos da narrativa e a construção de sentidos pelo leitor nos orienta na análise das respostas leitoras sobre a trilha sonora a partir desses elementos. Interessa-nos, nesse sentido, a mediação produtiva da trilha sonora em relação à narrativa, à interpretação e à experiência estética do leitor, o que demonstramos a partir das respostas leitoras sobre os elementos explicitados a seguir.

Personagens

Durante as conversas sobre as leituras realizadas nas oficinas, introduzimos perguntas sobre a relação entre a trilha sonora e a narrativa. Outra estratégia foi obter respostas leitoras através de produções como a realização de desenhos sobre o aplicativo Es así e, no caso de Por cuatro esquinitas de nada, por meio de uma colagem em que pedimos que retratassem aquilo de que mais tinham gostado da história e que buscassem representar não apenas as imagens do aplicativo, mas também o que ouviram.

Na figura 1, podemos perceber que as crianças acrescentam características aos personagens baseadas nos recursos sonoros. As expressões felizes nos personagens Redonditos e Cuadradito são uma representação dos recursos de voz (vozes infantis) e da música, que, segundo informa o desenho de T, era uma “música feliz”. Dessa maneira, constatamos que a trilha sonora lhes informou sobre aspectos da identidade dos personagens, bem como sobre seu estado de humor, pois essas informações não eram dadas por imagem e texto.

 


Figura 1. Colagem com representação do som do aplicativo.

 

Narrador

Em entrevista, foi perguntado a T o que achava da pessoa que narra a história. Ela afirmou que era um rapaz, mas não se mostrou segura sobre se foi ele ou não que escrevera a história, apesar de, inicialmente, ter afirmado isso. Quando foi lembrada de que a autora era uma mulher, ela tentou manter sua hipótese e afirmou: “Às vezes, podemos falar com voz de rapaz”, ainda que também tenha dito sem muita certeza, depois de questionada, que uma pessoa faz o texto, a outra desenha e outro conta o conto.

Pe –E, me fale, e sobre a voz que conta a história o que você acha?
T – Pois…
Pe – Quem é?
T – Um rapaz.
Pe – Hum...
T – Que… que põe o som. Às vezes se põe como… Como que acontece uma coisa triste. Às vezes a voz mais como... Como triste e às vezes como mais feliz.
Pe – Sim e…
T – Às vezes como…
Pe – Você acha que ele conhece a… a menina?
T – Sim, ele fez isso. Então, certeza que conhece o personagem por isso.
Pe – Então, quem fala é quem fez o texto? Quem...
T – Talvez seja assim: uma pessoa faz o texto, outra faz o desenho e outra conta o conto.
Pe – Ok, mas você sabe que a autora do livro é uma mulher?
T – Paloma.
Pe – Sim, mas é Paloma quem fala?
T –  Pois... Pode ser uma mulher que tem...  Talvez também podemos falar como voz de rapaz. Fala assim às vezes…
(Tradução nossa)

Vemos que a problemática do narrador como instância do texto pode ser explorada por meio do recurso da voz. É um exemplo de que o valor acústico da narração agrega novos significados, fazendo com o que o leitor atribua sentido para as características sonoras dessa voz e, no caso de um leitor iniciante como T, isso pode pôr em xeque conhecimentos prévios seus sobre a narrativa.

Sobre a performance vocal, T deixou claro que esse era um aspecto a considerar na leitura quando enfatizou que a voz mudava de acordo com as emoções da história. Quando questionados sobre esse aspecto da trilha sonora, os sujeitos se manifestaram criticamente em relação à narração de Rita la lagartija que, segundo M2, era sem emoção. Por outro lado, ao selecionar o aplicativo La manzana roja, esperávamos que criticassem a performance vocal da narradora que, nesse aplicativo, é muito discreta, porém, surpreendentemente, a elogiaram.

Sobre a posição de quem narra em relação à história, P afirmou, sobre a narradora de Rita la lagartija, que não se sabe quem fala, pois “é como nas notícias”, referindo-se à narração onisciente. T, ao ser questionada sobre se o narrador de Es así conhece bem as personagens, afirmou que sim, pois foi ele que escrevera a história, afirmação que gerou o debate anterior sobre quem é o narrador, descrito acima. Todavia, em outro momento, ao enumerar os personagens dessa história, esse mesmo sujeito citou o gato, a menina, a mãe, a avó e “o pai” como seus preferidos. Entretanto, nas ilustrações ou no texto, não há qualquer referência a um pai, o que nos leva a inferir que T poderia estar tomando a voz narrativa como a voz de um narrador-personagem, que seria o pai da menina. Isso pode ser reforçado porque, nesse appbook, a voz parece se dirigir à personagem menina, que, nesse caso, seria também o narratário.

 

Ambientação e espaço narrativo

A música e os ruídos são os recursos mais usados para criar uma ambientação para a história, sendo a música um importante apoio de criação de atmosferas emocionais. No aplicativo Por cuatro esquinitas de nada, a música exerce um importante papel e, por isso, não passou despercebida pelas crianças. Na atividade prévia às oficinas que realizamos com uma classe completa para apresentar o projeto, uma criança expressou assim sua opinião sobre a música que foi colocada para ouvirem antes da apresentação do aplicativo: “Parece que alguém caminha”. A partir disso, foram provocadas a fazer predições sobre onde aconteceria a história, levantando hipóteses baseadas na música. Depois da leitura, outra criança se manifestou afirmando que a música ficava triste quando Cuadradito estava triste, mostrando a relação entre a emoção evocada pela melodia e os fatos da história.

As crianças selecionadas para as oficinas também demonstraram que se apercebem dessa função da música, ao usarem expressões como “música feliz”, afirmação registrada na colagem de T (figura 1) e na fala de M2, que diz que também há “música de perigo” no aplicativo. Essa criança também afirmou, nas discussões sobre Rita la lagartija, que é possível saber que Rita está feliz por causa da música.

Durante a oficina realizada com a obra La manzana roja, em que propusemos que construíssem uma banda sonora para o aplicativo, foi possível observar que as crianças se empenharam em atribuir um som que correspondesse a cada elemento da história, como, por exemplo, a neve caindo. Elas tentaram ser coerentes com a ideia de que a trilha sonora contribui com aspectos da ambientação. Esse esforço foi particularmente visível entre M e H, que experimentaram diferentes instrumentos até decidirem qual deles faria o efeito de neve. A percepção da ausência de certos recursos sonoros, todavia, não impediu que as crianças respondessem esteticamente ao aplicativo La manzana roja. M, ao falar do que não gostou da história, explicou que não lhe agradou quando os personagens caíram, pois seu pai teve um acidente na neve e se machucou e que esse fato fez com que ficasse muito afetada pelo texto.


Ouvidos leitores

As oficinas evidenciaram, em muitos momentos, que as crianças refletem sobre o plano sonoro na leitura de narrativas e que apresentam conhecimentos prévios de diferentes naturezas que as ajudam na produção de sentido. No aplicativo Por cuatro esquinitas de nada, em que há um momento de tensão refletido na música, foi perguntado sobre o que achavam da música executada, e M respondeu que a música lhe parecia um tango, informando que seu avô fazia aulas com esse estilo musical. M buscou recuperar, no campo experiencial, os conhecimentos musicais para produzir sentido, mostrando-se ativa nesse processo. Todavia, poucas vezes esse ato de pensar sobre a trilha sonora foi espontâneo. Muitas vezes, ele se mostrou desafiador para as crianças, pois, além de ser um elemento para o qual não estavam acostumadas a atentar, apresentavam recursos discursivos limitados para falar sobre o som.

A proposta de as crianças brincarem de produzir uma trilha sonora nos ajudou a perceber que elas têm seus próprios saberes sobre os recursos sonoros e identificar indícios de como os articulam com a narrativa. Durante esse processo, empenharam-se em criar ruídos com os poucos recursos de que dispunham, de forma que, algumas vezes, os ruídos e a música demarcassem as ações dos personagens, que auxiliassem na ambientação e que expressassem emoções. Esses saberes podem ser ilustrados com a afirmação de G, que refletiu sobre algo do potencial de sentido produzido pela manipulação do som, enquanto fazia funcionar uma pequena caixa de música: “Se fazemos mais rápido, é como se estivessem alegres”.

 


Figura 2. Apresentação da trilha sonora.

 

IV. Considerações finais

Conforme relatamos, os sujeitos da pesquisa demonstraram, na curta experiência que tivemos, que refletem sobre os recursos sonoros e que lançam mão de saberes construídos em sua experiência com outras obras de ficção para atribuir sentido à narrativa digital, bem como aos recursos sonoros que essa narrativa apresenta. Contudo, o resultado dessa experiência nos ajuda a retomar um aspecto da mediação escolar: o modo como abordamos uma obra literária com as crianças.

Nessa perspectiva, percebemos que, para as crianças, a escuta é sempre enriquecedora e ampliadora de significado. Por isso, damos razão a Hunt (2010) quanto ao fato de que a leitura delas sempre considerará elementos distintos do olhar adulto, muitas vezes para além do que podemos enxergar como analistas e especialistas. Assim, destacamos os momentos em que os leitores atribuíram novos sentidos ao texto, interagindo de forma inusitada com a obra. Isso indica que a mediação leitora, na escola ou fora dela, não pode desconsiderar que a singularidade de cada interação é também produtora de conhecimentos e que é na liberdade que ela se instaura. Não pode desconsiderar ainda o fato de que as crianças já interagem com os recursos sonoros por meio do audiovisual, dos jogos eletrônicos, da escuta de histórias e que, nessas experiências, elas constroem chaves interpretativas próprias para abordar a leitura literária, as quais podem ser compartilhadas e enriquecidas.

Nesse sentido, podemos reivindicar um lugar para a discussão sobre os recursos sonoros nas propostas de mediação leitora, não por preciosismo, mas por esse não ser um saber meramente ilustrativo, já que a trilha sonora enriquece a narrativa e os sentidos da leitura, muitas vezes, substituindo outros recursos, assim como acontece com a imagem no livro ilustrado, que não se constitui mero acessório do texto. A inclusão de recursos sonoros não deve responder tampouco a uma necessidade arbitrária. Discutir esse aspecto da literatura digital se justifica pela compreensão de que, sendo um recurso importante na narrativa, não o fazer é ignorar parte da experiência de leitura, bem como da experiência estética que os leitores podem vivenciar.

 

 


REFERENCES

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MORAES, Giselly Lima de (2016). Trilha sonora de aplicativo de literatura para crianças e educação literária. Tese de doutoramento. Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia: Salvador.
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VALDIVIA, Paloma (2011). Es Así. Cidade do México: FCE. (Versão para iPad).

 


NOTAS

[1] A abordagem de Rosenblatt se diferencia da Estética da Recepção de Hans Robert Jauss e da Teoria do Efeito Estético de Wolfgang Iser por analisar a experiência do leitor real, não somente a presença do leitor como instância prevista no texto.

[2] Nas transcrições das entrevistas, a pesquisadora é identificada como Pe.